24 Novembro 2016
Diante do caixão com o corpo do filho, o pastor Leonardo Martins da Silva tira o smartphone do bolso e mexe na tela como quem checaria uma mensagem. No aparelho, começa a tocar uma canção evangélica - o som abafado marca os últimos momentos do velório. Em seguida, ele puxa o véu branco sobre o rosto do filho, a única parte do corpo à mostra sob uma cama de flores brancas. Sai de seu lado por um instante e volta com a tampa do caixão.
Leonardo Martins da Silva Júnior, conhecido como Pula Pula, foi um dos sete jovens assassinados na Cidade de Deus, favela na zona oeste do Rio de Janeiro, na noite de sábado para domingo. Segundo o pai, ele tinha duas passagens pela polícia e completaria 21 anos nesta quarta-feira."As pessoas que falam que 'tem que morrer mesmo', que foi uma operação bem-sucedida, elas falam isso porque não é o filho delas", diz ele. "Para essas pessoas eu diria: vem conviver aqui na comunidade. Qualquer comunidade. Na Maré, na Rocinha. Vem viver aqui dentro."
No domingo pela manhã, quando notícias das mortes se espalhavam pela comunidade, o pastor ajudou a mobilizar um grupo de cerca de cem pessoas que entrou na mata para buscar os corpos.A polícia investiga o assassinato dos sete jovens, ocorrido em uma localidade da comunidade conhecida como Karatê no mesmo dia em que quatro policiais morreram na queda de um helicóptero que participava de uma operação na favela.
De acordo com a polícia, a perícia feita em cinco dos sete corpos indica que não há sinais de execução - moradores acusam agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de terem executado o grupo.
Titular da Delegacia de Homicídios do Rio, o delegado da Polícia Civil Fábio Cardoso afirma que as diligências para identificar os autores e esclarecer as circunstâncias das mortes dos sete jovens continuam e seguem duas linhas investigativas - apurando se ocorreram em confrontos com milicianos ou com policiais.
Pastor da Assembleia de Deus, o Leonardo pai tem 45 anos e diz ter dedicado 14 deles à evangelização de traficantes durante a madrugada na Cidade de Deus.
O depoimento abaixo foi dado à BBC Brasil algumas horas antes de ele enterrar o filho no jazigo da família no cemitério Ricardo de Albuquerque, com vista para o Parque Olímpico de Deodoro e a logomarca da Rio 2016."Quando eu vi aquilo lá (os corpos na mata), a minha mente... Eu fiquei sem ação na hora. Não tinha como tirar foto, as garotas com a gente gritavam.... e eu falei: vamos levar todo mundo de volta.
Foi covardia. Muita covardia. O meu filho era dócil, carinhoso, meigo, brincalhão. Quando ele foi começar a trabalhar, acho que tinha 15 anos, foi vender doce ali na Barra da Tijuca, o delegado prendeu ele e falou que ele estava de vadiagem. Eu não entendi aquilo. Falou que ele estava de vadiagem. E aí deu no que deu. Depois ele colidiu com uma viatura da polícia, estava sem capacete. Forjaram a cena e disseram que ele estava com cocaína. Fomos para a Justiça e conseguimos inocentá-lo.
Meu filho era muito meigo. Era uma pessoa dócil. Mas essa revolta dele, não era para ele ser dessa forma. E aqueles jovens que morreram, eles eram tudo... tudo garotão. Eles viviam juntos. E morreram juntos. Barbaramente.
Eles são vítimas. Se fossem traficantes, a polícia tinha que apresentar as armas. Cadê as armas? Eles foram cruelmente executados, encontrados sem nada. Eu cresci aqui na comunidade. Vi o Zé Pequeno (traficante que chefiou a venda de drogas na comunidade, retratado no filme "Cidade de Deus"), vi tudo isso. Eu acho que as autoridades têm que ser mais presentes. Parar de ficar maquiando as coisas. A educação e a saúde ainda estão péssimas. A segurança, então, nem se fala.Sei que a educação parte de pai para filhos, mas se hoje entrar uma educação ética, vai mudar muita coisa.
Eu trabalhei de pesquisador para uma doutora da Colômbia. Na pesquisa que fiz para ela, eu vi os arquivos de 1888, quando houve a abolição da escravatura. Os arquivos diziam que quando teve a libertação dos escravos, em vez de eles apoiarem os trabalhadores que estavam aqui no Brasil, apoiaram a vinda de estrangeiros.
Ali que começou a guerra. Investiram nos estrangeiros e foram jogando o pessoal daqui para os morros. A primeira favela que surgiu é aquela perto do Comando Militar Leste (o Morro da Providência). Foram jogando as pessoas para os morros. E daí começou a diferença. Eu vi, eu peguei o livro na mão, está lá no Arquivo Nacional. Foi assim que começou a guerra.
Sou pastor itinerante da Assembleia de Deus. Nós tínhamos um grupo que evangelizava traficantes na madrugada. Não é uma obra fácil. Muita gente se converteu. Fiquei uns 14 anos na madrugada e saí por causa da minha saúde. Nessa época trabalhávamos com o pastor Joabe Domingos. Ele era um pastor de fibra. Muitos traficantes se converteram. Muitos aceitaram a palavra de Deus.
Eles falam que na Cidade de Deus todo mundo é traficante, todo mundo aqui é bicho, mas não é não. O pastor Joabe foi um guerreiro, não tenho palavras para explicar (começa a chorar). Ele ensinou a gente a amar essas vidas! Foi um pai para nós. Mais de 70% das pessoas foram convertidas na Cidade de Deus através dele.
Meu filho foi criado lá com ele. Foi batizado no Espírito Santo. E você acha que eu ia deixar aquelas vidas lá dentro do mato, que eu ia me omitir, com medo de opressão? Falaram que iam matar a gente se a gente entrasse. Não. Eu não tinha como deixar essas vidas lá.
Então quando a gente viu aqueles corpos lá, eu fiquei em estado de... (chora). Não só pelo meu filho, mas por todos eles, porque nós sempre evangelizamos na madrugada.
Eu quero dizer para qualquer comunidade: pense, antes de ir para o lugar errado. Porque o final é triste. É ilusório. Porque a crueldade vem. Mas uma coisa eu vou enfatizar: ninguém é maior que a justiça de Deus.
As pessoas que falam que 'tem que morrer mesmo', que foi uma operação bem-sucedida, elas falam isso porque não é o filho delas. Para essas pessoas eu diria: vem conviver aqui na comunidade. Qualquer comunidade. Na Maré, na Rocinha. Vem viver aqui dentro.
Eu diria que elas também têm filhos, têm esposas, maridos. A gente tem que fazer a diferença. Não é criticar e dizer 'tem que morrer mesmo'. Eu creio que quando eles fizeram aquilo ali com aqueles jovens, foi ali que o helicóptero caiu. Creio eu! Porque foi a maior injustiça. A Bíblia diz que o que se planta é o que se colhe. Eu creio que quando eles fizeram aquilo, o helicóptero caiu. E eu quero dizer para essas pessoas: eles têm famílias. Para pensarem nos seus filhos."
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"As pessoas dizem 'tem que morrer mesmo' porque não é o filho delas", afirma pai de jovem morto na Cidade de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU