02 Dezembro 2016
“Os Estados Unidos sentem a ameaça. Pode ser devido ao fim do seu reinado, ao ocaso do capitalismo ou à decadência do Ocidente. Os sujeitos intimidados ou assustados – sejam países, impérios ou pessoas – se entrincheiram e robustecem seus aspectos mais reacionários, ou buscam escapatórias tomando decisões extravagantes. Com estes dois esquemas deve-se interpretar hoje o povo norte-americano escolhendo Donald Trump. Passar de repente de um presidente negro a um fanático racista revela certo desequilíbrio de uma sociedade”. A reflexão é de Fernando Braga Menéndez, membro do Instituto de Estudos da América Latina, em artigo publicado por Página/12, 30-11-2016. A tradução é de André Langer.
Grande parte do povo norte-americano está agindo a partir de um velado e crescente desespero, fruto da armadilha em que está sendo encurralado pelo seu próprio sistema de vida. A sua recente conduta eleitoral é sintoma suficiente.
Os americanos chegaram às eleições com candidatos que não eram capazes de seduzi-los e acabaram elegendo um presidente tosco, bizarro, imprevisível e perigoso. Um dos tantos paradoxos que esta situação desencadeia é que se supõe que quem irá reivindicar os trabalhadores pobres e desempregados será um bilionário ultradireita, ególatra e individualista, que nunca, pelo que se sabe, se interessou pelos pobres. Embora, talvez, possa ser verdade, porque se supõe – mesmo que não se diga – que salvaria esses americanos que estão sem trabalho nem salário, prejudicando os trabalhadores dos países mais pobres e periféricos. Sabe-se que os Estados Unidos, quando as coisas apertam, exportam seus flagelos para os países mais fracos.
O americano comum sabe que os Estados Unidos, a potência n. 1 do mundo, conta hoje com 40 milhões de pobres e que ele, da noite para o dia, de repente, pode engrossar esse exército. Ele também sabe que com a crise dos subprime, nove milhões de famílias perderam suas casas (e não esquece de que essa foi uma gigantesca farsa inventada pelos grandes bancos, aqueles que souberam simbolizar um mundo austero de levita e galeras negras, que fora outrora tão sólido, confiável e admirado). Sabe que os 4% hiper privilegiados da população dispõem de 78% dos bens, riquezas e rendas do país, e que os 96% restantes devem repartir entre si os restantes 22%.
Além disso, eles vivem obcecados pelas deslocalizações, que é a fuga de fábricas e empresas para lugares distantes em busca de salários baixos. Em 15 anos, 49.700 empresas migraram para a Ásia com esse critério. Aprenderam também como as ameaças de deslocalizações colocam de joelhos os seus sindicatos operários, e assim já não têm reivindicação para negociar nem direito a defender. Eles sabem que os norte-americanos que trabalham em “serviços” (por exemplo, como caixa de supermercado) festejam e se sentem a salvo, porque esse seu supermercado não se mudará para Bangladesh ou para a Indonésia. Mas, os desempregados de outras deslocalizações, mais cedo ou mais tarde, baterão às portas desse supermercado para oferecer-se a trabalhar por um salário menor, e ela [a caixa do supermercado] – mesmo sem deslocalização – acabará perdendo o seu salário ou, na melhor das hipóteses, será rebaixado.
Os Estados Unidos foram os donos do mundo durante 150 anos, de modo especial durante os últimos 50 anos do século XX. Faziam o que queriam, intrometeram-se grosseiramente na vida privada e interna de todos os países, blindados e autojustificados pela abjeta ideia do Destino Manifesto (a Divina Providência teria decidido que os ianques – devido às suas incríveis virtudes WASP – dirigiriam todos os povos do mundo pelo bom caminho). Essa fantasia da própria supremacia torna, hoje, ainda mais conflituosa e dolorosa esta longa e lenta decadência. Sim, lenta; não esqueçamos que eles se refugiaram em um poderio militar infinito que, embora não garanta a perpetuação do seu reinado, lhes garante a oportunidade de aterrorizar e extorquir o planeta por mais algum tempo.
Os setores mais cultos e honestos dos Estados Unidos, não dispostos a auto-enganos, registram que são a sociedade com mais desequilibrados que saem às ruas para matar pessoas a tiros e ao acaso, com mais consumo de cocaína, barbitúricos, tranquilizantes e estimulantes per capita, com mais obesos para cada 100 mil habitantes, com mais pessoas presas em calabouços (2.400.000, 40% de negros, sendo que são 6% da população), com execuções arbitrárias de negros por policiais que não são condenados e que são aprovados secretamente por vastos setores da população.
Eles também registram indícios muito sutis: que, hoje, a miserável China de há apenas 50 anos é a locomotiva do mundo, ou, por exemplo, que a General Electric, essa companhia tão querida, fundada por Tomás Alva Edison, que produziu com orgulho durante décadas desde satélites espaciais ou turbinas para grandes aeronaves até secadores de cabelo, decidiu deixar de produzir e dedicar-se à especulação financeira. Seguem cobrando direitos sobre patentes que ainda não venceram, mas ganham mais nos assépticos escritórios de Wall Street, concebendo maquiavélicos apertos sobre dívidas reais ou fictícias dos 150 países mais pobres do mundo. Sem fabricar nada e sem milhares de operários e engenheiros naquelas sujas fábricas, grandes e barulhentas.
Os Estados Unidos sentem a ameaça. Pode ser devido ao fim do seu reinado, ao ocaso do capitalismo ou à decadência do Ocidente.
Os sujeitos intimidados ou assustados – sejam países, impérios ou pessoas – se entrincheiram e robustecem seus aspectos mais reacionários, ou buscam escapatórias tomando decisões extravagantes. Com estes dois esquemas deve-se interpretar hoje o povo norte-americano escolhendo Donald Trump. Passar de repente de um presidente negro a um fanático racista revela certo desequilíbrio de uma sociedade.
Os americanos que se interessam pela história universal hoje sentem arrepios quando chegam à queda do Império Romano no século IV da nossa era.
Era a única superpotência hegemônica do mundo nesse momento, o fosso entre ricos e pobres aumentava de maneira assustadora, as autoridades eram escolhidas apenas entre os mais poderosos, o orçamento militar era impressionante e sua manutenção empobrecia o país, tentavam fortalecer o Império com permanentes guerras de conquista e o saque das riquezas de outros povos, instalavam dispendiosas bases militares em territórios distantes, distraíam dessa ruína entretendo as pessoas com circo e jogando cristãos aos leões, mudaram um exército formado por homens do povo pela contratação de mercenários, os indocumentados podiam ganhar a cidadania romana em troca de ir às guerras, etc., etc. É compreensível que o atual cidadão americano que estuda a história sinta arrepios.
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Estados Unidos, um povo perturbado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU