18 Janeiro 2017
Silêncio, a obra-prima do diretor novaiorquino, inspirado no romance de Shusaku Endo, oferece vias surpreendentes para fugir da confusão que parece reinar na atual condição eclesial, inclusive em relação às dinâmicas mais elementares do cristianismo.
A reportagem é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 16-01-2017. A tradução é de André Langer.
Às vezes, para ver o que é o cristianismo, são melhores algumas horas passadas no cinema do que 10 cursos de teologia ou de moral em pontifícias universidades. Aconteceu no passado com Pasolini e Benigni, com Roberto Bresson e Xavier Beauvois. E volta a acontecer agora com Martin Scorsese e seu filme Silêncio, inspirado (com uma gestação que durou décadas) no romance do escritor católico japonês Shusaku Endo, publicado em 1966. Uma obra-prima que, narrando uma história de quatro séculos atrás, oferece vias surpreendentes para fugir da confusão que parece reinar na atual condição eclesial em relação às dinâmicas mais elementares do cristianismo e com sua comunicação.
O filme é uma história de perseguição cristã, de fragilidades cristãs e de apostasia, na qual inclusive renegar publicamente a própria pertença à Igreja, por paradoxo da graça, transforma-se na ocasião mais real da experiência da redenção operada por Cristo, e de sua maneira incomparável para dar a salvação, sem medida.
A aventura cristã que Scorsese retoma é a dos missionários jesuítas e dos cristãos “ocultos” no Japão do século XVII. Aquelas comunidades suportavam e sofriam a perseguição cruel ordenada pelos shoguns. Chegou à Europa o rumor de que Cristóvão Ferreira, jesuíta português que animava os corações de seus irmãos com as narrações dos prodígios da evangelização nas duras terras japonesas, em meio à perseguição, apostatou. Dois de seus jovens alunos são enviados ao Japão para verificar as alarmantes notícias que circulam sobre seu professor. E assim, mergulham nas vicissitudes de camponeses e pescadores batizados, que vivem sua fé às escondidas, tratando de fugir das suspeitas das autoridades locais, que sempre estão à procura de cristãos para obrigá-los a abjurar mediante suplícios atrozes e perversos.
No filme de Scorsese, e no livro de Shusaku Endo, o cristianismo não é “uma religião superior para classes superiores” (Péguy). Para os camponeses e pescadores das ilhas japonesas, todo o dinamismo da fé cristã se reduz às suas características essenciais mínimas: a graça dos sacramentos é o tesouro que receberam e graças ao qual se sentem revestidos de Cristo, a fonte na qual constantemente querem matar sua sede dentro de uma condição humana marcada pela miséria e pela violência dos ferozes perseguidores. Os dois jesuítas, escondendo-se durante o dia, exercem em segredo sua missão sacerdotal pelas noites e percebem a grandeza e a necessidade, nessa condição tão difícil: a perseguição que cerca a todos é brutal e não tem nenhum motivo, expressa ódio gratuito, mesmo quando se trata de apresentar com o disfarce de razões pseudo-culturais, insistindo no teorema segundo o qual o cristianismo “não foi feito para o Japão”.
No filme de Scorsese, a perseguição é narrada cruamente, sem “protestos” indignados e sem suaves matizes hagiográficos. Antes de serem capturados, os dois jesuítas assistem impotentes ao martírio dos pobres camponeses que não podem dissimular sua fé ante gestos de apostasia (como pisotear as imagens sacras ou cuspir no crucifixo) que lhes pedem os perseguidores. O padre Paolo Rodrigues, protagonista principal da obra, vive o escândalo frente aos sofrimentos atrozes que os pobres suportam sem nenhum motivo, esses mesmos que deveriam ser os preferidos de Cristo, no “silêncio” de Deus. Não há nada de heroico nem de sublime na maneira como os pobres cristãos japoneses são assassinados quando se negam à apostasia. Existe só o absoluto ensimesmamento de seus suplícios com a paixão de Cristo, também assassinado “como malfeitor”.
Assim, graças ao gênio artístico de Scorsese e de Shusaku Endo, afastando-se da desmemoria e dos equívocos que os aparelhos “perseguicionistas” de todas as comunidades cristãs divulgam, o martírio cristão é reconhecido e narrado em suas características próprias. Os mártires, na sua participação na morte e ressurreição de Cristo, aplicam a salvação de Cristo aos homens de sua geração. E a Igreja nunca “protestou” pelos mártires: em sua “memória”, a liturgia sempre celebrou o martírio de Cristo, que prossegue pela salvação do mundo.
Quem trai os padres jesuítas, que serão capturados, é Kichijiro, o cristão pusilânime que em mais de uma ocasião, ao longo do filme, renega a sua fé para depois pedir cada vez o perdão pelas traições e recaídas. Kichijiro declara que não é capaz de viver em uma época em que para não renegar a fé é preciso estar pronto para o martírio. Para justificar-se, afirma que em tempos “normais” também ele teria sido um bom cristão como os outros e não seria preciso reprovar nada nele. O padre Rodrigues nunca lhe nega a absolvição na confissão nem o perdão sacramental, inclusive quando ele mesmo se encontra vivendo como prisioneiro apóstata e não se sente digno de exercer o sacerdócio.
Dessa maneira, Scorsese ajuda a reconhecer que a natureza humana, debilitada pelo pecado original, permanece frágil. Que pode trair e continuar traindo. Que até a coragem é um dom que não se pode pretender nem pressupor. Só se pode descrever com agradecimento, quando acontece. E o padre Rodrigues administra durante toda a sua vida os sacramentos, inclusive a Kichijiro, porque conta com a eficácia da graça que transmitem. Assim, confessa, com toda a história da Igreja, que os sacramentos não são apenas o prêmio para quem os merece, mas um tesouro que é preciso oferecer a quem não é digno, como fez Jesus.
Sob o peso do suplício físico e psicológico da perseguição, Silêncio transforma-se também em uma história de quedas, de ruínas e fracassos, de suspeitas e desencantos. Os inquisidores japoneses acreditam que poderão podar na raiz o florescer cristão nessas ilhas se conseguirem que os missionários cometam apostasia. Levam o padre Rodrigues a visitar o apóstata Ferreira, para que este induza seu irmão jesuíta pelo mesmo caminho. E os argumentos que o ex-professor utiliza com seu ex-discípulo, além de teorizar a impermeabilidade dos japoneses ao cristianismo, anulam qualquer pretensão de conceber a evangelização como uma prestação própria, fruto da própria coerência e fidelidade, na qual comprazer-se a si mesmo e os próprios planos missionários. Os inquisidores pedem-lhe que pise a tabuinha de madeira que representa Jesus, para salvar com esse gesto de formal e pública apostasia cinco de seus amigos cristãos torturados em uma fossa (na qual os condenados eram pendurados de cabeça para baixo com pequenas incisões atrás da orelha, pelas quais iam perdendo o sangue gota a gota, em uma terrível e longa agonia). No livro de Shusaku Endo, as palavras de Ferreira lhe reprovam não apostatar apenas por amor próprio, mas para não converter-se em um desses que são considerados o pior da Igreja, e para salvar-se, sem se importar com a vida desses cinco pobrezinhos, evidentemente considerados “inferiores”.
Rodrigues toca sua impotência. Também seu ímpeto de jovem missionário generoso, pronto para sacrificar sua vida por Cristo, desmorona. Mas, justamente sua queda, esse gesto sacrílego que certifica publicamente sua apostasia, transforma-se para ele no momento mais íntimo de encontro com Cristo, transforma-se na ocasião mais inesperada para admirar como opera sua salvação. Porque é o rosto do próprio Cristo, da tabuinha que lhe pedem para pisar, que o convida a confiar, a não ter medo, e lhe promete carregar sobre si toda a dor do missionário fracassado (“Pisa! Pisa! Eu sei melhor do que ninguém quão cheio de dor está o teu pé. Pisa! Para ser pisoteado pelos homens eu vim a este mundo. Para compartilhar a dor dos homens carreguei a cruz”).
Quando Rodrigues apoia seu pé e todo o seu ser sobre a imagem do Filho de Deus, justamente esse gesto sacrílego transforma-se, na realidade, em uma inigualável confissão de fé.
Depois da apostasia, o padre Paolo Rodrigues viverá até o último dos dias em uma espécie de jaula de ouro, com uma esposa e um nome japoneses impostos por seus perseguidores. Alguns detalhes que Scorsese mostra no final deixam ver que seu coração de apóstata nunca será abandonado pelo amor de Cristo, até o final.
“Para mim”, declarou Martin Scorsese na entrevista que concedeu ao padre Antonio Spadaro e publicada na La Civiltà Cattolica, “tudo se reduz à questão da graça. A graça é algo que acontece ao longo da vida. Vem quando menos se espera”. O filme de Scorsese tem as conotações de um dom inesperado, justamente em sua vertiginosa intuição das características essenciais da experiência cristã. Uma vertigem com respeito à qual resultam patéticas e grotescas as polêmicas clericais que procuram explorar até o filme de Scorsese para refrescar ressentimentos sobre o espírito missionário da Igreja, insinuando algum tipo de conexão com os reiterados apelos do Papa Francisco para reconhecer que a Igreja “não cresce por proselitismos, mas por atração”.
O grande filme de Scorsese é um dom inesperado, inclusive porque deixa ver justamente a verdadeira fonte que sempre alimentou o autêntico dinamismo missionário da Igreja. Como escrevia Joseph Ratzinger, quando participou como perito teólogo na redação do texto conciliar “De missionibus” durante o Concílio Vaticano II, a missão, para a Igreja, “não é uma batalha para capturar os outros ou trazê-los ao próprio grupo”. Não pode ser concebida como uma conquista de almas operada pela Igreja por força própria, em lugar e por conta de Cristo. A missão de anunciar a salvação de cristo, explicou o futuro Bento XVI, só pode surgir como reflexo do atrativo da graça. E justamente e só por isso, não se trata de uma atividade “opcional”, porque uma Igreja encerrada em sua autossuficiência ou preocupada em se promover e aumentar a si mesma, em vez de anunciar o Evangelho, não seria a Igreja de Cristo.
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Graças a Deus, existe Scorsese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU