19 Setembro 2016
“Utilizando um “Power Point”, com “frases de efeito e comunicação rápida visual” – como registrou em Zero Hora (17\18 set.) o jornalista Guilherme Mazuí – Dallagnol fez a fusão de um fundamentalismo religioso de escassa base republicana, com um messianismo autoritário, digno dos Processos de Moscou e dos Processos “legais”, da época do nazi-fascismo. Apontou, semeou mais um pouco de ódio contra o PT, denunciou, julgou e foi mais além: disse, publicamente, que o já “condenado” (conforme demonstrara o seu “Power Point”!) não poderia mais dizer “que não sabia”, completando a sua exposição, portanto, com uma restrição explícita ao direito de defesa do acusado”, escreve Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21, 18-09-2016.
Ele pergunta “em defesa do Estado de Direito: os Procuradores Federais no Brasil, são os Juízes “totais” de si mesmos, Magistrados do Direito e da Política, só porque tem o apoio irrestrito do oligopólio da mídia?”
“O Estado de Direito se derrete neste silêncio, omissivo e cúmplice – conclui Tarso Genro. Ele nos faz reféns do fundamentalismo religioso e do “decisionismo” jurídico, que pode, sim, também um dia, comer seus próprios filhos”.
Eis o artigo.
Deltan Dallagnol, mestrado em Harvard, pregador religioso batista, surfista que viaja para Indonésia para buscar ondas perfeitas, Procurador da República, 36 anos, tido como estudioso da “operação mãos limpas”, tem uma obsessão. É o que informam os seus colegas e celebram os jornalistas que lhe admiram: combater a corrupção no país. O que lhe diferencia, porém, não é esta obsessão. Ela é comum a milhões de brasileiros, servidores públicos, trabalhadores e empresários, membros do Judiciário, políticos de vários partidos e cidadãos comuns, que lutam todos os dias pela sobrevivência. O que lhe diferencia é a sua visão ideológica fundamentalista, o seu messianismo provinciano e a sua tendência ao autoritarismo de caráter fascista.
O espetáculo que o Procurador Dallagnol promoveu, recentemente, através de uma verborragia delirante, lamentavelmente nada tem a ver com o combate à corrupção. Muito menos com o “devido processo legal”, numa sociedade civilizada. Tem a ver, independentemente da sua vontade imediata, com a estabilização do golpe, que é feita através de uma seletividade de denúncias destinadas a fazer esquecer quem — neste momento — ocupa o poder, cujos propósitos nada tem a ver com a luta contra a corrupção. Tudo a ver com o “ajuste” liberal, para sucateamento de direitos e a redução drástica das funções públicas do Estado: a transformação do Estado, de estado provedor (mínimo) em estado pagador da dívida pública (máximo).
Utilizando um “Power Point”, com “frases de efeito e comunicação rápida visual” – como registrou em Zero Hora (17\18 set.) o jornalista Guilherme Mazuí – Dallagnol fez a fusão de um fundamentalismo religioso de escassa base republicana, com um messianismo autoritário, digno dos Processos de Moscou e dos Processos “legais”, da época do nazi-fascismo. Apontou, semeou mais um pouco de ódio contra o PT, denunciou, julgou e foi mais além: disse, publicamente, que o já “condenado” (conforme demonstrara o seu “Power Point”!) não poderia mais dizer “que não sabia”, completando a sua exposição, portanto, com uma restrição explícita ao direito de defesa do acusado. Não apresentou provas e não fez denúncia processual nem perto do que expôs, de maneira virulenta e desrespeitosa, ameaçando, ainda, o restante da família do ex-Presidente.
Este artigo não afirma que Lula é inocente, o que é trabalho para dos seus advogados. Nem que ele não deva ser investigado, o que ele mesmo registrou com humildade na sua fala de resposta. Registra, porém, uma visão crítica sobre como está funcionando o nosso Sistema de Justiça, neste momento difícil do Estado de Direito, para alertar que qualquer pessoa, submetida a um “Power Point” como aquele apresentado pelo Procurador Dallagnol, mesmo sem provas (e sem o contraditório realizado no próprio ato), está sendo submetida a um linchamento público, não a um processo judicial compatível com um Estado de Direito minimamente respeitável.
Em que convicções se fundamentaram as frases de efeito do jovem Procurador, que se avoca estar salvando a nação? É fácil de apontar. Em audiência com parlamentares em junho deste ano, repetindo juízos dramáticos proferidos em outras oportunidades, o Procurador sintetizou a sua visão de mundo e do Direito: “A corrupção é uma assassina sorrateira, invisível e de massa. Ela é um serial killer que se disfarça de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza.” (ZH 17\18 set). Tudo falso. Frases de efeito, sem fundamentação científica ou doutrinária, e pior: a partir da fórmula vulgar, de que a corrupção é uma “assassina sorrateira”, o Procurador transforma-a numa mera “impressão” cotidiana, que aparece diretamente na debilidade da s prestações públicas do Estado. Nesta fórmula, então, a corrupção não é um mecanismo clássico e visível de estabilização do poder, utilizado por todos os governos (tanto dentro como fora do Estado de Direito), mas um veneno promovido pela falta de ética e de religião (por sorrateira e invisível) como, aliás, é descrito o próprio diabo, nos diversos fundamentalismos de mercado.
Imputar as carências das prestações públicas à corrupção, todavia, não é um acidente. É uma afirmação que pertence a um conceito, não só sobre os motivos pelos quais emerge a corrupção (como se ela decorresse só da faltas éticas de pessoas que governam), mas também sobre os métodos mais adequados para combatê-la. Mas é conceito de um autoritarismo gritante, que permite dissolver a neutralidade formal do Estado que codifica e organiza os tipos penais, substituindo estes tipos penais pelas pessoas escolhidas para representá-los. O crime, que em si, é invisível (sorrateiro e “de massa”), que não é compreendido nem visto pelos comuns dos mortais, é apresentado ao vivo por pessoas escolhidas pela ideologia do inquisidor. Ao colocar o nome de Lula, sem provas, no centro d o seu diagrama, o Procurador desvela a “invisibilidade” e apresenta o seu criminoso preferencial, para o escárnio da plateia em transe.
Não trata, portanto, este método, de apontar com provas a corrupção, com base naquilo que está regulado pelo Direito do Estado, mas de escolher os criminosos através de critérios políticos, a partir de uma ética pessoal, fundamentalista e religiosa, que faz a inquisição de um mundo impuro controlado pelo mal. Tais pressupostos é que permitiram o Procurador Dallagnol adiantar que “Lula não pode mais negar”, ou seja, não pode mais se defender dizendo que “não sabia”, lembrando os recursos verborrágicos de Hitler, para acabar com a República de Weimar, acusando-a de corrupta e “antinacional” e que, por isso, não deveria sobreviver. Lembra, também, as acusações de “sabotagens” econômicas e de “espionagem”- feitas pelo Promotor Vishinsky contra os velhos bolcheviques nos Processos de Moscou- que criticavam o regime porque este não conseguira debelar a fome, e, por isso, eram traidores que não mereciam a presunção da inocência.
Vamos decompor este discurso do Procurador: a corrupção não é uma assassina “sorrateira”, nem “invisível”, nem “de massa”. Ela é um modo de fazer política — aberto e visível — de setores de partidos, de parte da plutocracia nacional, de setores de empresas e gestores públicos, que formaram o Estado Brasileiro tal qual ele é, cuja centralidade corrompida é a própria estrutura do Orçamento Público e o seu sistema político. O Orçamento reserva mais de um terço dos seus recursos — não para remédios e estradas — mas para sustentar os credores da dívida pública, os acumuladores sem trabalho, que hoje — na verdade — reinam com as suas receitas contra as crises, em todos os países endividados do mundo. A crença de que a corrupção é “sorrateira” e “invisível”, autoriza que tanto a sua visibilidade seja uma escolha, como a sua invisibilidade seja uma regra. Na verdade, os agentes da corrupção querem ser invisíveis e são sorrateiros, mas ela é um processo tão aberto e tão visível, que bastou ter um Governo que aparelhou os órgãos de controle e investigação no Brasil, que ela começou a ser combatida em vários setores da vida pública.
As “mãos limpas” e os processos do “mensalão” e da “lava jato” (embora tenham aberto um novo ciclo na luta contra a corrupção no Estado de Direito) geraram deformidades monstruosas nos seus objetivos, tais como na Itália com os 11 anos de Berlusconi, e aqui no Brasil, com um Governo com Temer, Jucá e Padilha. Isso quer dizer que a luta contra a corrupção é inútil? Jamais. Quer dizer que, se ela for implementada pelos métodos do messianismo religioso, em regra falsamente moralistas, e não for tratada como um processo complexo e profundo -institucional e cultural- no âmbito público e privado, dentro dos parâmetros consagrados no Estado de Direito, ela volta com mais força e com mais capacidade de se tornar impune.
A corrupção não é, portanto, nem “sorrateira” nem “invisível” nem “de massa”. Ela é visível, tão clara e determinável, que os nossos próprios marcos legais, não somente estimularam o surgimento de uma boa parte da “classe política” fundada na propina — face ao sistema político do financiamento dos partidos pelas empresas — mas, igualmente a fizeram crescer numa parte do empresariado, a partir do imperativo da sonegação, naturalizada como “legítima defesa”.
A corrupção, portanto, não está sequer representada pela “falta de remédios”, pelos “crimes de rua” ou pelos “buracos nas estradas”. Ela é bem mais “efeito” destas necessidades não satisfeitas por um Estado corrompido pelo culto dos juros manipulados, do que causa das carências dos serviços públicos. Dizer que a corrupção é “invisível”, é uma artimanha para que os tidos como corruptos “da vez” -presumidamente escondidos nesta invisibilidade - sejam “apontados”, justa ou injustamente, por decisões messiânicas a serviço de propósitos políticos imediatos. Por isso, os “decisionistas” — como homens da “exceção” — precisam de “Power Points” e frases de efeito, para montar os seus processos, onde o direito de defesa é lesionado e a presunção de inocência deixa de existir antes do processo judicial, cuja sentença é antecipada por entrevistas bombásticas.
Em 12 de março de 1938, no “terceiro processo de Moscou”, não tendo obtido provas, mas baseando-se em acusações de co-réus e dos réus devidamente torturados – naquele tempo não se usava a delação premiada — André Vychinsky, o Procurador, fez as suas alegações finais: “Todo o nosso país, jovens e velhos, espera e reclama uma só coisa: que os traidores e espiões que vendiam a nossa pátria ao inimigo sejam fuzilados como cães sarnosos! O nosso povo exige uma só coisa: que os répteis malditos sejam esmagados!” Ao apresentar publicamente a sua “convicção”, em entrevistas retumbantes, após centenas de matérias da mídia oligopólica — com vazamentos seletivos e interpretação sem contraditório — o Procurador Dallagnol já tornou os réus culpados absolutos, antes de começar o processo. Fez, assim, no começo, a peroração definitiva e terminativa, antes da aceitação da sua denúncia. Vyshinsky a fez no final dos procedimentos totalitários. A ordem não altera o fato de que ambos agiram contra o Direito civilizado.
O jurista do nazismo, Carl Schmitt, no artigo publicado em 30 de julho de 1934, “O Führer protege o direito” – ao examinar a conduta de Hitler na “noite das facas longas” em que este se posicionou contra a submissão do Exército Alemão às forças irregulares de Ernst Rohm (SA) — chancelou o direito ao assassinato de mais de 150 militantes do nacional-socialismo, autorizados por Hitler, com a seguinte fundamentação: “os atos de natureza política somente poderiam ser objeto de julgamento (“decisão) de um magistrado político, o Führer”. Pergunta que se impõe, em defesa do Estado de Direito: os Procuradores Federais no Brasil, são os Juízes “totais” de si mesmos, Magistrados do Direito e da Política, só porque tem o apoio irrestrito do oligopólio da mídia? O Estado de Direito se derrete neste silêncio, omissivo e cúmplice. Ele nos faz reféns do fundamentalismo religioso e do “decisionismo” jurídico, que pode, sim, também um dia, comer seus próprios filhos.
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Direito que se derrete em silêncio: de Vyshinsky a Deltan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU