25 Janeiro 2017
“A última vontade do nosso bispo era que seus restos fossem doados para pesquisa científica”. Foi o próprio Francesc Pardo Artigas, atual pastor de Girona, cidade que representa a alma da cultura catalã, sede do aeroporto vizinho a Barcelona, que anunciou em um comunicado aos fiéis de San Esteban a morte de dom Jaume Camprodon i Rovira, seu antecessor de 1973 a 2001.
A reportagem é de Domenico Agasso Jr e Fabrizio Assandri e publicada por Vatican Insider, 23-01-2017. A tradução é de André Langer.
Durante o funeral, quase surreal, celebrado na catedral, em uma das regiões mais secularizadas da península ibérica, havia o caixão, mas não o seu corpo não estava lá. A cripta preparada na catedral para conservar os restos dos bispos titulares permanecia fechada. “Ele estava consciente de que desde o primeiro infarto que teve, há anos, a medicina tinha feito muito por ele e, como forma de agradecimento, queria fazer a doação do seu corpo para poder ajudar a pesquisa de todas as doenças”, disse o seu sucessor. Portanto, seu corpo foi doado aos estudantes de Anatomia. A missa foi presidida por Pardo Artigas, em companhia de cardeais e bispos da região.
“Ele estava consciente – escreveu Pardo Artigas aos fiéis – de que desde o primeiro infarto que teve, há anos, a medicina tinha feito muito por ele e, como forma de agradecimento, queria fazer a doação do seu corpo para poder ajudar a pesquisa de todas as doenças”. Foi a própria diocese, “imediatamente depois da sua morte, que cumpriu a sua vontade”. O comunicado do bispo foi retomado no dia 27 de dezembro pela Conferência Episcopal da Espanha, um dia após a morte de Camprodon i Rovira. Pelo menos oficialmente, ninguém na Igreja se opôs à sua decisão.
Camprodon tinha acabado de completar 90 anos. Era um bispo do Concílio Vaticano II; em 2000 pediu publicamente perdão pelo comportamento da Igreja durante a ditadura franquista. Provocou algum alvoroço quando convidou os fiéis para falarem apenas em catalão; e há quem o compara com o Papa Francisco. Assim como Bergoglio, ele também renunciou aos aposentos do bispo no palácio episcopal. Também rejeitou o Creo de Sant Jordi, prestigioso reconhecimento do governo catalão.
Os fiéis lembram-se dele como um homem simples. Em sua última entrevista disse que suas melhores recordações como bispo eram as ordenações de jovens sacerdotes. “Simplicidade e afabilidade eram normais no bispo Jaume – disse sobre ele Carles Soler, outro bispo de Girona entre 2001 e 2008. Seus gestos e suas maneiras de agir nunca eram clamorosos; não queria chamar a atenção, mas ser sempre eficaz”. Este último gesto póstumo foi, sem dúvida, clamoroso. O próprio Camprodon o reconhece: “Se alguém se surpreender com o destino de meus restos mortais – escreveu no testamento –, saiba que decidi isso como contribuição à sociedade, da qual recebi tanto, e como gesto de comunhão com o pão partido e compartilhado na mesa da Eucaristia”. O funeral, como pediu, foi muito simples e “sem elogios para o defunto”.
Vatican Insider falou com dom Vincenzo Paglia, que justamente nestes dias começou seu trabalho, depois da nomeação do Papa Francisco de 15 de agosto de 2016, como novo presidente da Pontifícia Academia para a Vida.
Qual foi a primeira coisa que pensou quando tomou conhecimento da decisão de Jaume Camprodon i Rovira?
Conhecendo a personalidade do bispo, trata-se de um gesto de generosidade da parte dele. Seu agradecimento pela cura transformou-se na decisão de dar uma contribuição para novas pesquisas científicas, a favor dos outros. Recebeu ajuda para vencer um momento crítico da sua vida. Neste sentido, esse gesto, na minha opinião, tem um valor simbólico que não devemos generalizar, mas considerar com atenção. Demonstra, por um lado, a humanidade deste bispo e, por outro, inscreve-se nesta experiência particular sua, o que dá um valor simbólico à sua decisão. Não pretende ditar uma regra de comportamento generalizado. É bom destacar isso.
Um fiel poderia simplificar: “Então, não podemos cremar nossos corpos, mas podemos doar o nosso cadáver à ciência”?
Repito: encontramo-nos em um campo que seria o da exemplaridade e do simbolismo. A Congregação para a Doutrina da Fé falou recentemente sobre o tema da cremação para demarcá-la em uma perspectiva humanista, o que acho que reduziu muito as contradições: agora é um tema absolutamente passível de ser tratado. Da minha parte, creio que é importante conservar uma delicadeza em tudo o que se relaciona com a morte e seus ritos. Em uma sociedade que quer colocar de lado, esquecer ou exorcizar a morte, eu não jogaria tudo pelos ares.
Há uma linguagem, certos gestos, uma certa corporalidade que são importantes. Para aqueles que choram o seu ente querido. Esta linguagem nos ajuda a compreender também o sentido da morte do corpo, que deve ser cercado de afeto e amor, como fizemos durante séculos. A presença do corpo da pessoa defunta tem um peso para que se concretizem os sentimentos, para que sejam históricos, belos, profundos. Desde sempre a morte esteve cercada por um enorme pensamento de arte, de música, de arquitetura que expressa toda esta necessidade humana.
Então, não é de surpreender que no texto da Congregação para a Doutrina da Fé se considere a cremação, sim, mas desde que não anule a relação física, portanto, a beleza da presença dos cemitérios em lugares públicos, porque nos recordam uma comum perspectiva que devemos ter bem presente. Diante de todos os muros que se constroem, de todos os arames farpados que se estendem, eu creio que um lugar em que não existem muros é útil para compreender como se vive, e não apenas como se morre.
O caso do bispo espanhol pode melhorar a relação e o diálogo entre fé e ciência? Você, excelência, como interpreta, à luz da decisão do bispo espanhol, a relação (menos “filosófica” e mais prática) entre a fé e a técnica científica?
Esta decisão do bispo emérito de Girona toca um tema particularmente delicado, que é o da relação do humano com a ciência e a técnica, relação que está assumindo novas facetas. Enquanto no passado a técnica podia ser vista como um instrumento, hoje ela está se convertendo em uma cultura generalizada e onicompreensiva: nesta perspectiva, um diálogo entre o humanismo e a técnica é indispensável, sempre e quando não for completamente assertivo, porque se anularia em uma lógica que seria somente técnica.
A técnica, por sua natureza, não tem alma, não tem sonhos, não tem esse fio de mistério que é indispensável para a vida humana. Nem tudo pode ser encomendado à técnica, porque do contrário tudo seria encomendado ao mercado, a quem tem os meios para desenvolver a técnica e, ao final das contas, à lei do mais forte: os lucros e a exploração seriam riscos cada vez mais fortes. É por isso que a vida e a morte vinculadas pelo mistério são indispensáveis. Para um progresso científico que repete sempre a centralidade do ser humano, para um progresso científico verdadeiramente “humanista” e não regido por si mesmo.
O Pontífice o escolheu para presidente da Pontifícia Academia para a Vida. Quais são as considerações e os seus objetivos?
No dia 02 de janeiro começou uma nova perspectiva para a Academia para a Vida. Já na sua criação, a Academia escreveu seu mandato: está chamada, com respeito às grandes fronteiras da vida e das potencialidades e limites que vão surgindo em transformações históricas, que vão surgindo com a técnica, a explorar todas. Mas justamente para poder identificar essa indispensável perspectiva humanista à qual me referia antes.
Neste sentido, o termo ‘vida’ adquire um horizonte amplo, são consideradas todas as fronteiras do humano; é muito vasto e se ocupa de todas as questões que se relacionam com a biotecnologia, a bioética, a robótica, mas também a vida entendida como desenvolvimento das idades da existência e, portanto, não só a partir do nascimento, da juventude, até a vida adulta e à extensão inédita na história humana da idade anciã.
Abarca também temas pouco explorados: por exemplo, o sentido dos nove meses de simbiose de uma mãe com o seu bebê ou as fronteiras da exploração do chamado “útero de aluguel” ou da “maternidade substituta”. E depois está todo o tema da vida da ecologia humana, a relação com a poluição, as perspectivas de uma justiça inclusive no horizonte da medicina. Pensemos no problema da desigualdade na distribuição de remédios, na falta de direito às curas, que ainda não é visto como um direito humano do século XXI.
A Academia para a Vida não é alheia a uma reflexão sobre o tema do que destrói a vida massivamente, como as pandemias, as guerras, frente às quais parecem ter caído as rejeições que se criaram na consciência após a Segunda Guerra Mundial. Guerra quer dizer eliminar crianças, civis, mulheres, anciãos, vidas humanas brutalizadas e levadas à brutalidade, até a destruição da vida não apenas humana, mas também biológica. Deveríamos fazer-nos com seriedade a pergunta que fez dom Luigi Sturzo em meados do século passado. Se a guerra não é declarada oficialmente “contra a lei” do mundo, como a consciência do mundo chegou a fazê-lo com a escravidão e a tortura?
Esse é, parece-me, o fascinante e terrível horizonte que com a Pontifícia Academia para a Vida queremos enfrentar e explorar dialogando com todas as culturas.
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Bispo morre e doa o seu corpo à ciência. Paglia: quanta generosidade! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU