07 Setembro 2016
"A teoria é erudita, mas a mensagem é clara: animais e mulheres têm muito em comum. Ambos são mercantilizados e tratados com violência, muitas vezes mutilados ou mortos. Ninguém pensaria nisso 25 anos atrás. Animais eram animais; pessoas eram pessoas. Mas agora sabemos que nós, também, somos animais, e que alguns animais têm sentimentos, inteligência elevada e que podem até mesmo se engajar em rituais. Infelizmente, temos também ciência de uma grande violência em comum".
O comentário é de Mary E. Hunt, teóloga feminista e uma das fundadoras e diretoras da Women’s Alliance for Theology, Ethics and Ritual – Water, em artigo sobre o livro A política sexual da carne. A relação entre o carnivorismo e a dominância masculina - The Sexual Politics of Meat: A feminist-vegetarian critical theory - (Alaúde: 2012), publicado por National Catholic Reporter, 31-08-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Carol J. Adams transformou o diálogo mundial em torno da alimentação. Ela é defensora ecofeminista-vegana, ativista, pesquisadora independente, autora de numerosos livros e incontáveis artigos. A crescente conscientização sobre a produção alimentar e o consumo no referente ao aquecimento global somente aumentou o interesse em sua obra.
A edição atual do “The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory (1990)” saiu pela Revelations Bloomsbury. A capa traz uma mulher vestindo apenas um chapéu com vários cortes de carne escritos em seu corpo. Assim como as mulheres são reificadas em propagandas e nas relações sociais, o mesmo ocorre também outros animais.
A teoria é erudita, mas a mensagem é clara: animais e mulheres têm muito em comum. Ambos são mercantilizados e tratados com violência, muitas vezes mutilados ou mortos.
(Imagem: divulgação)
Ninguém pensaria nisso 25 anos atrás. Animais eram animais; pessoas eram pessoas. Mas agora sabemos que nós, também, somos animais, e que alguns animais têm sentimentos, inteligência elevada e que podem até mesmo se engajar em rituais. Infelizmente, temos também ciência de uma grande violência em comum.
Um dos conceitos-chave empregados pela autora é o de “referente ausente”. Por exemplo, quando alguém diz: “Vamos almoçar”, o convite pode significar um sanduíche, o que normalmente é um hambúrguer, que é carne, o que, por sua vez, é gado, é a carne fresca de uma vaca que foi morta e cozida.
Da mesma forma, uma mulher que é abusada é chamada de “mulher espancada”, vítima ou sobrevivente de violência doméstica. Mas o referente ausente é um fulano, alguém que batia nela. Quando nos pomos à procura dos referentes ausentes, descobrimos o quão útil este conceito pode ser para desmascarar o poder e fazer a mudança.
O obra de Carol J. Adams é um testemunho contra a violência. Ela acrescenta uma outra categoria – a saber: o consumo de alimentos e o especismo – à intersetorialidade que inclui racismo, sexismo, classismo, heterossexismo e similares. Garfos e facas, assim como armas e lanças, podem ser instrumentos de violência.
Alguns vão zombar e acusá-la de um caso avançado de politicamente correto. Mas nada vincula as mudanças climáticas e a desigualdade econômica, os direitos dos animais e a justiça dos trabalhadores, o racismo e o sexismo como o faz o alimento.
Já na juventude, a autora era surpreendentemente criativa. Durante o mestrado em teologia, na Yale Divinity School, ela passou um ano em Boston onde teve aulas com a filósofa feminista Mary Daly. Conduziu grupos feministas ao Cemitério Mount Auburn, parando no túmulo de Mary Baker Eddy para ler excertos de “Science and Health With Key to the Scriptures” e, no túmulo de Fannie Farmer, onde depositou chocolates.
Auxiliada por sua memória quase fotográfica, Adams explorava e expandia os contornos da história feminista, sempre observando os comedores de carne e os vegetarianos.
O seu trabalho no ministério rural, com a criação de uma linha telefônica direta para mulheres abusadas por homens, concretiza a sua teoria. Matar mulheres e matar animais é tudo matança. No ato de comer carne, ela via as maneiras nas quais os corpos das mulheres e os corpos de outros animais são construídos, reificados e violados. Ela traçou as conexões com o racismo, o ecocídio e a guerra, sempre se perguntando por que as feministas abraçaram desde o começo a ecologia, mas só agora é que alguns ecologistas estão abraçando o feminismo.
Adams aprofundou a sua análise em “Neither Man nor Beast: Feminism and the Defense of Animals” (1994) e em “The Pornography of Meat” (2003).
Milhares de pessoas já viram o slideshow da autora intitulado “Sexual Politics of Meat”, que inclui propagandas, menus, camisetas, clipagens de imprensa e outros exemplos imagéticos de como as mulheres são animalizadas e como os animais são sexualizados para o detrimento mútuo de ambos.
O seu interesse precoce em religião e os seus instintos ministeriais são apresentados em “The Inner Art of Vegetarianism: Spiritual Practices for Body and Soul” (2000), onde ela ajuda os leitores a ver as ligações entre o que comemos e por que comemos. A autora escreveu orações para os animais e orações para os humanos que perderam os seus animais.
As diretrizes que ela traz para lidarmos com crianças que deixam de comer carne (ela encoraja os leitores a isso), sobre como ser uma pessoa vegana entre comedores de carne (ela incorpora o veganismo) e como se tornar vegano na vida (ela promove esta ideia) valem a pena ser compartilhadas.
Adams usa sua conta no Twitter regularmente. Tem livros populares sobre Jane Austen e Frankenstein, e está finalizando um livro de memórias sobre a guarda de seus pais idosos.
Duas antologias recentes centram-se na obra de Adams e mostram o seu impacto: “Defiant Daughters: 21 Women on Art, Activism, Animals, and The Sexual Politics of Meat”, editado por Kara Davis e Wendy Lee, é uma coletânea de ensaios escritos por mulheres que creditam à obra de Adams uma mudança positiva em suas vidas. E “The Art of the Animal: Fourteen Women Artists Explore The Sexual Politics of Meat”, editado por Kathryn Eddy, L.A. Watson e Janell O’Rourke, é uma expansão ponderosa dos insights de Adams refletidos em vários órgãos de imprensa.
A tendência mundial no sentido de uma alimentação mais abaixo na cadeia alimentar, ou seja, a um veganismo, é em parte uma decorrência da obra de Adams. O livro “Her Sexual Politics of Meat” já foi traduzido para o chinês, alemão, japonês, coreano, português e turco; as edições francesas e espanholas estão para sair em breve, enquanto as traduções italiana e sérvia estão a caminho.
O poder da sua argumentação, a variedade de suas abordagens – como uma cozinheira maravilhosa, ela inclui receitas e planejamento alimentar – e sua análise sustentada que cresce exponencialmente a cada insight sobre a opressão somam-se a uma contribuição singular com implicações religiosas.
Atualmente a autora está escrevendo sobre os cuidados de ética cristã aos animais. Ela investiga o papel dos animais na religião, a sua finalidade em si mesmos e não como seres instrumentalizados pelos humanos. E se Deus fosse pensado não em termos humanos, mas em termos animais? Ela sugere que não seria Deus, o Pai, Senhor, Soberano, Rei, mas Deus, a galinha chocadeira sob cujas asas a criação está protegida. Ouso dizer que esse debate irá florescer e que os cardápios dos encontros na igreja irão mudar.
O convite do Papa Francisco a uma “ecologia integral”, que inclui animais, em sua encíclica Laudato Si’ – sobre o cuidado da casa comum deixou passar despercebido a conexão que o tema possui com as mulheres. Talvez alguém lhe presenteie com a edição de “The Carol J. Adams Reader: Essays and Conversations, 1995-2015”, pela Bloomsbury, com a intenção de atualizá-lo a respeito das conexões entre mulheres e animais.
Vislumbro que, a daqui 25 anos, o legado de Carol J. Adams vai ser um planeta mais seguro e mais saudável para todos nós animais.
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Autora associa opressão às mulheres e aos animais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU