22 Março 2018
Pouco mais de 5,3 mil km e o Oceano Atlântico separam as cidades de Manaus (AM) e Nouakchott, a capital da Mauritânia, no deserto do Saara. Apesar da distância, o deserto do norte da África e a floresta amazônica têm uma relação mais estreita do que senso comum nos leva a acreditar.
A reportagem é de Evanildo da Silveira, publicada por BBC, 19-03-2018.
Nuvens de poeira e de vapor d'água sobre o deserto do Saara (Foto: Nasa Earth Observatory)
Tão inesperado quanto esta ligação é o fato de ser o deserto que beneficia a mata, e não o contrário – sendo responsável pela maior parte das chuvas torrenciais que caem sobre a região, mantendo sua exuberância e biodiversidade. Além de enviar toneladas de nutrientes para sua vegetação, como o fósforo.
Os “núcleos de condensação”, a parte da nuvem em que o vapor de água se condensa, são formados, entre outros elementos, por partículas em suspensão no ar – poeira, por exemplo. No caso da floresta amazônica, uma parcela desses aerossóis é proveniente do Saara.
“Este fenômeno de transporte ocorre principalmente na parte norte da Amazônia, mas já foi registrado também na área central da região, como, por exemplo, ao sul de Manaus”, explica o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Ele é um dos integrantes de uma equipe de pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha que vem desenvolvendo, há uma década, um trabalho que levou à descoberta de que a poeira do deserto ajuda a formar nuvens sobre a Amazônia Central, onde se localiza Manaus, que são responsáveis por cerca de 80% das chuvas que caem na região.
Representação artística da camada de poeira na atmosfera da Terra (Foto: Nasa Goddard's Visualization Studio)
Mas como o deserto cria precipitações a milhares de quilômetros de distância?
Segundo Artaxo, o fenômeno ocorre todos os anos. Ele começa com as tempestades no Saara, que levantam toneladas de poeira e areia. Esse material é transportado de lá, por cima do Oceano Atlântico, até a floresta amazônica, numa distância mínima de pelo menos 5 mil km – entre a parte mais ocidental do deserto e Manaus. “Isso ocorre de fevereiro a maio, pois, nesta época, a chamada Zona de Convergência Intertropical (ITCZ, na sigla em inglês), fica ao sul de Manaus, favorecendo o transporte de massas de ar do hemisfério Norte para a Amazônia Central”, explica Artaxo.
Ele diz que, para que haja chuva, são necessários três ingredientes básicos: vapor de água, condições termodinâmicas ideais e as partículas que servirão de meio para que o vapor possa se condensar. “Os grãos de poeira do Saara, que também podem ser chamados de aerossóis, operam como uma destas partículas em que o vapor de água se condensa”, explica Artaxo, mencionando a hipótese mais aceita para a explicação do fenômeno.
“Ou seja, eles atuam como núcleos de condensação de gelo, fazendo com que gotas líquidas, ao atingirem altas altitudes e temperaturas menores que 10ºC negativos, congelem e formem gotas de gelo, que são eficientes no processo de formação de chuva na Amazônia.”
Artaxo conta que as medidas da concentração de partículas do Saara foram feitas na Amazon Tall Tower Observatory (ATTO), ou Torre Alta de Observação da Amazônia, com 325 metros altura, o equivalente a um prédio de 80 andares. Erguida na reserva ambiental do Uatumã, no município de São Sebastião do Uatumã, a cerca de 180 km de Manaus, é a maior torre de monitoramento ambiental e atmosférico do mundo. O objetivo dela é coletar dados sobre a interação entre a vegetação e atmosfera.
Para testar sua hipótese, os pesquisadores realizaram experimentos em laboratório. Parte das partículas coletadas na torre ATTO foi injetada em uma câmara, na qual é possível simular a formação das nuvens convectivas – nuvens com grandes altitudes verticais, que podem chegar a 15 km da base ao topo, responsáveis chuvas torrenciais e rápidas.
Foto de satélite mostra a onda de poeira se deslocando a partir da costa do norte da África (Foto: Nasa)
Segundo Artaxo, essa câmara reproduz as condições da atmosfera a até 18 km acima do solo, onde prevalecem as baixas pressões e temperaturas – de até 70ºC negativos. Na natureza, é num ambiente parecido que se formam as nuvens convectivas.
A certeza de que a poeira encontrada no local vem do Saara e não de um terreno próximo à torre é dada pela sua composição química, mais especificamente, pela presença e proporção de alguns elementos, como alumínio, manganês, ferro e silício. De acordo com Artaxo, a quantidade desses elementos nas partículas coletadas na Amazônia é igual a encontrada na poeira do Saara. “Além disso, há a correlação entre a presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar”, diz. “Isso prova que eles vieram mesmo do deserto africano.”
Os cientistas ainda não têm 100% de certeza sobre o mecanismo pelo qual os aerossóis do Saara ajudam a formar as nuvens e, por consequência, as chuvas que caem torrencialmente na região. A hipótese mais provável é que o ferro, presente na poeira do deserto, pode funcionar como um suporte, sobre o qual o vapor d’água se condensa, formando núcleos de gelo, que depois se transformam em gotas de chuva.
Não são apenas simples grãos de poeira, entretanto, que o Saara manda para a Amazônia.
Em 2015, a Nasa, a agência espacial americana, divulgou um estudo segundo o qual todos os anos o deserto envia, junto com o pó, 22 mil toneladas de fósforo, nutriente encontrado em fertilizantes comerciais e essencial para o crescimento da floresta. É quase a mesma quantidade que a mata produz, com a decomposição das árvores caídas e, em seguida, perde com as chuvas e inundações.
Segundo o levantamento da Nasa, todos os anos 182 milhões de toneladas de poeira – mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões de areia – saem do Saara para as Américas do Sul e Central. Desse total, cerca de 28 milhões de toneladas – ou 105 mil caminhões – caem na Bacia Amazônica, e, junto com elas, o fósforo.
Mais de 5 mil km separam a borda do deserto da floresta amazônica (Foto: Reprodução/Google Maps)
A poeira mais rica em fósforo vem da depressão de Bodélé, no Chade, que é um antigo leito de lago, hoje seco.
Devido a sua geografia, o local é atingido por constantes e gigantescas tempestades, que levantam a areia, que depois é transportado para o outro lado do Oceano Atlântico. A descoberta é parte de uma pesquisa maior para compreender o papel da poeira e dos aerossóis no meio ambiente, no clima local e global.
Os pesquisadores da equipe da qual Artaxo faz parte estão agora empenhados em descobrir se o aquecimento global pode interferir no fenômeno do transporte de poeira do Saara para a Amazônia e, consequentemente, na formação e no volume de chuva na região da floresta brasileira.
“Um dos efeitos do aquecimento global é mudar a dinâmica da atmosfera, e o transporte em larga escala”, diz. “Isso pode, sim, afetar o transporte de partículas do Saara para a Amazônia, pois toda a dinâmica atmosférica pode ser alterada”. Mas são necessários mais estudos para saber como isso ocorrerá.
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Como o deserto do Saara participa do regime de chuvas da Amazônia, a 5 mil km de distância - Instituto Humanitas Unisinos - IHU