10 Agosto 2016
Pouco antes de se consagrar campeã olímpica, na tarde de anteontem, a judoca Rafaela Silva, de 24 anos, prometeu aos pais que investiria parte do dinheiro da conquista na construção do terraço da casa da família, numa ladeira da Freguesia, bairro na zona oeste do Rio de Janeiro. Às vésperas da concentração para a Rio-2016, a atleta ajudou a carregar sacos de areia e tijolos da obra de um muro.
A reportagem é de Leonencio Nossa, publicada por O Estado de S. Paulo, 10-08-2016.
Zenilda, de 45 anos, e Luiz Carlos Silva, de 53, pais de Rafaela, se conheceram no trabalho nos anos 80. Ela era caixa. Ele, repositor de produtos do Supermercado Paes Mendonça, na Barra da Tijuca, zona oeste. A primeira filha, Raquel, hoje com 28 anos, nasceu na casa dos pais de Luiz Carlos, na favela Cidade de Deus.
Rafaela nasceu também ali, em abril de 1992. O registro só foi feito no ano seguinte, quando o governo anunciou que a taxa de cartório seria gratuita. A mãe quis dar o nome de Ruth à menina, influenciada pela novela Mulheres de Areia, da Rede Globo, que foi ao ar no começo de 1993 – a atriz Glória Pires interpretava as gêmeas Ruth e Raquel. O pai foi contra, porque dar o nome de Ruth à caçula associaria as filhas às personagens da TV, e Raquel se mostrou uma vilã.
A fama de menina má, no entanto, acompanharia Rafaela na infância. Enquanto a irmã Raquel, mais quieta, ficava em casa, Rafaela gostava de soltar pipas, jogar bafo-bafo e peladas com os meninos. Era de muita briga. Como as irmãs da trama da TV, as irmãs Raquel e Rafaela viviam uma constante rivalidade. O esporte e as adversidades mudaram a relação. “Hoje, são muito próximas”, diz a mãe.
Quando a casa dos pais de Luiz Carlos ficou pequena, a família saiu da Cidade de Deus e foi morar de aluguel num barraco na Freguesia. No novo endereço, Rafaela jogou pedra no carro de uma vizinha. Zenilda ficou constrangida ao ouvir a mulher chamar Rafaela de “favelada”. “Minha filha não tinha nem carrinho de rolimã, agora tem um carro bem melhor que o dessa mulher”, ironiza o pai.
A mãe ouvia tudo calada. “Eu conseguia prender a Raquel em casa. O esporte foi o jeito que eu vi de prender a Rafaela”, conta Zenilda. “Só não sabia que a minha filha ia agradar o mundo inteiro.”
A mãe levava Raquel e Rafaela para treinar judô numa escolinha montada pela Associação dos Moradores de Cidade de Deus. Certo dia, as meninas passavam em frente à Academia Body Planet, que recentemente fechou as portas, na Freguesia, quando o treinador Geraldo Bernardes perguntou se não queriam treinar no Instituto Reação, um projeto social desenvolvido pelo judoca Flávio Canto. As meninas viraram atletas.
Zenilda ressalta que nunca se ausentou da formação das meninas. “Eu sempre me preocupei com minhas filhas. Tem mãe que diz: ‘Tô trabalhando’, e deixa criança na rua”, afirma. Momento difícil foi quando Rafaela, adolescente, começou a demonstrar tristeza por não ter um quimono similar ao das adversárias das competições que participava na zona sul da cidade. “Ela usava aquele de tecido fininho, que rasgava fácil. Ela ganhou do governo. O sonho dela era o trançado, um modelo profissional”, relata. “Trabalhei um tempo no trailer de sanduíche na esquina para ela usar um quimono igual o das meninas de Ipanema.”
O momento mais dramático de Rafaela no esporte ocorreu depois, em Londres-2012, quando foi desclassificada por um golpe ilegal e acabou vítima de racismo nas redes sociais. Ao voltar para casa, entrou em depressão. Passava boa parte do tempo deitada, sem querer sair. “Muita gente veio dizer que ela precisava dar a volta por cima”, relata a mãe.
Visão
Evangélica, Zenilda conta que, na véspera da luta que valeu para Rafaela a medalha de ouro, teve uma visão. “Deus tinha me mostrado essa vitória. Só não tinha mostrado o ouro. Mas eu vi o pódio”, conta.
Foi com a ajuda de Rafaela que Zenilda e Luiz Carlos conseguiram comprar o terreno em que moravam. A casa começou a ser erguida. Construíram primeiro a escada. Depois, um ponto de comércio, que alugam por R$ 600 mensais. Finalmente, as paredes da residência, decoradas com quadros da atleta. Faltam a pintura externa e o terraço.
“Rafaela me deu um carro de mil reais. Vendi para comprar tijolo. Eu estava no estádio da Olimpíada. Lá ela me disse que, se ganhasse a medalha, ia fazer o terraço”, diz. Zenilda vende cosméticos da Natura. Luiz Carlos trabalha eventualmente como motorista em caminhão de frete. Raquel, a irmã, se prepara para as próximas competições.
Luiz Carlos chama a reportagem num canto, tira um cigarro da boca e diz: “Tá vendo esses sacos de areia? Ela outro dia me ajudou a carregar. Não é porque é minha filha. A menina é legal”.
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Terraço Dourado: conheça a história da judoca Rafaela Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU