26 Janeiro 2017
No princípio, eram o verbo e a verba. De meados dos anos 1980 em diante, a música do Carnaval de rua da Bahia adquiriu novas feições e expressividade e se impôs pouco a pouco no cenário nacional, a ponto de adquirir dimensões industriais, mover cofres abarrotados de dinheiro e incomodar ambas as partes, ao ser tomada como espelho referencial do neoliberalismo brasileiro sob Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A reportagem é de Pedro Alexandre Sanches, publicada por CartaCapital, 26-01-2017.
“Axé music” foi o apelido que se deu à aparente contradição em termos, à música rebolativa e apelativa que constrangia e rendia divisas ao presidente que era o príncipe brasileiro da sociologia.
Passaram-se três décadas, as jazidas se esgotaram e ambos, a axé music e o neoliberalismo à brasileira, enfrentaram choques de realidade e chegaram a ser dados como mortos.
O documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar estreia neste mês no país tropical “neo-neoliberal” e estabelece, a partir da Bahia natal e do pop, a primeira tentativa historiográfica em torno daquele tema que afugentava acadêmicos como a cruz afugenta o diabo dos católicos.
O diretor é o baiano Chico Kertész, de 36 anos, cineasta estreante egresso da publicidade e do marketing político. Ele é filho do político Mário Kertész, que foi homem forte do udenista-pefelista-demista Antonio Carlos Magalhães, rompeu com o carlismo em 1981 e se sagrou prefeito de Salvador pelo PMDB nas eleições municipais de 1985, no momento histórico em que o sucesso popular Fricote, de Luiz Caldas, dava partida informal à futura axé music.
O documentário legitima um gênero musical combatido em regra pela crítica cultural e tido repetidas vezes em anos recentes como decadente e/ou moribundo. No Carnaval deste ano, trios elétricos como os de Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Léo Santana disputarão as ruas com nomes do neoforró (Wesley Safadão, Aviões do Forró) e do neossertanejo (Matheus & Kauan).
Nos camarotes privados bancados por grandes marcas (sobretudo de cerveja), Carlinhos Brown e É o Tchan terão de sobreviver em meio a uma enxurrada de nomes não necessariamente carnavalescos do neossertanejo (Marília Mendonça, Luan Santana, Gusttavo Lima), do funk (Anitta) e do neossamba (Péricles, Xande de Pilares).
“Percebi que os documentos históricos que tínhamos da trajetória baiana eram muito pobres”, Chico justifica a decisão de filmar o fenômeno onipotente em meados dos anos 1990, quando encampado por dez entre dez gravadoras multinacionais estabelecidas no País.
“Não tinha um livro, um filme, nenhum documentário. Me deu vontade de fazer.” Axé - Canto do Povo de um Lugar apoia-se em mais de cem entrevistas de artistas, empresários, donos de bloco etc. Todo mundo está lá, dos inventores da axé aos patronos tropicalistas Gilberto Gil e Caetano Veloso. “Foi um gesto de afirmação do preto baiano”, afirma Caetano a certa altura, deixando de lado as implicações políticas do movimento e sublinhando o confronto racial subjacente ao levante axé.
A quem tenha sempre obedecido aos preconceitos da crítica cultural contra a música brasileira de maior poder comunicativo, Axé revela uma dinâmica intrincada, de grande complexidade e, por que não dizer?, riqueza cultural.
Tonho Matéria, do pioneiro bloco afro Olodum, põe combustível na fogueira racial ao lembrar que, de maneira análoga ao que aconteceu na aurora do samba carioca, músicos baianos de axé eram presos como “vagabundos e maconheiros” pela polícia, apenas por ostentar cabelos rastafári.
Com sutileza, o filme dá elementos para embaralhar o que foi tido genericamente como uma reprovação estética ao estilo musical com o espectro sempre negado do racismo à brasileira. Se a música axé foi tão importante para a cultura afrodescendente baiana, a resistência contra ela não seria também um tipo de racismo?
Kertész prefere contornar a fogueira a pulá-la. “Acho que é muito mais preconceito com a música popular, do povão, que mexe com a massa. Dizem que é mal tocada, que o refrão é chiclete, várias coisas que fazem as pessoas criarem esses preconceitos. O axé tem coisas lindas, como Baianidade Nagô, e por outro lado tem composição de Ivete Sangalo que fala ‘pepererê pepê pepê’ e fica só nisso. Dá pra entender um pouco o preconceito.”
A apropriação do axé afrodescendente pelos não negros não é tematizada diretamente, mas prevalece na eloquência de imagens que falam por si. “Isso vem revertendo com o passar do tempo. Eles deixam de estar na linha de trás e vêm para a frente”, afirma o diretor.
“Alguns críticos, como Letieres Leite, dizem que a decadência da música baiana vem porque parou de sugar da música preta os toques de candomblé, de onde surgiu tudo.” Líder da virtuosa Orquestra Rumpilezz, Letieres é músico negro baiano, cujo depoimento traz à baila o tema ainda não dissecado, como também não o é o poderio feminino no comando dos antes exclusivamente masculinos trios elétricos.
Ironicamente, o gênero musical que se confundiu com o neoliberalismo sob FHC hoje sofre com a sanha privatizadora do espaço público. “O Carnaval da Bahia passa por um momento de transformação absurda”, avalia Kertész. “O Carnaval hoje é todo feito dentro de camarotes.
O que era voltado para a rua vai se voltando cada vez mais para a privatização e para as festas internas. Estamos num momento nebuloso, no qual blocos não conseguem patrocínio e muitos nem vão sair neste ano. Imagine o Olodum sem patrocínio. Onde vamos chegar?”
O presidente do Olodum, João Jorge, confirma as dificuldades, que embaralham agora os percalços da axé ao longo da era petista e a atual crise econômica, política e institucional fomentada pelo golpe.
“Depois de um grande crescimento, de o Brasil tornar-se um país razoavelmente viável, a economia errou muito com a crise da democracia”, afirma João Jorge. “As empresas e os governos alegam dificuldade geral para patrocinar. Vai ser um Carnaval emblemático para o Olodum, os blocos afro e a música chamada axé.”
As mesmas práticas neoliberais que catapultaram a negritude musical baiana como indústria hoje voltam-se contra ela, especialmente na ponta mais pobre, e negra. “Os blocos afro vão à rua com a população que tem menos poder aquisitivo.
Salvador tem 86% de população negra. Os consumidores de qualquer produto, de absorvente a palito de fósforo, são negros. Quem consome cerveja em Salvador?”, pergunta João Jorge. As marcas seguem a manada e privilegiam o sertanejo nos camarotes.
“Você usa uma festa local para transferir recursos para outros lugares”, avalia. Ele mostra que, com a guinada mais-que-conservadora do Brasil, as portas se fecham em regime de parceria público-privada: “Nos últimos anos, houve apoio da Petrobras, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil. Neste momento, tudo indica que não haverá isso dessa forma”.
Quem se esgotou primeiro, o verbo ou a verba? Axé – Canto do Povo de um Lugar debruça-se mais na ascensão do que no declínio e não chega a vasculhar os impasses presentes da música que repovoou o espaço público baiano (e brasileiro) e alçou, sobretudo, mulheres, negros e nordestinos ao poder (cultural) local, antes mesmo que Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff os representassem no centro político.
Mais que refletir sobre uma dinâmica cultural, o documentário faz parte dela. Como acontece desde que o samba é samba, o sucesso comercial das microrrevoluções culturais afasta acadêmicos e gera a hostilidade de críticos culturais.
Quando declina, distancia-se no tempo e vira peça de museu, ganha a estranha autoridade de ser revisto pela crítica, pelo cinema, qualquer dia desses pela academia. Neoliberais ou socialistas, somos todos a axé music que amamos-e-detestamos. As contradições restam preservadas ao final de Axé, mas já não há armário, democrático ou de exceção, em que elas caibam.
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O axé vira documentário e entra para a história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU