10 Março 2017
Passaram-se 40 anos da morte de Enrique Angelelli. Caiu a ditadura, a democracia foi restabelecida e vários presidentes constitucionais foram eleitos na Argentina. Mas ainda persiste o medo semeado pelos militares em seu regime de terror, independentemente do tempo e da distância. “Falta à Igreja verbalizar muitas coisas da ditadura; com este caso acontece o mesmo”, disse Luis Liberti, perito na causa de beatificação do bispo de La Rioja entre 1968 e 1976. Em entrevista ao Vatican Insider, ele contou detalhes desse processo e proporcionou um dado pouco conhecido: caso for bem sucedido, se poderá falar de “dom Angelelli e companheiros mártires”.
O bispo perdeu a vida em um estranho acidente de trânsito no dia 04 de agosto de 1976 em Sañogasta, localidade de Chilecito. O governo apressou-se a encerrar o caso como um infeliz acidente, embora seu corpo sem vida tenha apresentado vários golpes, como se tivesse sofrido diversos ataques. Em julho de 2014, foram condenados os autores intelectuais do homicídio, e nesse mesmo ano iniciou-se o processo eclesiástico.
A entrevista é de Andrés Beltramo Álvarez e publicada por Vatican Insider, 08-03-2017. A tradução é de André Langer.
Qual é a situação atual da causa de canonização?
Em outubro de 2016, foi concluído o processo diocesano, que durou um ano e oito meses; a partir de então, a causa foi trazida ao Vaticano. É importante assinalar que sua causa foi vinculada à de outros três assassinados antes dele, dois padres (Gabriel Longueville e Carlos Murias) e um leigo (Wenceslao Pedernera). Agora esta é uma única causa. Dia 22 de julho de 1976 era o aniversário de Angelelli e nesse mesmo dia assassinaram os padres; esse foi seu “presente” de aniversário. No dia 26 do mesmo mês assassinaram o leigo e no dia 04 de agosto o bispo.
Os três foram vítimas do mesmo processo político?
Foi uma sucessão. Pessoas que ainda vivem contaram como o próprio Angelelli, quando estava investigando o assassinato destes dois sacerdotes em Chamical, estava convencido de que se tratava de um processo em espiral e que essa espiral acabaria com um “topete vermelho” assassinado, referindo-se a ele próprio. Quando termina a investigação, nesse mesmo dia é assassinado.
A morte de Angelelli foi, durante muitos anos, uma ferida da Igreja argentina. Continua aberta?
Houve momentos diferentes. A Igreja argentina ainda não verbalizou muitas coisas do tempo da ditadura militar. Nesse tempo existiu muito medo e mesmo tempos depois se manteve o medo de falar. Apenas agora, passados 40 anos, pode-se começar a falar ou a escrever sobre o tema. Com o processo de Angelelli, em La Rioja, aconteceu exatamente a mesma coisa. Há estudos sociológicos e investigações históricas que demonstram como essa Província foi a mais perseguida durante a ditadura por causa do bispo. Quem estava vinculado a Angelelli foi sequestrado, preso ou assassinado.
Mas sempre existiu certa convicção popular do seu assassinato, não?
Desde o primeiro momento, as pessoas próximas a ele sabiam que ele tinha sido assassinado; isso foi um vox populi. Mas a duríssima repressão que se seguiu imediatamente depois do fato criou um ambiente de medo que envolveu não somente as pessoas mais próximas a Angelelli, mas também as famílias destas pessoas. Isso agora as pessoas podem dizer. Seu sucessor, o bispo Bernardo Witte, iniciou uma causa eclesial bem precária, mas, lamentavelmente, não pôde levá-la adiante porque também não teve todo o apoio e as ferramentas. Muito tempo depois, iniciou-se o processo (contra os militares), por conta, principalmente, de uma de suas sobrinhas e pelo centro Tempo Latino-Americano. A Igreja envolveu-se graças a dom Carmelo Giaquinta e Jorge Mario Bergoglio, que, sendo presidente da Conferência Episcopal Argentina, pediu para fazer uma investigação eclesiástica.
Que foi a conclusão do julgamento?
Foi possível demonstrar que houve uma intenção clara de assassinato, mas não ficou claro quem de fato o matou. É impossível dizer: “esta foi a mão que o matou”. O julgamento constatou uma clara e contundente ação para matá-lo. As pessoas que foram responsabilizadas pelo incitamento deste crime nunca disseram quem realmente o matou. Esse é um ponto pendente.
A causa é apresentada como martírio?
Sim, assim foi apresentada.
Seguirá, portanto, o modelo de dom Romero?
Na América Latina, os assassinos eram batizados. É um caso muito similar (ao de Arnulfo Romero em El Salvador), os militares argentinos eram todos batizados na Santa Mãe Igreja. Existem algumas hipóteses para entender isso. Alguns teólogos fizeram reflexões a este respeito. Aqui não há um ódio direto e explícito à fé, mas existe um ódio à sua aplicação e à sua consequência fundamental: a justiça. Jon Sobrino e outros teólogos procuram explicar como na América Latina nos matamos entre católicos, apesar de termos a mesma fé. A principal diferença é a visão sobre a fé que se aplica, que se vive, que dignifica. Trata-se, antes, de um ódio ao que essa fé implica.
Qual é a opinião do Papa Francisco sobre a figura de Angelelli?
Ele acompanhou a causa como presidente da Conferência Episcopal, arcebispo de Buenos Aires e cardeal-primaz da Argentina. Quando se completaram os 30 anos da morte de Angelelli, ele fez uma homilia na qual destacou este homem como um grande pastor, de uma maneira muito literária e tomando aspectos do Evangelho. De sua figura, destacou o seguinte aspecto: um pastor que, em seu serviço, chegou ao extremo de dar a vida por suas ovelhas.
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Enrique Angelelli, 40 anos depois. “Falta à Igreja argentina verbalizar a ditadura” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU