30 Junho 2017
Moedas alternativas. Feiras de trocas. Bancos de horas. Economia da doação. Detroit, que revive depois de falir como “capital do automóvel”, mostra a enorme potência das redes de trabalho e consumo solidário.
O artigo é de Valerie Vande Panne, publicado por In These Times, e reproduzido por Outras Palavras, 29-06-2017. A tradução é de Inês Castilho.
Você deve ter ouvido falar da volta por cima de Detroit, [antiga capital da indústria automobilística dos EUA]. É hoje uma narrativa popular nos centros da mídia, uma lenda de investimento e revitalização. Jovens olham romanticamente para a cidade como uma “tela em branco” – os imóveis são baratos, eles abundam, e a cidade está de volta.
O problema é que essa narrativa é um mito. A taxa de pobreza é próxima de 40%, e a despeito da chegada de jovens brancos seduzidos pelas promessas de um renascimento de Detroit, a população continua a declinar, de um pico de 1,8 milhão em 1950 para 670 mil hoje. Aproximadamente 70 mil residências tiveram a água cortada por falta de pagamento desde 2014, e cerca de 17 mil casas ocupadas correm o risco de sofrer despejo este ano.
O chamado renascimento da cidade atingiu apenas pequeno nichos de seus 360 quilômetros quadrados, deixando a maioria da população – composta por mais de 80% de afro-americanos – para trás.
Mas depois de décadas de pobreza, os habitantes de Detroit aprenderam a viver sem acesso ao dinheiro ou crédito tradicionais. Há uma resiliente economia informal enraizada nos bairros e comunidades: escambo, presentes, troca de tempo e empresas informais estão em toda parte.
Veja, por exemplo, a vibrante rede de empresas informais tais como salões de beleza em porões, oficinas mecânicas em fundos de quintal ou garagens, e, como no caso de Luis Bustos, restaurantes na casa das pessoas.
Bustos, 21 anos, caiu de uma escada em 2016, ficando em cadeira de rodas por três meses. Com o pagamento das prestações da casa mais um seguro de carro de 270 dólares por mês, ele precisava ganhar dinheiro. Mas depois do acidente não quis voltar aos empregos de cobrir telhados, que tinha antes. Começou a vender tortillas (sanduíches mexicanos) como as que sua mãe costumava fazer, com pão fresco, molho, milanesa, salsicha e frango.
Hoje, dirige um restaurante em sua própria cozinha, entregando comida pela vizinhança ou servindo-a em sua sala. Embora queira conseguir um alvará, quando tiver dinheiro para isso, ele é franco. “Não tinha dinheiro para tirar uma licença, nem tempo para esperar meses pela liberação”, diz. Ninguém ia me dar um emprego, tive que me empregar eu mesmo. Do contrário, teria perdido a casa.”
Embora faça publicidade nas mídias sociais, ele também tornou-se famoso no boca-a-boca por sua comida, o que é importante numa área onde smartphones e acesso à internet podem ser relativamente esparsos. Com isso, é capaz de ganhar algum dinheiro, mas também tem consicência da importância de ajudar os outros. “Como algumas pessoas às vezes não têm nada para comer, digo a elas que venham. Tem comida aqui.”
Em grande parte da cidade, há um entendimento de que, sem empregos, os vizinhos também estão lutando. É uma necessidade, então, participar de uma rede de moeda local.
Tradicionalmente, os economistas viam o escambo (troca direta de mercadorias) como um precursor primitivo dos modernos sistemas monetários. Mas o antropólogo David Graeber argumenta, em seu livro Dívida: Os primeiros 5.000 anos, (2011), que é justamente o oposto: o escambo pode surgir quando o dinheiro e a economia fracassam.
E a economia de Detroit fracassou espetacularmente. Não é surpresa, então, que escambo, doação, troca e empresas informais tenham se tornado tão essenciais quanto são, em outros lugares, o dinheiro vivo e o crédito tradicional. Como não há registro formal ou maneiras de rastrear trocas privadas, é difícil medir quanto avançou essa economia de sobrevivência. Mas, por tudo o que se vê, é generalizada.
O estilo de troca difere conforme o relacionamento. O escambo, disse Graeber numa entrevista, é geralmente usado quando as pessoas não se conhecem bem. “Mas pessoas que têm relacionamento há bastante tempo compartilham bens e serviços de acordo com sua capacidade e necessidade”. Ao contrário do escambo, as doações não são feitas à base do um-por-um. “São muito próximas do comunismo”, diz Graeber. “Você sabe que, no final, será bom para todos. É possível manter esta relação com pessoas que permanecerão próximas por muito tempo.”
Até certo ponto, as economias de doação existem dentro de todo grupo fechado. “É como os pequenos círculos comunitários são reconhecidos – pelo que compartilham”, diz Graeber. Mas “nas situações em que falta dinheiro, isso se expande e torna-se muito mais importante”.
Talvez a incorporação física da ideia seja um pequeno espaço, chamado Detroiters Helping Heach Other (Moradores de Detroit ajudando-se uns aos outros), no sudoeste da cidade. O espaço lembra uma loja , com exceção de que – por causa de falta de dinheiro para eletricidade – a única luz entra pela porta aberta da frente.
Eletrodomésticos, móveis, utilidades de cozinha, roupas – há um pouco de tudo, disponível gratuitamente para quem necessita. As pessoas dão o que podem, quando podem (e muitos doadores também pegam da loja, quando necessitam). Alguns itens são gente de cidades vizinhas, que deseja ajudar diretamente a população de Detroit. As pessoas sabem não pegar o que não precisam, e dar tudo e sempre que podem. É uma rede de apoio comunitário crucial para quem está em crise – e nos últimos quatro anos tornou-se profundamente integrada à vida de muitos moradores de Detroit.
Os residentes na cidade não apenas dão ou permutam bens e serviços. Como muitas comunidades em todo o mundo, eles também trocam tempo. O banco de horas do sudoeste de Detroit é particularmente ativo, e inclui tanto indivíduos como empresas locais, tais como uma unidade de atendimento a idosos e uma loja de material de jardinagem. Para cada hora gasta fazendo um serviço, os participantes ganham uma hora recebendo outro serviço. Por exemplo, Mary Clare Duran, 65 anos, oferece frequentemente costura e reforma de roupa por meio do banco de horas do sudoeste de Detroit. Em contrapartida, ela solicita jardinagem dos outros membros. A pessoa que faz o trabalho no jardim pode gastar suas horas em, por exemplo, serviço de mecânica ou de cuidado com crianças. É um modo, diz Duran, de superar o dinheiro.
Um dos maiores desafios de banco de horas – que funciona principalmente online – é a desigualdade digital. Mas os moradores de Detroit encontraram soluções criativas em outros setores da economia informal. Descobriram, por exemplo, modos de articular caronas sem usar aplicativos. Nyasia Valdez, 22, recebeu sua carta de motorista em 2015, e começou a compartilhar seu carro com vizinhos e colegas de trabalho. Juntos, formaram sua própria rede de caronas, falando uns com os outros, compartilhando carros e chaves. Valdez diz que as circunstâncias estimulam a confiança. Há um entendimento, diz ela, de que “quando também estou na luta, a gente pode ajudar uns aos outros”.
Essas economias baseadas em relacionamentos, não-monetárias são fáceis de fetichizar. Mas em Detroit, esse método de viver nasceu do instinto humano em tempo de necessidade. “Venderam-nos a ideia de que o dinheiro é a chave para a felicidade e o sucesso, mas as pessoas não estão felizes”, diz Halima Cassells, fundadora do Mercado Livre de Detroit, um espaço de trocas onde todo mundo traz ao menos um item para dar e todos podem pegar tudo. “As pessoas gostam de que confiem nelas, de estar em ambientes onde são dignas de confiança. É algo que não se compra.
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Contra a crise, o possível pós-capitalismo local - Instituto Humanitas Unisinos - IHU