08 Agosto 2016
“As características da devoção, ligada ao pedido do pão e do trabalho, fazem de São Caetano não apenas uma das práticas de piedade mais arraigadas nos setores populares, mas também uma manifestação tangível que permite medir a preocupação das classes mais pobres em relação a estes temas. A afluência a São Caetano cresce de maneira diretamente proporcional ao aumento do desemprego e das penúrias econômicas dos mais pobres”, escreve Washington Uranga, jornalista argentino, em artigo publicado por Página/12, 07-08-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Há mais de um século, sempre no dia 07 de agosto de cada ano, a celebração religiosa da festividade de São Caetano, “o santo do pão e do trabalho”, transformou-se em um fenômeno que ultrapassa o âmbito meramente religioso para constituir uma espécie de “termômetro” da realidade social do país. Foi no dia 18 de agosto de 1913 que o templo dedicado ao santo italiano foi erigido como paróquia no mesmo lugar do bairro operário de Liniers, onde hoje se encontra localizado. Para ali acorrem, ano após ano, os peregrinos em petição ao santo para elevar suas orações e levar doações, esperando receber como retribuição os favores solicitados.
“Se alguém pensa em um santo argentino, esse é São Caetano, mesmo que seja italiano” (nascido em Vicenza em 1480 e reconhecido santo em 1671), assegura em declarações à Rádio Vaticano o padre Marcelo Zubía, vigário-geral dos teatinos, congregação fundada pelo santo.
Poder-se-ia se dizer que a devoção é comparável a tantas outras experiências de religiosidade popular, a maioria delas de raiz católica, que persistem hoje misturadas com práticas religiosas provenientes de outras culturas e tradições e que pouco a pouco foram se desinstitucionalizando da Igreja católica, apesar do esforço contrário de seus ministros.
No entanto, as características da devoção, ligada ao pedido do pão e do trabalho, fazem de São Caetano não apenas uma das práticas de piedade mais arraigadas nos setores populares, mas também uma manifestação tangível que permite medir a preocupação das classes mais pobres em relação a estes temas. A afluência a São Caetano cresce de maneira diretamente proporcional ao aumento do desemprego e das penúrias econômicas dos mais pobres.
Embora a afluência ao templo de Liniers mantenha um teto em qualquer conjuntura, porque os fiéis também acodem para “agradecer” ao santo, a assistência cresce quando as circunstâncias econômicas e sociais se tornam mais críticas e as penúrias aumentam. O dado não passa despercebido dos responsáveis eclesiásticos, mas também ao olhar dos políticos, sindicalistas e analistas sociais.
Não em vão o Papa Francisco enviou este ano uma carta a propósito do 07 de agosto recordando sua participação nessa festividade quando era arcebispo de Buenos Aires e fazendo menção à “angústia de homens e mulheres que querem e buscam trabalho e não encontram” e destacando que o país segue “vivendo momentos em que os índices de desemprego são significativamente altos”.
Como autoridade eclesiástica de Buenos Aires, o então arcebispo Bergoglio sempre alimentou a devoção e esteve presente em cada celebração. Demonstrou nessa atitude sua vocação para vincular, ou revincular, o religioso com o social, mas também para recapturar institucionalmente as manifestações de piedade popular. No dia 07 de agosto de 2003, em meio à crise vivida pelo país, defendeu que “pela mão de São Caetano queremos pegar as mãos de todos os argentinos, em especial as dos que já não têm esperança, para receber assim, em conjunto, os dons do pão e do trabalho”.
E acrescentava que “o pão e o trabalho são um direito inalienável que recebemos juntos e que compartilhamos; fazem a nossa dignidade, como pessoas e como Nação”. E com sentido claramente político, destacava então que “pode custar mais ou menos luta recuperá-los para todos. Às vezes, é preciso exigi-los; às vezes, pedi-los; e sempre compartilhá-los... mas com a consciência de que não é esmola, é justiça”.
Já desde 1970, ao influxo das correntes da pastoral popular, a Igreja argentina tinha começado também a provocar transformações na proposta de religiosidade popular vinculada a São Caetano. A partir de então se criou a sensibilidade para que os devotos do santo que acorrem ao Santuário de Liniers e Belgrano, na Capital Federal, transmutem suas promessas de velas e flores por alimentos e roupas que são enviados a regiões mais necessitadas do interior do país.
Assim, especialmente a Paróquia de São Caetano de Liniers, transformou-se em um recurso de solidariedade para muitas famílias de toda a Argentina. Nas palavras dos próprios padres encarregados do templo, pretende-se que em torno da devoção se construa “uma ponte solidária” para com aqueles que têm menos. A proposta de solidariedade quer também romper o sentido meritocrático individualista, mediante o qual se oferece uma doação em troca ou como pagamento de um favor.
Com o passar dos anos, começaram-se a surgir também outras ações com a mesma orientação: um serviço social que contempla uma bolsa de trabalho, uma farmácia, um lugar de cuidado das famílias necessitadas e outros para mães solteiras. Tudo isso deu lugar, além disso, ao surgimento de meios de comunicação, como a revista Pan y Trabajo, uma rádio comunitária e até uma editora vinculada inicialmente à obra. Algo disto se vincula também com a história do próprio santo, filho de uma família rica que decidiu doar todos os seus bens e, depois de obter dois doutorados, dedicou sua vida a atender os necessitados e fundou associações chamadas de “Montes de Piedade” (Montepios) que se dedicavam a emprestar dinheiro a pessoas muito pobres a juros muito baixos.
Agora, em sua carta por ocasião da celebração anual de São Caetano, o Papa Francisco recordou que “quando pedimos trabalho estamos pedindo poder sentir dignidade; e nesta celebração de São Caetano pedimos essa dignidade que o trabalho nos confere; poder levar o pão para casa”. E retomando uma das suas consignas sociais mais importantes, Francisco recordou que “trabalho (que junto com os outros dois T: Teto e Terra) está na estrutura básica dos Direitos Humanos; e quando pedimos trabalho para levar o pão para casa estamos pedindo dignidade”.
Mas, em seu esforço constante de reinterpretar o Papa o presidente Mauricio Macri não ficou atrás nesta ocasião. Disse que “este governo está trabalhando na mesma agenda” papal e explicou que “o Papa Francisco descreveu que o pão pago com o próprio esforço tem outro sabor”. Para Macri, de quem não se tem notícia de que tenha ido alguma vez a São Caetano, “é importante a solidariedade do trabalho em conjunto. Que cada um possa fazer o melhor esforço para conseguir melhores oportunidades para todos”. De acordo com o ministro do Trabalho, Jorge Triaca, “o Papa Francisco uma vez mais nos ajuda a esboçar o que está acontecendo na Argentina”.
Enquanto os editoriais do jornal La Nación lançam as diretrizes para uma reforma da legislação trabalhista que corte direitos dos trabalhadores para “não espantar os investimentos nem afetar a produtividade” e o próprio presidente Macri encoraja mudanças na legislação no mesmo sentido, a afluência de devotos a São Caetano pedindo pão e trabalho se converterá, neste 07 de agosto, em uma manifestação a mais da crise e um termômetro da gravidade da situação social, em particular, do desemprego.
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Religião e política. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU