05 Setembro 2016
Sem condições de pagar aluguel, famílias recorrem a espaço da Pastoral Povo de Rua, onde dizem ter mais autonomia do que nos abrigos oficiais da Prefeitura.
A reportagem é de Luciano Teixeira e publicada por BBC Brasil, 05-09-2015.
O lençol branco improvisado marca a entrada do cômodo de pouco mais de seis metros quadrados que a artesã Simone Kelly, de 36 anos, chama de casa. Dentro do espaço, um amontado de pertences: uma cama de casal, roupas guardadas em caixas de papelão, um fogão.
Simone e sua família fazem parte do grupo de 120 pessoas que dividem uma área debaixo do viaduto Guadalajara, na região central de São Paulo.
Ela diz estar entre as vítimas da crise econômica que atingiu o país nos últimos tempos. Até três meses atrás, era inquilina de uma casa na rua do Hipódromo, perto dali, mas não conseguiu arcar mais com os R$ 600 reais mensais de aluguel.
Desempregada, a mãe de Derik Augusto, de 1 ano e 2 meses, viu como única solução voltar às ruas da maior cidade do país. "Já tinha morado na rua por cinco anos, até 2014, quando fui morar de aluguel, mas, como não consegui mais trabalhar, tive de voltar à rua."
Entra-se no local em que o grupo mora por meio de uma pequena porta. Do lado de fora, não dá para se ter uma noção da real dimensão da área, que abriga ao menos 15 famílias.
Na entrada, uma imagem do menino Jesus dá boas-vindas. Como está parcialmente danificada – os braços já estavam quebrados quando chegou ali – foi coberta com um paletó.
A iniciativa, além de estética, tem relação com o frio, segundo os moradores: nas noites de inverno, as temperaturas ficam abaixo dos 10°C no local. O espaço tem uma cozinha comunitária – em volta, há mesas onde algumas pessoas tomavam o café da manhã quando o repórter visitou o local.
É nessa hora do dia, quando todo mundo já está acordado, que as tarefas começam a ser divididas: uns limpam a calçada do lado de fora, outros cuidam dos banheiros.
O casal Josilene, de 19 anos, e Jean Paul, de 23 anos, relata uma história parecida com a de Simone. A ex-vendedora, desempregada há três anos, e o ajudante geral contam que tiveram de desistir do aluguel de R$ 700 quando perderam o controle das contas atrasadas. "O Leandro (bebê do casal) nasceu, e aí ficou pesado. Meu trabalho com carga e descarga não dá conta das despesas ultimamente. Mas, mesmo não pagando aluguel, eu tenho medo que me tirem daqui. Tenho até pesadelos com isso", diz o rapaz.
Por estarem ali há pouco tempo, as famílias de Simone e do jovem casal não entraram no último censo da população em situação de rua da cidade de São Paulo.
Realizado em 2015, o levantamento da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) revela que, na capital paulista, existem pelo menos 15.905 pessoas em situação de rua – quase o dobro comparado a 2000, quando eram 8.706. A alta foi de 82%.
Segundo a pesquisa, estão concentrados nas regiões da Sé, no Centro, Mooca, na Zona Leste, e Lapa, na Zona Oeste.
Os números são bem menores do que os de cidades como Nova York, onde o Departamento de Serviço para Desabrigados calcula haver 57 mil moradores de rua, a maioria dormindo em abrigos públicos. A população de São Paulo é 50% maior do que a da cidade americana.
Mas o padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral Povo de Rua, organização de caridade vinculada à Arquidiocese de São Paulo, disputa os números oficiais da capital paulista.
"O último censo está subestimado. Não estão contadas as pessoas que estão, por exemplo, em instituições religiosas não conveniadas. Acredito que temos pelo menos 22 mil moradores de rua na cidade", afirma ele.
"O censo só contou quem está em barracas e não em barracos. Não contaram, ainda, as pessoas que moram em cemitérios. Já constatei que há grupos assim nos da Vila Formosa, da Quarta Parada e da Consolação. Também não levaram em conta os grupos que vivem no subsolo da cidade."
O padre afirma que a crise tem contribuído para aumentar a quantidade de pessoas vivendo nas ruas.
"As pessoas não estão conseguindo pagar aluguel e acabam vindo morar na rua. E os problemas econômicos afetam também os que já estavam nesses locais e sobrevivem como catadores, por exemplo. Com o consumo em baixa, diminuiu o número de embalagens recicláveis para eles coletarem", afirma ele.
Segundo Lancelotti, reintegrações de posse e a chegada de pessoas de outros lugares – "que vêm pra cá procurar emprego e não conseguem" – também levam pessoas às ruas.
"Temos também os que são postos para fora de casa pelas próprias famílias, porque não contribuem nas despesas diárias", conta.
A Prefeitura diz que a pesquisa foi realizada, inclusive, em pontos de atração dessa população, como hospitais, postos de saúde, escolas, mercados e sacolões, cemitérios, terminais de transporte público e que também foram contabilizados moradores que viviam nos chamados "mocós", um tipo de buraco feito para servir como abrigo.
Quem vive nas áreas com mais moradores de rua afirma ter notado o aumento nos últimos meses.
Nos fins de semana, quando a movimentação diminui na região central, é possível notar uma aglomeração de sem tetos em locais como o Largo de Santa Cecília, próximo ao bairro de Higienópolis, uma das áreas mais nobres da cidade.
A designer Joana Gonçalves, que mora perto dali, conta que procura não circular sozinha à noite por medo de assaltos.
"Evito descer do metrô tarde da noite e, quando tenho de fazer isso, vou de táxi ou de Uber. Sei que a grande maioria dessas pessoas só pede ajuda: dinheiro pra comida e oferecem pequenos serviços nos sinais como limpeza dos para-brisas. Sei que a maioria não está aqui porque quer. Mas, num primeiro momento, isso assusta", diz.
A Prefeitura de São Paulo oferece serviços à população de rua através da Coordenadoria de Proteção Social Especial. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, equipes especiais de abordagem tentam convencer o morador em situação de rua a aceitar o encaminhamento para os centros de acolhida.
Nesses locais, eles podem pernoitar, tomar banho, guardar seus pertences em bagageiros, lavar roupas, alimentar-se e ainda ter assistência individualizada com o serviço social.
Haveria ainda abordagens nos pontos de maior concentração, estímulo à geração de renda e capacitação profissional, além de encaminhamento para os núcleos de serviços e convivência e centros de acolhida.
O problema, segundo a Pastoral de Rua, é que só pouco mais da metade dos quase 16 mil moradores de rua oficiais consegue vaga nesses centros.
De acordo com a Fipe, são 8.570 acolhidos dentro desse universo. A preocupação aumenta no inverno – neste ano, foram registrados casos de moradores de rua que teriam morrido de frio.
Quando os termômetros atingem 13°C ou menos, agentes oferecem encaminhamento a locais protegidos do frio. Em épocas assim, em caráter excepcional, segundo a prefeitura, o número de vagas nos Centros de Acolhida é ampliado para atender à maior procura.
Pelos dados da Secretaria hoje, são 96 centros de acolhida fixos e emergenciais e, na época de frio, a capacidade é ampliada emergencialmente para 12 mil vagas diárias. Mas destas, cerca de mil não estariam sendo ocupadas por falta de demanda.
Para o padre, porém, o serviço prestado pelo poder público não é suficiente, pois não garante autonomia para essas pessoas. "O trabalho feito hoje é incompleto, insuficiente e arcaico. Temos de criar espaços de autonomia para estes moradores, em que seja levada em consideração a sua individualidade e o seu modo de vida", opina.
"É preciso, por exemplo, um lugar para que casais tenham a sua intimidade preservada. No modelo atual de gestão, existem regras de entrada e saída, com horários rígidos nos centros de acolhimento, e a separação nos dormitórios entre homens e mulheres, mesmo que sejam casados."
Segundo ele, o trabalho precisa mudar. "Os modelos de resposta do poder público não passam de dez possibilidades. Todo esse atendimento não evoluiu ao longo de 90 anos, é o mesmo feito em 1920. A única coisa nova que tem é a tomada para carregar o celular."
De acordo com a Prefeitura, todos os serviços oferecidos têm regras, muitas delas discutidas em assembléia com quem usa esses locais, como o horário de entrada e saída, das refeições e de televisão por exemplo. Mas isso pode ser flexibilizado pela equipe técnica de cada local, de acordo com a rotina e necessidade das pessoas que convivem ali.
A Secretaria explica que foram criadas novas modalidades de acolhimento para atender famílias, imigrantes e transexuais. No caso das famílias, seriam 360 vagas em dois serviços, o que inclui em alguns casos vagas em creche ou escola, atendimento médico e capacitação profissional, por meio de parcerias como o Pronatec, por exemplo – e encaminhamento para o emprego.
Também há um centro de acolhimento de imigrantes com 110 vagas e outro só para mulheres e seus filhos com capacidade para 80 pessoas.
Para os transexuais, há 30 vagas exclusivas numa casa instalada na região da Barra Funda, onde são oferecidos cursos, oficinas, palestras, além de pernoite, acompanhamento psicológico e refeições.
Vagas específicas que, para os especialistas, ajudam, mas que estão aquém da demanda e não resolvem o problema. O cientista político da Fundação Getúlio Vargas, Marco Antônio Teixeira, acredita que o modelo mais comum atualmente é assistencial, em vez de ser multidisciplinar.
"O que temos hoje é uma relação de conflito entre o poder público municipal e as diversas instituições que fazem um trabalho independente com esses moradores, como a Pastoral de Rua", diz.
"É preciso repensar este tipo de política pública e ter articulação com os diversos setores da sociedade. Hoje, a tendência do governo municipal é de administrar o problema, dar abrigo. Mas, e depois que eles saem, durante o dia?"
Para ele essa situação tende a piorar com a crise econômica. "É um efeito em cadeia. O crescimento está desproporcional. O limite pra quem não consegue arcar com as despesas e pagar aluguel, por exemplo, é a rua, não tem jeito", explica.
"Precisamos dar uma perspectiva para essas famílias, um outro tipo de assistência, um lugar e um sentido para essas pessoas. Essa falta de perspectiva pode alimentar ainda mais a violência na nossa cidade."
Do viaduto onde mora, Simone Kelly reforça as críticas: "Nós somos só números pra eles. Em alguns lugares, não somos chamados pelo nome. As regras que nos impõem hoje em dia são próximas das do sistema penitenciário".
Por isso, ela prefere ficar num espaço alternativo, debaixo do Viaduto Guadalajara. "Aqui, temos regras básicas de convivência entre as 15 famílias. Dividimos a limpeza, a cozinha é coletiva, e fazemos a 'vaquinha' para o gás. É um espaço de resistência, onde privilegiamos a autonomia de cada um."
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'Tenho medo que me tirem daqui': Crise leva famílias para baixo de viaduto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU