18 Outubro 2018
Diante de Bolsonaro, que avança prometendo nada mudar de essencial, a pior estratégia é a defesa. Precisamos de uma esquerda capaz de afirmar que a vida pode mais.
O artigo é de Alex Moraes, antropólogo, realiza estudos de doutorado no Instituto de Altos Estudios Sociales (Buenos Aires) e faz parte da Rede de Antropologia Crítica, publicado por Outras Palavras, 16-10-2018.
Desde o fim do primeiro turno, tivemos a oportunidade de observar os movimentos táticos da campanha de Fernando Haddad no sentido de disputar as margens potencialmente mais voláteis da massa votante bolsonarista. Nas peças publicitárias do progressismo começaram a predominar o verde e o amarelo e seus programas de TV apresentaram um candidato afável, que sabe valorizar tanto o espaço da família como as virtudes do trabalho. Em materiais de campanha cuja origem é mais difícil de rastrear – mas que nem por isso deixam de ser compartilhados entusiasticamente por quem não deseja entregar a vitória à direita – o candidato do PT é reivindicado como um campeão da moralidade, da cultura do trabalho e do respeito às religiões. Todas essas ênfases discursivas apontam para uma finalidade clara: gerar identificação entre os eleitores e eleitoras de Bolsonaro.
As perguntas estratégicas neste momento parecem ser as seguintes: que conjunto de referências sedimenta a adesão ao candidato fascista? Será que os atributos reivindicados por Haddad constituem, também, aqueles que capturam as paixões dos eleitores de Bolsonaro? Duas semanas não serão suficientes para responder questões desta natureza. Sendo assim, a disputa de votos terá que se basear, irremediavelmente, em hipóteses. A campanha de Haddad tem as suas próprias – e espero que elas dialoguem, pelo menos em alguma medida, com as tendências reais que dinamizam nossa atual conjuntura. Contudo, gostaria de tecer aqui uma hipótese alternativa que, intuo, já deve ter passado pela cabeça de muitos. Esta hipótese não invalida os esforços de campanha que já estão em curso, mas pode vir a complementá-los, melhorando, assim, nossa posição geral no combate ao fascismo.
Poderíamos enunciar do seguinte modo a hipótese em questão: e se quem vota em Bolsonaro o faz exatamente em decorrência dos atributos a partir dos quais ele se apresenta à população? Bolsonaro não é afável, não se reivindica como um sujeito laborioso e, mais do que religiosidade, prefere transparecer um moralismo autoritário e irreflexivo. Além de tudo isso, Bolsonaro é um “mito”: uma imagem que se presta a todo tipo de projeções, por mais heterogêneas e contraditórias que elas sejam entre si. O primeiro Bolsonaro – homem de retórica autoritária e soluções desesperadas – é o candidato da direita, ou seja, daqueles cujo voto nós dificilmente conseguiríamos mudar. O segundo Bolsonaro – o mito – é a expressão paroxística da uma impotência política generalizada. Ele é a síntese impossível de desejos atomizados e precarizados que clamam – não sem certo cinismo – por alguma forma de realização.
Há muitos anos não vemos emergir no Brasil nenhuma esfera pública significativa na qual as aspirações populares pudessem ser amplamente discutidas e, em seguida, sistematizadas mediante plataformas políticas abrangentes. Infelizmente, durante seus governos, o progressismo não se dispôs a impulsionar este tipo de experiência, ainda que, em seus primeiros anos de existência, o PT tenha empreendido esforços notáveis no sentido de cartografar os desejos coletivos. O próprio Haddad relembra tais esforços num livro inspirador, publicado em 1998 pela editora Vozes sob o título de Em defesa do socialismo. Ali, o autor descreve o PT dos anos 80 como uma espécie de “psicanalista social” que não se apresentava às “classes dominadas” com “fórmulas prontas”, mas “observava o movimento social mais arrojado, organizava suas pautas e eventualmente dava caráter geral a reivindicações particulares”. “Onde havia um sopro de vida social criativa – escreve Haddad – lá estava o PT aprendendo a ouvir”. Contudo, já naquela época, o autor concluía com ares melancólicos que o “psicanalista social estava precisando de uma boa terapia”, pois tendia erroneamente a atribuir às suas virtudes responsabilidade pelo seu fracasso eleitoral.
Não é minha intenção sumarizar, aqui, o caminho que levou o PT da condição de analista à posição de paciente quase irrecuperável. Só quero sinalizar que a reorientação estratégica do maior partido de esquerda do país é um dos fatores que explica a defasagem entre os desejos cultivados nos mais diversos espaços de nossa sociedade e a formulação de prescrições políticas que valham para todo o povo. Bolsonaro vale-se habilmente dessa defasagem e, de forma alguma, pretende desfazê-la. As mensagens contraditórias que os integrantes de sua campanha emitem sistematicamente são uma forma de “diálogo sem diálogo” com aquela efervescência desejante que Bolsonaro pretende capitalizar sem sequer conhecer realmente. É esperável que o candidato fascista fuja ao debate, porque sua única possibilidade de construir um voto majoritário – isto é, de seduzir o eleitorado empobrecido – passa pela preservação de uma forte ambiguidade retórica. Em poucas palavras: não pode haver clareza no discurso da extrema-direita para que as pessoas continuem esperando algo dela, por mínimo que seja.
Na conjuntura atual, parecem existir apenas duas formas de captar a sensibilidade das maiorias e canalizá-las eleitoralmente: ou constrói-se um mito (algo que Bolsonaro já fez) ou prescrevem-se possibilidades às pessoas, na expectativa de afetá-las e entusiasmá-las. Nenhuma das duas saídas é a ideal tendo em vista o histórico compromisso da esquerda com a construção de pautas políticas emergentes, capazes de reconhecer o mais integralmente possível os horizontes de transformação social que as próprias pessoas formulam no dia-a-dia dos bairros, das escolas e dos lugares de trabalho. De qualquer forma, não será dentro de duas semanas que construiremos as articulações necessárias para relançar uma política popular e construir novos e potentes “psicanalistas sociais”, como dissera Haddad. Neste momento, levando em consideração o horizonte estritamente eleitoral, só parece restar à esquerda a segunda das alternativas que mencionei antes, a saber: prescrever possibilidades às pessoas. Afirmar que a vida pode mais.
Em 2002, quando Lula ganhou pela primeira vez as eleições presidenciais, sua campanha soube afirmar com êxito um campo coerente de possibilidades que, sem serem revolucionárias, tornavam, ainda assim, a mudança social algo tangível e imaginável. Naquela época, o progressismo falava em distribuição de renda, eliminação da miséria, incremento paulatino do salário mínimo e, como corolário dessas medidas, diminuição das desigualdades sociais. Distanciando-se do senso comum neoliberal imperante no momento, os progressistas argumentavam que em vez de ensinar a pescar, eles dariam o peixe — afinal a pobreza não era a melhor situação para aprender o que quer que fosse. Tratava-se de ideias relativamente recuadas, porém claras e que diziam respeito à vida de muita gente. Estas proposições eram transparentes e, por isso mesmo, despertavam confiança nas pessoas.
Bolsonaro não expressa ideias unívocas, mas possui uma forma de enunciação bastante nítida: é violento e inflexível na defesa da ordem. Sua mensagem, portanto, está bem definida (e todos nós já a compreendemos): bem-vindo seja qualquer desejo violento e intransigente de ordem; qualquer desejo de viver em paz exatamente esta mesma vida que estamos vivendo – ou, no máximo, uma vida um pouquinho melhor. Aqui há uma posição concreta que poderia ser sintetizada do seguinte modo: “nada mudará em suas vidas, mas defenderemos o pouco que sobrou, o pouco que foi conquistado com muito esforço, com muito trabalho. E a polícia nos ajudará”. Bolsonaro flerta com desejos diversos e contraditórios de ordem, de estabilização, de normalização. A imagem da ditadura é só a grande metáfora de uma estabilização imediata, a todo custo, daquilo que restou depois da morte de qualquer esperança.
Talvez, nas circunstâncias atuais, precisemos sustentar condições para desejar coisas novas e transcender a asfixia imperante – uma asfixia que não incomoda somente a esquerda. “Democracia”, por exemplo, é uma dessas condições: na democracia, todos – e não só os mesmos de sempre – discutem, formulam e decidem questões concernentes à totalidade da vida social. “Bem estar” é outra coordenada básica: precisamos viver cada vez melhor. As enormes riquezas descobertas graças a fortes investimentos de dinheiro público devem – e podem – reverter em benefícios sociais imediatos para a maioria da população. “Justiça social” seria uma terceira coordenada: quem ganha mais precisa pagar mais imposto do que quem ganha menos, ampliando a renda destes últimos. Estas três condições nos autorizam a falar do futuro novamente: daquilo que podemos ser juntos, beneficiando-nos o mais integralmente possível de nossa pujança coletiva.
Bolsonaro vem conquistando seus tristes votos com a promessa medíocre e petulante – porém concreta – de que a vida continuará sendo mais ou menos o que é, sob o olhar vigilante de um aparelho repressivo robustecido. O discurso anticomunista, o racismo latente e a homofobia explícita não conquistam os votos decisivos, só asseguram a adesão de uma base eleitoral reacionária construída em camadas minoritárias da população. Assim como o lulismo intransigente do primeiro turno assegurou a Haddad os votos mais fiéis ao discurso do PT, o anticomunismo virulento assegurou para Bolsonaro a fidelidade da direita nacional. Contudo, os votos de uma eventual maioria do eleitorado só serão de Bolsonaro graças à promessa de uma paz social monótona e armada; de um tempo para respirar ar poluído enquanto a polícia aplaca a “bandidagem”. Se ele está próximo de ganhar uma eleição presidencial acenando às massas com esse horizonte miserável, por que, então, a esquerda não poderia basear suas apostas na afirmação simples, concreta e objetiva de que a vida é suscetível de melhorias substanciais?
O candidato do PSL é o suprassumo da manipulação populista do status quo. Ele explora medos objetivos – ou nem tanto – para, logo em seguida, afirmar que não há esperança, que não podemos ser mais do que somos e que só nos resta proteger nossas posições atuais contra quem supostamente pretende ameaçá-las. Não há espaço para o futuro neste relato chantagista. Ele é falso e menospreza seus destinatários. Diante desta estratégia aterrorizante, talvez a esquerda não devesse investir todas as suas energias em apaziguar temores, até porque a qualquer momento (na próxima corrente de WhatsApp, por exemplo) eles poderão emergir novamente e não estaremos ali para contê-los. Nossas chances de êxito só se ampliam quando nos movimentamos num terreno que Bolsonaro e seus apoiadores mais acérrimos desconhecem: o terreno prospectivo, onde um conjunto de coordenadas básicas e inteligíveis anuncia que a vida pode ser substancialmente melhor do que é. Conviria, então, não apenas esvaziar os temores e as soluções esgrimidas pelo fascismo, mas também instaurar uma disputa aberta entre dois princípios de realidade tão claros quanto divergentes: um orientado ao passado e afiançado pelo medo; outro orientado ao futuro e pautado pela esperança.
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A esquerda triste e a esperança em combate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU