10 Agosto 2016
"Sob o pretexto de não existir outra alternativa ao do ajuste fiscal, esse vai ser imposto pelo governo interino sem levar em conta o perverso efeito de aprofundar o desajuste social. O povo pobre e trabalhador vai amargar de novo, como a história vem repetindo secularmente, a acomodação das conveniências do capital", adverte Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Uma antiga reivindicação dos Estados da República brasileira tem sido a de suas dívidas com a União - sabidamente insolúveis por acúmulos históricos decorrentes de atrasos geradores de acréscimos aos seus valores, a cada ausência de quitação, juros e correção monetária - serem renegociadas. Fosse por ampliação de prazos, menos onerosas condições de amortização ou por qualquer alternativa suficiente para não continuarem deixando cada unidade da Federação praticamente a beira da total insolvência, essa renegociação provou ser inadiável, pois sem ela, não há nem condições de os Estados custearem os serviços e obras devidos pelas suas administrações.
O governo chamado de interino, ao que se noticia, dispôs-se a enfrentar o problema, mas impondo condições aos devedores que, salvo melhor juízo, como costumam dizer os juristas, infringem a Constituição Federal.
Conforme noticia a Zero Hora de 9 deste agosto (página 12), “a nova versão do projeto de renegociação das dívidas dos Estados com a União trará duas exigências aos governos estaduais para manter o alívio no pagamento das suas prestações, segundo o Ministério da Fazenda. A primeira é o teto para o gasto estadual, limitado à correção da inflação. A segunda, a proibição de reajustes ao funcionalismo. As medidas valem por dois anos.” {...} “A expectativa é de que o projeto seja votado nesta semana pela Câmara dos deputados”.
A Constituição Federal parece nem ter sido lida no que se refere a tais condições impostas às administrações públicas dos Estados devedores. Dispõe o artigo 7º, inciso VI da Constituição Federal, por exemplo: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.”
Pelo projeto do Ministério da Fazenda, portanto, os Estados da Federação ficam proibidos, durante dois anos, por mais que a inflação corroa o valor dos salários do seu funcionalismo, por mais que a vontade política de cada um queira motivar suas/seus servidoras/es a prestarem um serviço público de qualidade, por meio de uma remuneração condizente, a providenciar meios para isso dentro dos seus respectivos territórios.
O que é mais estranho nessa situação toda é que o mesmo governo reajustou recentemente os vencimentos de várias categorias de funcionárias/os dos Poderes Públicos da União, num reconhecimento claro, revelado até pelos percentuais de aumento, que a inflação é, sim, uma forma de redução da remuneração devida a quem os recebe, exigindo necessária e pronta reparação.
Em relação aos Estados da Federação, pois, a nova postura do governo da União pode ser enquadrada como a da velhíssima e cínica explicação do tipo “façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço.”
Quando um credor privado se prevalece da sua condição para extorquir, praticamente, o seu devedor, o próprio Código Civil trata de lhe tolher a possibilidade de fazê-lo, sendo oportuno lembrar a respeito o que dispõe o seu artigo 157:
Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Não faltará quem objete nenhum governo de Estado poder ser identificado como “inexperiente” e, no caso, deixar-se de considerar que a União está abrindo mão de parte do seu direito. Isso é verdade, mas também é verdade que a União está ignorando a “premente necessidade” dos Estados devedores e exigindo deles uma “prestação manifestamente desproporcional” à que está oferecendo, em prejuízo direto das/os funcionárias/os e dos serviços públicos de cada um dos Estados que, afinal de contas, fazem parte dela própria.
Se o tal projeto encaminhado pelo Governo interino a Câmara de Deputados for votado sem modificação, essa lesão enorme será sofrida por milhões de funcionárias/os da Administração pública de todos os Estados devedores da União e aos serviços por essas/es prestados à população. Nem se pode esquecer que é tanto a União, como aos Estados e aos Municípios que a Constituição Federal tratou de garantir autonomia, conforme dispõe expressamente o seu artigo 18:
A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Nessa nova iniciativa do governo, pois, acentuam-se as contradições características da sua política pública, quase todas direcionadas para ameaçar ou violar direitos humanos fundamentais sociais, de forma flagrantemente inconstitucional.
Sob o pretexto de não existir outra alternativa ao do ajuste fiscal, esse vai ser imposto pelo governo interino sem levar em conta o perverso efeito de aprofundar o desajuste social. O povo pobre e trabalhador vai amargar de novo, como a história vem repetindo secularmente, a acomodação das conveniências do capital, fazendo-as passar como se fossem as mesmas do Estado, e a democracia a melhor forma de, se necessário golpeada, esse ser-lhe sempre submisso.
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Novos projetos do governo “interino” reduzem salários e infringem a autonomia dos Estados da Federação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU