01 Agosto 2018
“Parece que ainda estamos distantes de uma compreensão global das dimensões e desafios da nova era digital, que demandaria desenvolver um enfoque integral que priorize a criação de capacidades locais e soberania tecnológica. O potencial para pesar no cenário mundial seria muito maior com políticas combinadas regionalmente; sem elas, a América Latina arrisca voltar a novas formas de dependência”, escreve Sally Burch, jornalista britânica-equatoriana, diretora executiva da ALAI, em artigo publicado pela Revista America Latina en Movimiento: Integración en tempos de incertidumbre, 07-2018. A tradução é do Cepat.
As tecnologias digitais se tornaram, há algumas décadas, um dos setores mais dinâmicos do desenvolvimento econômico. Isto se vê com muito mais clareza nos últimos dois anos, com a decolagem em grande escala da Inteligência Artificial (IA) e a internet das coisas (IoT, em sua sigla em inglês).
Fala-se agora de uma quarta revolução industrial ou de Indústria 4.0, onde já não se trata apenas da automação digital de funções e empregos já existentes, mas da transformação digital, que implica criar novos modelos de produção e negócio, sobre a base de novas capacidades que permitam a inovação e convergência tecnológica, o processamento massivo de dados e a aprendizagem automática (machine learning). Entre eles está a chamada “economia colaborativa”, cujos exemplos vão da Wikipédia (que reivindica ser o maior projeto de compilação de conhecimento jamais realizado na história da humanidade, e se baseia em colaborações voluntárias) ao Uber (empresa que inovou ao monetizar uma plataforma para conectar taxistas com passageiros).
Em paralelo, nos últimos tempos, tem se destacado uma batalha pela dominação global desta nova economia, cujos principais concorrentes hoje são Estados Unidos e China e suas respectivas empresas transnacionais. Europa, Rússia e alguns outros países, embora possuam algum nível de desenvolvimento em IA, permanecem muito atrás dos dois líderes.
Esta evolução caminha ao lado de uma acelerada concentração do controle das tecnologias digitais nas mãos de um punhado de megacorporações transnacionais. No que vai do século, esta concentração abarca, entre outros, a infraestrutura chave (como cabos submarinos e servidores raiz); os sistemas operativos para usuários (Windows/Microsoft, MacOS/Apple, Android/Google); as plataformas mais utilizadas (principalmente os chamados GAFA – Google, Apple, Facebook, Amazon). Em tudo isso, os Estados Unidos dominam, como evidencia o fato que os GAFAM (incluindo aqui a Microsoft) já ocupam os primeiros lugares de valorização na bolsa, superando as petroleiras (1). Contudo, a China está ganhando terreno velozmente, com suas próprias corporações: em particular Alibaba (comércio eletrônico, que já superou a Walmart como a maior empresa de venda varejista do mundo), Tencent (provedor de serviços de Internet) e o buscador Baidu.
Justamente, desde 2014, a China desenvolve uma política de Estado de fomento da inovação tecnológica, com apoio tanto a suas maiores empresas digitais, como a um grande número de startups, em todo seu território nacional. Há um ano, o Conselho de Estado difundiu sua proposta (ver Lee 2017) (2) para chegar a ser o número um do mundo em IA, em 2030. Um componente chave desta política é a educação, em todos os níveis, para formar especialistas, pesquisadores e trabalhadores qualificados.
Vários estudos demonstram que, com maior quantidade de dados para analisar, a IA demonstra melhores resultados. Por isso, a China considera que tem ao menos duas vantagens comparativas:
- uma população numerosa que constitui uma base massiva de usuários que lhe permite manejar maiores quantidades de dados; e
- uma sociedade com semelhanças a outros países em desenvolvimento, também com populações numerosas.
Sua aposta seria captar o mercado de IA, principalmente nestes últimos países, por sua melhor capacidade de desenvolver aplicativos adaptados a suas particulares necessidades. Por sua vez, isso significará o acesso a mais dados e melhor IA. Alibaba, Baidu e Tencent, entre outros, já estão investindo fortemente na IA e gestão de dados. Por sua parte, os GAFAM, entendendo as vantagens tecnológicas da China, estão investindo na economia digital chinesa. Google, por exemplo, anunciou em dezembro passado a abertura de um centro de investigação em IA, em Pequim, com 600 cientistas e engenheiros, em sua maioria chineses.
Há aqueles que consideram que a batalha pelo domínio no plano tecnológico é, justamente, o que está por trás da guerra comercial que os Estados Unidos iniciaram contra a China. Jorge Castro, ex-Secretário de Planejamento Tecnológico da Argentina, estima que, no fundo, o que os Estados Unidos buscam é frear os investimentos das empresas estadunidenses – principalmente as GAFAM – no desenvolvimento de alta tecnologia na China.
“Agora, a China requer o investimento que se orienta para os segmentos de ponta do sistema transnacional de produção, de elevada produtividade e intensa capacidade de criação de valor agregado, o que significa essencialmente que é a que provém dos Estados Unidos e Europa, sobretudo Alemanha” (3), afirma Castro. Então, para enfrentar a China, não restaria outro caminho aos Estados Unidos a não ser estabelecer uma relação de forças favorável a seus interesses vitais. O analista acrescenta que: “Isto ocorre em um mundo que se integrou plenamente, e onde a globalização adquiriu um ritmo vertiginoso, arrastada pela instantaneidade da revolução tecnológica. Portanto, a peleja pelo poder global é uma parte estrategicamente decisiva do esforço de integração. Competência e integração são um só fenômeno histórico”.
Na América Latina, o desenvolvimento da IA está bastante incipiente, e em muitos países ausente. No entanto, cada vez mais áreas, tanto o setor privado como as entidades e serviços públicos, contratam os serviços de IA das corporações transnacionais. Isso implica entregar, muitas vezes gratuitamente, grandes quantidades de dados, que se convertem em fonte de enriquecimento das empresas estrangeiras, e não do país que os entrega; e, em geral, sem nenhuma exigência de transferência tecnológica.
Hoje, quando as redes digitais estão integradas mundialmente e os bens digitais transitam livremente através das fronteiras, o mundo vai tecendo formas inovadoras de integração econômica e cultural. A América Latina faz parte deste tecido, mas, em geral, de maneira subordinada, na medida em que carece de políticas de soberania tecnológica e, em muitos casos, das condições adequadas de infraestrutura, conectividade, armazenamento e manejo de dados, investimento em inovação, etc. Enquanto isso, as potências tecnológicas pressionam para que os Estados aceitem a imposição de regras de “comércio eletrônico” que favoreçam suas próprias empresas dominantes, como se discute atualmente na Organização Mundial de Comércio (4) e se assentaram em várias negociações de tratados de livre comércio. De pouco serviria à região aceitar tais regras, que coagiriam suas possibilidades de desenvolver sua própria capacidade tecnológica.
A Comissão Econômica para a América Latina - CEPAL -, por sua parte, recomenda a criação de um mercado comum digital latino-americano, que ofereceria a nossa região uma oportunidade de integração econômica que permitiria adquirir escala e desenvolver economias de rede, o que não se conseguiu com as velhas tecnologias (5). A CEPAL reconhece que seria necessário superar vários obstáculos para conseguir tal integração, incluindo, entre outros, a falta de coordenação em matéria de padrões e regulamentação, além de carências em infraestrutura e transporte de mercadorias. Neste sentido, impulsionou-se a Agenda Digital para América Latina e o Caribe, que vem sendo discutida no marco do eLAC (processo regional que surgiu com base na Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, a partir de 2005).
Chama a atenção que, mesmo em seu momento de maior auge, as iniciativas integracionistas como UNASUL e CELAC tiveram o tema pouco presente. Ou seja, ficou praticamente limitado ao âmbito dos Ministérios de Telecomunicações (principais atores do eLAC), com seu enfoque prioritário ao negócio das telecomunicações e (em um segundo nível) a inclusão digital. Parece que ainda estamos distantes de uma compreensão global das dimensões e desafios da nova era digital, que demandaria desenvolver um enfoque integral que priorize a criação de capacidades locais e soberania tecnológica. O potencial para pesar no cenário mundial seria muito maior com políticas combinadas regionalmente; sem elas, a América Latina arrisca voltar a novas formas de dependência.
(1 ) Segundo a revista Forbes, em 2017, os GAFAM se localizavam entre as 6 corporações melhor cotadas por valor de mercado, no ranking global
(2 ) Lee, Amanda. 2017. “World dominance in three steps: China sets out road map to lead in artificial intelligence by 2030”, South China Morning Post, 21 de Julho.
(3 ) ICIMISS
(4) Ver: Burch, Sally. 2018. “Comercio electrónico y la agenda de las transnacionales”, América Latina en Movimiento, No. 532, ALAI, abril.
(5 ) Ver aqui
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Geopolítica da inteligência artificial e integração digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU