07 Janeiro 2019
Embora o Vaticano possa ser uma grande instituição global, na prática muitas vezes parece mais um povoado. Todos os que fazem parte do dia a dia do lugar conhecem quase todo mundo. Por isso, sempre sente-se a ausência de uma ou duas dessas personalidades profundamente.
Nos últimos tempos, houve várias perdas como essas, incluindo uma morte e uma partida, e ambas merecem destaque.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 03-01-2019. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Primeiro, correu a notícia esta semana de que Alexei Bukalov, o lendário jornalista russo do Vaticano, morreu em Roma, aos 78 anos. Ele foi amigo e colega de todos que já fizeram alguma cobertura no Vaticano, e sua morte deixa um vazio nesse mundo.
Alexei Bukalov (Foto: Interris.it)
Durante décadas, Bukalov foi a referência dos observadores do Vaticano sobre tudo o que dissesse respeito à Rússia. Não sabe por que o Patriarca de Moscou é tão instável nas relações ecumênicas com a Igreja Católica? Pergunte ao Bukalov. Quer saber os objetivos da Rússia na Síria, na Ucrânia ou em qualquer outro lugar? Pergunte ao Bukalov.
Alexei não apenas tinha conhecimento, embora certamente tivesse, ou estivesse sempre disposto a ter um tempo para quem o buscava. Ele também era uma das pessoas mais legais do mundo, sempre com um sorrisão e ótimo senso de humor. Era uma dessas pessoas que nunca parece estar de mau humor, talvez porque raramente pensasse sobre si mesmo e estivesse concentrado em outras coisas - principalmente as histórias e as pessoas que o procuravam, com a mesma paixão de sempre.
Nascido em Leningrado, em 1940, Bukalov foi o primeiro jornalista russo a viajar com os papas a bordo do avião papal, tornando-se o jornalista que abriu para a mídia russa o mundo muitas vezes obscuro do Vaticano. Originalmente membro do corpo diplomático soviético, tornou-se repórter nos anos 1980 e chefe do departamento de Roma da TASS, a Agência de Informação e Telegrafia da Rússia, em 1991.
A partir daí, nunca olhou para trás. A Cidade Eterna tornou-se seu lar adotivo, e o Vaticano, sua obstinação profissional. Entre outras coisas, ele cuidava de jovens jornalistas recém chegados a Roma e ajudava a mostrar como as coisas funcionavam, o que fez comigo muitas primaveras atrás.
Na quinta-feira, a TASS imortalizou Bukalov.
"Será lembrado por seus colegas acima de tudo por sua devoção à profissão, que tanto amava, com muito respeito por seu amplo e grato público. Sentiremos para sempre a sua falta e nunca o esqueceremos."
Amém.
Outra figura que se afasta do cenário do Vaticano, embora continue bem vivo, é Giovanni Maria Vian, ex-editor do L'Osservatore Romano, o jornal do Vaticano.
Giovanni Vian (Foto: Antonello Nusca)
Giovanni Vian, historiador da Igreja e especialista em patrística, assumiu o cargo de editor do jornal em 2007. O L'Osservatore Romano surgiu há mais de 150 anos, em meio à crise do Vaticano da época: o colapso dos Estados Pontifícios. Com a crise em Roma, nove anos depois do surgimento da mídia impressa, o L'Osservatore tornou-se a voz dos papas que se declararam "prisioneiros do Vaticano".
Ao longo dos anos, teve um papel duplo: era tanto um veículo para o Vaticano transmitir sua mensagem como um fórum para fazer comentários e análise jornalística séria. Durante a era fascista, por exemplo, por vezes o L'Osservatore foi o único jornal da Itália que não estava sob o domínio de Mussolini, e era amplamente lido, considerado a única fonte confiável sobre o que realmente estava acontecendo.
No entanto, antes de 2007, o jornal passou a ser amplamente visto como a versão do Vaticano do Pravda, o antigo jornal soviético - servindo aos interesses políticos dominantes, nunca publicando nada que os funcionários da burocracia não tivessem avaliado e aprovado, sendo principalmente um guia para o pensamento dos apparatchik do partido comunista.
Com Vian, o L'Osservatore continuou publicando todo o material oficial do Vaticano, mas cresceu muito mais. Ele queria que fosse jornalisticamente relevante também, ou seja, que o jornal se arriscasse, cobrisse notícias reais e apresentasse análises que, embora delicadamente, fossem um pouco além.
Em 2009, por exemplo, Vian enfureceu muitos conservadores católicos nos Estados Unidos, insistindo que Barack Obama não foi um "presidente pró-aborto", que ser pró-escolha e pró-aborto são coisas diferentes. O L'Osservatore Romano levou peças consideradas favoráveis para a nova administração, e alguns bispos dos EUA consideraram a linha do jornal uma repreensão indireta à postura mais desafiadora a Obama a respeito das questões da vida.
Em 2010, Vian chamou a atenção novamente com uma entrevista do tamanho de um livro do jornalista alemão Peter Seewald com o Papa Bento XVI, em que Bento XVI gerou ampla controvérsia ao dizer que, "em certos casos", como a tentativa de impedir a propagação da AIDS, o uso de preservativos "é um primeiro passo em direção a uma forma diferente, mais humana, de viver a sexualidade".
Na época, os críticos afirmaram que o jornal errou ao publicar trechos do livro, incluindo a fatídica fala do Papa sobre preservativos, no domingo do dia 21 de novembro de 2010, à frente do embargo estabelecido para outros meios de comunicação. Para eles, Vian publicou as palavras do Papa de forma descontextualizada, parecendo ter a intenção de causar um impacto sensacional e chamar a atenção, em vez de instigar a compreensão.
Fiz uma entrevista com Vian na época, e ele se defendeu.
"Algumas pessoas disseram que publicamos trechos descontextualizados, mas, na minha opinião, as partes selecionadas falam por si próprias com clareza", afirmou. "Não tínhamos a intenção de criar um escândalo."
Nessa mesma entrevista, ele falou sobre sua visão sobre o jornal.
"O jornal tem que conseguir atingir a todos. É isso que tentamos fazer, dentro dos limites de nossas habilidades e recursos. ... Cometemos erros todos os dias... Nosso jornal certamente não é infalível. É o nosso editor, e nem ele é totalmente infalível."
Sejam quais forem as decisões editoriais ao longo dos últimos 11 anos, não há dúvida de que o L'Osservatore Romano teve relevância com o trabalho de Gian Maria Vian. Lê-lo era imprescindível - e nessa área, ainda que isso não seja tudo, é metade do caminho.
Não importa o que aconteça, o Vaticano continuará sendo um lugar fascinante, cheio de figuras coloridas. No entanto, com a perda de Bukalov e a saída de Vian, o elenco de personagens que torna esse lugar tão único não será o mesmo.
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Duas perdas tiram um pouco da cor da cena do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU