13 Janeiro 2017
“Nascido de uma rebelião, o mundo protestante não poderia impedir novas rebeliões no seu interior e se tornaria, mesmo a despeito dos seus pais fundadores, um mundo plural em que convicções e práticas religiosas são livres e em que os homens, pouco a pouco, aprenderam a conviver, embora tenham opiniões diferentes sobre Deus e os seus preceitos.”
A análise é do historiador italiano Massimo Firpo, ex-professor da Universidade de Turim e da Scuola Normale Superiore di Pisa, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 08-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Quando afixou as suas 95 teses na porta da Schlosskirche de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, véspera de Todos os Santos, Martinho Lutero não tinha nenhuma intenção de provocar o abalo que se seguiria. Ele era um monge agostiniano, educado a uma fé e imerso em uma teologia ainda totalmente medievais. Tinha entrado no mosteiro para honrar um voto proferido em um momento de medo e confusão, e tinha estudado nos textos da escolástica tardia a doutrina que ele ensinava na sua cátedra universitária.
Muito distantes dele eram as sutilezas literárias e filológicas da grande cultura humanística que, da Itália, irradiava toda a Europa e encontrava em Erasmo o seu mais ilustre mestre. Cada vez mais, porém, aquela fé e aquela teologia lhe pareciam inadequadas para responder às suas inquietações religiosas, à devastadora convicção de que nunca, nunca, por mais que se empenhasse na mais severa disciplina ascética e penitencial, ele poderia ser digno da justiça de Deus e, portanto, alcançar a eterna salvação.
Durante anos, Lutero se atormentou sobre essa questão crucial, até encontrar a resposta nas cartas de São Paulo, que ele lia nos seus cursos: “Iustus ex fide vivit” (Rm 1, 17; Gl 3, 11), “o justo viverá pela fé”. Nada que o homem possa fazer é ser capaz de torná-lo justo aos olhos de Deus, mas, na sua infinita misericórdia, Deus dá (“imputa”) a Sua justiça aos homens, contanto que eles creiam no valor salvífico do sacrifício de Cristo sobre a cruz. Nenhuma obra boa, nenhuma penitência pode se tornar um mérito aos olhos de Deus; ao contrário, iludir-se de conquistar o reino dos céus com as próprias forças é um caminho certo para a perdição. Não são as obras boas que tornam o homem justo, mas é o homem tornado justo pela fé que faz obras boas.
Compreende-se, portanto, a indignação de Lutero com a brutal crueza com que o dominicano Johann Tetzel pregava as indulgências, de fato, pondo à venda pedaços de papel que – graças ao inesgotável patrimônio dos méritos de Cristo conservado pela Igreja – permitiriam que os fiéis conquistassem o perdão de Deus ou livrassem os seus entes queridos das penas do purgatório. Uma repugnante negociata simoníaca, em suma, por sua vez fruto de uma complicada operação financeira entre a Cúria Romana e o arcebispo de Mainz, Alberto de Hohenzollern, cujos frutos eram destinados para repor a insaciável bolsa do Papa Leão X e para financiar a construção da Basílica de São Pedro.
Foi a sua experiência de pastor e confessor que fez com que ele entendesse o perigo em que tantas almas ignaras eram jogadas por aquelas mentiras inescrupulosas. “Sobre tudo isso, eu já não podia mais calar”, ele teve a coragem de escrever ao próprio arcebispo, advertindo-o severamente sobre o que acontecia na sua diocese: “Disso, o senhor terá que prestar contas duramente, e a conta sobe a cada dia”.
Por isso, decidiu afixar as teses, que, no entanto, não pretendiam incendiar o mundo, mas apenas desafiar os teólogos à discussão acadêmica e colocar uma contenção doutrinal aos excessos de Tetzel, embora nelas se podiam ler afirmações perturbadoras. Por exemplo, que “qualquer cristão verdadeiro, seja vivo, seja morto, tem participação em todos os bens de Cristo e da Igreja, por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgência” (n. 37); que “ quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus” (n. 45); que “ se o papa soubesse das exações dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a Basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas” (n. 50); que “seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências” (n. 72).
O próprio monge saxônico ficou bem longe de perceber imediatamente todas as consequências da justificação pela fé. Se apenas esta última, de fato, é capaz de salvar os homens, e eles não são capazes de fazer nada para obtê-la, segue-se daí que somente Deus, dando a fé, decide ou, melhor dizendo, decidiu ab aeterno, quem se salva e quem não: com todos os inexoráveis labirintos e as antinomias em que deságua a doutrina da predestinação. E se somente a fé é capaz de salvar os homens, esgotam-se todas as funções da Igreja visível como mediadora carismática entre o povo cristão e Deus. Não mais instituição hierárquica, a Igreja se torna apenas a comunidade dos crentes, sem mais um clero distinto do laicato em virtude da unção sacerdotal e, portanto, não mais vinculado à obrigação do celibato, e a sua tradição magisterial perde toda legitimidade, porque a doutrina cristã é confiada exclusivamente à palavra de Deus. Sola fides e sola Scriptura se tornariam, assim, os dois fundamentos da Igreja luterana. Decorrerão daí a abolição da missa, a redução dos sacramentos a batismo e eucaristia, a rejeição dos votos monásticos, do purgatório, do culto dos santos, da veneração das imagens, dos jejuns.
Insinuando-se entre os múltiplos conflitos internos de uma Alemanha imensa e fragmentada, onde era fraquíssima a autoridade imperial, a palavra inflamada de Lutero não tardou a se difundir com a extraordinária rapidez garantida pela nova arte da imprensa. Os conventos e os mosteiros começaram a se esvaziar, enquanto difusas tensões proféticas e milenaristas desaguariam, depois, na sangrenta guerra dos camponeses de 1524-1525.
O próprio Lutero, em torno de 1519, convenceu-se de que o fim do tempo já era iminente, e que, portanto, o papa romano, invenção de Satanás, era nem mais nem menos do que o Anticristo que o anunciava. Em um curto espaço de tempo, os espaços de acordo e de mediação se esgotaram. Os grandes tratados de Lutero que apareceram em 1520, verdadeiros textos fundadores da Reforma, “A liberdade do cristão”, “O cativeiro babilônico da Igreja de Roma” e “À nobreza cristã da nação alemã”, acompanharam a excomunhão contemporânea proclamada por Leão X com a bula Exsurge domine, que o reformador saxônico jogou no fogo junto com o Código de Direito Canônico na praça de Wittenberg.
Convocado para a Dieta de Worms, na presença do jovem Carlos V de Habsburgo, rei da Espanha, príncipe de Borgonha e Sacro Imperador Romano, Lutero se recusou a retratar uma única palavra dos seus escritos se não lhe fosse demonstrado, com a Bíblia na mão, onde e por que ele estava errado. Banido do Império, ele se refugiou em um castelo do eleitor da Saxônia, onde traduziu a Bíblia ao alemão, oferecendo, assim, a toda a Alemanha a língua comum em que a palavra de Deus era pregada.
É bom ter em mente que abolir o clero e a Igreja papal significava eliminar o pilar mais sólido e antigo da ordem política e social, um formidável poder material e moral, fundado sobre a santidade da religião, dos seus ritos, das suas palavras, das suas hierarquias, sobre enormes recursos fundiários e financeiros, sobre um prestígio enraizado em um milênio e meio de cristianismo, que se tornou modo de ser e sentir, de entender e julgar, de temer e esperar. Não é de se admirar, portanto, que as cidades e os príncipes alemães rapidamente se envolveram nos acontecimentos da Reforma, apoderando-se daquela mensagem religiosa e daquelas riquezas para se libertarem para sempre do poder imperial.
É bom lembrar que o longo e árduo processo histórico que, no século XIX, daria à luz um Estado unitário alemão não se desenvolveu em torno dos Habsburgos, herdeiros de Carlos Magno e de Carlos V, mas em torno de um dos principais beneficiários da secularização dos bens eclesiásticos, aquele Margrave de Brandenburgo da Casa de Hohenzollern, que, com o tempo, se tornaria duque e, depois, rei da Prússia e, por fim, Kaiser do Reich.
Aliás, foi só onde príncipes e reis aderiram à Reforma que ela teve um sucesso duradouro, como na Dinamarca, na Suécia, na Inglaterra, enquanto isso não ocorreu na França e na Espanha, onde um forte poder soberano já tinha conseguido assumir o controle da Igreja e dos seus recursos econômicos.
Entre as muitas batalhas que Lutero teve que enfrentar, particularmente insidiosa foi aquela com Erasmo que, depois de ter se calado durante anos, deixando que Eleutherium audacem combatesse a sua batalha contra uma Cúria Romana corrupta e uma fé objetificada e supersticiosa, atacou-o em defesa do livre-arbítrio, fundamento da responsabilidade moral de cada homem, obrigando-o a defender a tese contrária e, com ela, a predestinação, contrapondo a um cristianismo ético totalmente fundamentado na inspiração de fraternidade e caridade do evangelho o seu cristianismo teológico totalmente fundamentado na letra da palavra de Deus.
Nos anos seguintes, ele poderia ver, enfim, o sucesso em toda a Europa do Norte das novas Igrejas que surgiram do seu magistério, todas submetidas ao poder dos príncipes e fundadas sobre o texto da confissão apresentada em 1530 à Dieta de Augsburgo (a Confessio Augustana, justamente), que, durante séculos, constituiria o fundamento da doutrina luterana.
Ele morreria no dia 18 de fevereiro de 1546, aos 63 anos, cercado pelo afeto da esposa, Catarina von Bora, desposada em 1525, dos inúmeros filhos tidos com ela, por enxames de discípulos adoradores, comprazido com o que tinha feito, mas atribuindo o seu mérito apenas à vontade de Deus: “Eu me inclinei contra todos os papistas; constituí-me opositor implacável do papa e das indulgências. Mas não apelei à força, à perseguição, à rebelião. Não fiz nada mais do que difundir, pregar, inculcar a Palavra de Deus: não fiz nada mais. De modo que, quando eu dormia e quando bebia a cerveja em Wittenberg [...] a palavra de Deus operou tais coisas pelas quais o papado caiu, como nenhum príncipe e nenhum imperador poderia fazê-lo cair. Eu não fiz nada: a palavra de Deus determinou o sucesso da minha pregação”. Tudo nele era fé ou, melhor, a sua fé, até mesmo a explosiva violência com que soube propô-la, deixando um rastro indelével em toda a história europeia.
Com o nascimento da Igreja luterana, esgotou-se definitivamente a respublica christiana, cada vez mais fragmentada pelos processos de confessionalização que, ao lado e depois de Lutero, viram se somar na história europeia outros reformadores e ainda mais radicais, Zuínglio, Calvino, as Igrejas suíças e holandesas, os anabatistas e os antitrinitários que depois se tornaram socinianos, os puritanos, os quakers, o irredutível mundo sectário e radical que, durante a revolução inglesa, induziria alguns a denunciarem a Gangraena das mil heresias que tinham invadido a Igreja Anglicana.
Nascido de uma rebelião, em suma, o mundo protestante não poderia impedir novas rebeliões no seu interior e se tornaria, mesmo a despeito dos seus pais fundadores, um mundo plural em que convicções e práticas religiosas são livres e em que os homens, pouco a pouco, aprenderam a conviver, embora tenham opiniões diferentes sobre Deus e os seus preceitos e O honram de modo diferente, ou talvez não acreditem em qualquer Deus.
Aquela que Jacques Benigne Bossuet denunciava em 1688 como a eterna condenação do mundo reformado a se dividir e a se despedaçar, uma vez desaparecido o fundamento último da autoridade papal, em uma perene Histoire des variations des Églises Protestantes, se tornaria, ao longo do tempo, uma riqueza e um recurso. Heterogênese dos fins, como sempre na história.
Hoje, os teólogos católicos e luteranos se armam com novas utopias ecumênicas para assinarem fórmulas de concórdia sobre as questões religiosas que, há meio milênio, dividiram a Europa ao longo de duras fronteiras religiosas e políticas marcadas por guerras, massacres, perseguições e violências de todos os tipos.
Viva Deus, melhor a paz do que a guerra, a tolerância do que a intolerância, mas é bom não esquecer aquelas perseguições e violências, também para não tratar a história (e a teologia) como uma vacilante bandeirinha que, de vez em quando, é pintada de novo para adaptá-la às exigências do presente.
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Lutero, revolucionário por acaso. Artigo de Massimo Firpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU