Por: Vitor Necchi | 01 Junho 2017
A ascensão da direita sobre as periferias no pós-lulismo e a dificuldade da esquerda em dialogar nos territórios onde atuava com facilidade foram alguns dos temas tratados pelo cientista social Henrique Costa, que proferiu a palestra A reinvenção da política e da esquerda. Um olhar a partir das periferias no dia 17 de maio, dentro do ciclo de palestras A reinvenção da política no Brasil contemporâneo, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Conforme Costa, que é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, vive-se uma realidade em que a história do trabalhador e a gestão da questão social são precarizadas, e o fim destinado hoje a milhões de proletários “radicaliza e retroalimenta tendências dominantes, qual seja, o desemprego que subvaloriza ainda mais a força de trabalho e o punitivismo como forma de seleção e eliminação social”. Este contexto opõe-se aos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) na presidência, que produziram índices positivos e uma narrativa que propagou a ideia de que o Brasil tinha cumprido sua promessa de país e extinguido a pobreza e o subdesenvolvimento.
Havia dados que corroboravam a tese do lulismo. No quarto trimestre de 2013, verificou-se a menor taxa de desemprego da série de monitoramento realizada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua): 6,2%. O Mapa da Fome de 2013, elaborado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), atestava que o Brasil reduziu a pobreza extrema (pessoas que vivem com menos de U$ 1 ao dia) em 75% entre 2001 e 2012. Além disso, uma profusão de programas sociais, em parceria da União com estados e municípios, gerenciava a questão social do país.
Este ciclo de índices positivos e de conquistas sociais foi solapado pela crise econômica que se seguiu à reeleição de Dilma Rousseff, cujo segundo mandato iniciou-se em 2015, e pela grava crise político que culminou com o impeachment dela em agosto de 2016. No primeiro ano do seu segundo mandato, o PIB apresentou uma queda de 3,8%, com recuo de 6,2% na indústria e 2,7% nos serviços, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o que acabou comprometendo o legado lulista, afirmou Costa. Para agravar o cenário, o que veio com o governo de Michel Temer não foi nada alvissareiro, por conta das políticas de austeridade que atemorizam a classe trabalhadora.
Citando o sociólogo Francisco de Oliveira, o palestrante afirmou que as formas de terceirização e o trabalho precário anunciam o futuro do setor formal, ou seja, o movimento em que “o conjunto de trabalhadores é transformado em uma soma indeterminada de exército da ativa e da reserva, que se intercambiam não nos ciclos de negócios, mas diariamente”.
A precariedade que atinge a população se amplia. O número de homicídios no Rio de Janeiro em decorrência de oposição à intervenção policial aumentou 120% nos últimos cinco anos, conforme o Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado. Em 2016, a polícia matou 920 pessoas; em 2015, foram 645; em 2013, 416, quando se atingiu o patamar mais baixo nos últimos dez anos; em 2007, foram 1.330 mortes.
O encarceramento em massa como política de segurança segue crescendo. Em 2010, havia 496.251 presos no país, o que perfazia uma média de 253 detentos para cada 100 mil habitantes. Em 2016, eram 607.731 detentos, e em consequência a média aumentou 20%, chegando a 301 para cada 100 mil moradores.
Na análise de Costa, a tendência dominante é “o desemprego que subvaloriza ainda mais a força de trabalho e o punitivismo como forma de seleção e eliminação social”. Neste cenário de terra arrasada verificado após a crise do lulismo, “a Bíblia tornou-se um instrumento tão ou mais eficaz que a carteira de trabalho quando se está com a polícia no encalço”.
O vigor da hegemonia política, avalia Costa, “ajudava a colocar esses elementos em um repouso sinistro”. Isso não impediu, no entanto, que alguns episódios fragilizassem a continuidade da “paz lulista”, como o desaparecimento de Amarildo, as chacinas de Diadema e de Barueri, em São Paulo, e do Cabula, na Bahia. O governo Dilma, por sua vez, deu demonstrações ativas de que estava a fim de manter o “ensaio desenvolvimentista” em marcha, com a implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte e o novo Código Florestal, e passivas, ao não tomar partido com a desocupação do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos.
Em uma leitura pouco otimista, Costa sugere que “a desintegração social avança aceleradamente”. A sustentar sua afirmação, aponta os conflitos em morros cariocas e sua crise de gestão pós-olímpica, o aumento explosivo da violência do Recife a Porto Alegre, as rebeliões sanguinárias e as guerras de facções nos presídios, mas as evidências vão além desses episódios mais visíveis e chegam às ruas das grandes cidades, “onde o medo é constante de pessoas contra pessoas e delas contra a polícia, passando pelas brigas no trânsito até as conversas nos almoços nas casas de classe média, em que os ódios afloram, e chegando finalmente às famigeradas redes sociais e comunidades de haters”.
Costa tratou do panorama político atual e do sofrimento social apresentado “nas formas flexíveis de trabalho, na insegurança do presente e na impossibilidade de vislumbrar o futuro”. Neste cenário, emergem figuras como o prefeito de São Paulo, João Doria Júnior, e o deputado federal Jair Bolsonaro, que “tendem a reproduzir aqui a dinâmica que se instalou nos países do capitalismo central”. Salientou, no entanto, que esta “onda conservadora” não exime a esquerda de sua responsabilidade. “A energia social do sofrimento que se insurge agora contra as formas estabelecidas e engessadas de militância e da política tradicional segue na mesma direção do novo espírito do capitalismo, o qual foi incorporado pela própria esquerda em dois sentidos complementares entre si: na gestão da questão social pelo petismo na esteira das propostas da ONU e do Banco Mundial e na exaltação pós-moderna de um ativismo não classista e performático e de um cosmopolitismo de vencedores e empoderados.”
A crítica de Walter Benjamin à noção progressista de progresso foi citada por Costa. Parafraseando o filósofo alemão, afirmou que “a crítica ao pós-modernismo deve ser uma crítica ao capitalismo flexível em geral, inclusive às formas de ativismo de esquerda que subsomem os problemas que afligem a classe trabalhadora precarizada em nome de uma celebração das tecnologias cognitivas, além de um identitarismo que consome a si mesmo e não articula as diversas lutas contra a opressão na luta geral contra o capitalismo e o aprofundamento do sofrimento gerado pela nova centralidade negativa do trabalho”.
Costa destacou que “se ativistas e grupos de esquerda podem, sem muito embaraço, se mostrar como competidores exitosos na corrida pelas melhores posições do capitalismo cognitivo, não surpreende que estes valores sejam suficientemente disseminados para comporem, neste momento, o alicerce da razão neoliberal hegemônica”. A espetacularização e os atos do chamado acting out são adotados, conforme Costa, para responder a uma demanda por justiça social que não vai deixar de existir. Esses atos se pretendem espontâneos, mas são “mera repetição de fórmulas que buscam chamar a atenção, mas não provocar grandes distúrbios na ordem das cidades e nem questionar o papel ou existência da ordem institucional”.
A esquerda, nos últimos anos, adotou em diversas ocasiões estas ações performáticas sem radicalidade. Costa aponta que o auge da sua contradição ocorreu com os movimentos de junho de 2013, quando “jovens da periferia se atracavam com outros de classe média nas estações de trem, onde estes condenavam os primeiros por incitarem a passagem gratuita por catracas”. O dado curioso, destaca o palestrante, é que um movimento que na origem tem a reivindicação a tarifa zero para o transporte coletivo, ao mesmo tempo outros rechaçavam a desobediência civil aos gritos de “sem vandalismo”, o que acabou “esvaziando as manifestações de radicalidade para que o patrimônio e a ordem institucional permanecessem preservador, reduzindo o rechaço da mídia”.
Costa sugere que o trabalho de base não teria lugar nesta esquerda “encharcada de novo capitalismo” não apenas pelos fatos que ele descreveu, “mas porque não há instrumentos nem formulações adequados para entender, efetivamente, quais são os espaços de intervenção e os problemas a serem abordados”. É fato que há diversas formas de associativismo que atuam nas periferias hoje, sobretudo das igrejas evangélicas, que cumprem papel fundamental na valorização das pessoas e das relações pessoais, o que aumenta a autoestima, desperta um espírito empreendedor nos indivíduos e fortalece laços de confiança e de fidelidade.
“A consolidação do individualismo, do discurso do mérito e do empreendedorismo encontra em personagens como João Doria um representante à altura do espírito do seu tempo”, observou Costa. De outro lado, a extrema-direita mira a classe trabalhadora, que já não se ancora mais nos tradicionais instrumentos de luta, chegando a adotar bandeiras que eram próprias da esquerda no que se refere ao trabalho, como nacionalizações e protecionismo para evitar que empregas migrassem para o exterior.
Parte 1
Parte 2
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Esquerda perde espaço nas periferias. Um debate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU