Por: Cesar Sanson | 03 Agosto 2016
Está tudo pronto para começar. Na próxima sexta, dia 5 de agosto, serão oficialmente abertos os jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Mobilizando governos e muitos bilhões de reais, trata-se de mais um megaevento entre os muitos que o país – e particularmente a ‘cidade maravilhosa’ — tem recebido nos últimos anos.
Além de pódios e grandes negócios, esses eventos também têm proporcionado o aprimoramento de um aparato jurídico e o fortalecimento de um ambiente social que intensificam o Estado de exceção no Brasil. A avaliação é de Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ) em entrevista à Cátia Guimarães e publicada por EPSJV/Fiocruz, 02-08-2016.
Na entrevista, ele mostra preocupação com os possíveis desdobramentos da recente Lei Antiterrorismo, analisa exemplos concretos de violações que já estão em curso e aponta um legado negativo dos megaeventos para os direitos sociais no país.
Eis a entrevista.
No que diz respeito à repressão, é possível identificar alguma mudança, ou ‘exceção’, na ação do Estado por conta das Olimpíadas e dos megaeventos de um modo geral?
Na verdade essa história de Estado de exceção já é uma realidade no Brasil há muitos anos. Há muitas décadas você tem uma situação extremamente curiosa de que, apesar dos avanços ditos democráticos a partir de 1988, existe uma zona de penumbra na qual vive uma parcela significativa da população brasileira, que tem um Estado excepcional, onde a liberdade e os direitos ditos de uma democracia burguesa até hoje não chegaram. Então você constata, sobretudo nas periferias, as execuções sumárias, os desaparecimentos, os autos de resistência, que nada mais são do que instrumentos de ação policial — ou de ‘polícia mineira’, esquadrão da morte, milícia, e assim por diante — característicos de um Estado de exceção.
Nós não superamos essa situação pós período da ditadura civil militar de 1964 para uma parcela significativa do povo brasileiro. Então, não é novidade essa ocorrência no Brasil. O que na verdade se configurou, particularmente no Rio de Janeiro, dos últimos dez anos para cá, por conta dos chamados megaeventos — Jornada da Juventude, Panamericano, Copa das Confederações, Jogos Militares, Copa do Mundo e agora as Olimpíadas —, é um aprimoramento desse Estado de exceção. A vigência de normas ainda mais coercitivas, ainda mais excepcionais. Você deve se recordar que algumas comunidades aqui do Rio de Janeiro passaram mais de ano ocupadas por tropas militares, do Exército. Então, você tem a bem da verdade um acirramento desse Estado de exceção, desse Estado autoritário, desse Estado arbitrário, em relação a uma parcela significativa da população do Rio de Janeiro, em particular.
Mas não só do Rio de Janeiro: essa situação de Estado excepcional, praticamente de intervenção federal militar, se deu também no sul da Bahia, em relação aos direitos dos indígenas, no sul do Mato Grosso do Sul, em comunidades indígenas do Rio Grande do Sul, enfim. Então, isso vem se tornando uma infeliz, lamentável, porém frequente e constante dinâmica no Brasil.
Mas a chegada das Olimpíadas agora traz alguma novidade?
O quadro novo é a lei Antiterrorista, que foi promulgada este ano, uma lei curiosamente de autoria de um governo dito progressista. E ela já está sendo aplicada, como nós vimos nos últimos dias, com prisões e detenções. É uma lei extremamente dura, promulgada sob a égide de um governo dito progressista, que alguns até [caracterizavam como] um governo de esquerda. E estamos extremamente preocupados sobre como esta lei será aplicada durante esse período.
O Brasil precisava de uma Lei Antiterror?
Essa é uma discussão aí importante. Nós acreditamos que não. Na Europa, que tem um histórico de afetação por atos ditos terroristas, muitos países rejeitaram ter uma lei desse tipo. Exatamente porque as definições criminais para a ação terrorista são muito abertas. Quer dizer, você pode enquadrar como uma ação terrorista uma gama tão vasta de situações, circunstâncias, ocorrências, que você coloca na mão do Estado, do juiz — não podemos jamais esquecer que o Judiciário é Estado — e do poder Executivo, das forças policiais, uma elasticidade de possibilidades extremamente grande, difícil de delimitar. E isso, obviamente, gera a possibilidade de abusos, a possibilidade de esses atos de exceção serem mais frequentes. Então, eu penso que não seria necessário o Brasil ter uma Lei Antiterrorista, assim como outros países sulamericanos, que também não tem.
O texto da lei tipifica terrorismo de uma forma muito aparentemente restrita, explica que tem que ter motivação de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça. A presidente Dilma vetou outras definições de terrorismo, como “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado". Além disso, a versão aprovada no Congresso incorporou o texto segundo o qual a caracterização não se aplica a manifestações e movimentos sociais reivindicatórios. Isso não garante que não haja criminalização dos movimentos sociais?
Não garante. Porque não é quem promulga e define a lei que vai aplicá-la. Quem aplica é o Estado policial, é o Estado através das suas forças policiais. E quem faz cumprir efetivamente a lei é o Estado jurídico. Então você tem uma gama enorme de possibilidades. Eu vou te dar um exemplo concreto. A prisão preventiva é um instrumento excepcional. A prisão preventiva, a prisão cautelar de alguém que em tese cometeu um crime, deve ser aplicada em situações de maneira restritiva. Você não deve prender uma pessoa sem haver uma condenação criminal. Apenas em situações extremamente necessárias, em que se tenha efetivamente um potencial de risco à sociedade bastante claro. Toda a doutrina, toda a discussão e o pensamento sobre o assunto dizem isso. No entanto, 41%, 42% dos encarcerados no Brasil estão presos preventivamente. Ou seja, nós temos uma população carcerária de quase 300 mil pessoas presas preventivamente. E muitas, milhares, por tolices, presas preventivamente por ocorrências ou crimes que, muitas vezes, quando há condenação, ela é menor do que o tempo que a pessoa já passou na prisão.
Veja como o punitivismo tomou conta do Estado e da sociedade brasileira. Estou dando esse exemplo para você ver como é difícil fazer uma separação de uma coisa ou outra. O legislador quis de um modo, e o executor faz de outro, entendeu? Então essa é a situação da Lei Antiterror. Nós temos, por exemplo, no Chile, um exemplo dramático dos índios da etnia mapuches, que têm uma resistência, uma luta histórica na defesa do seu território, na região de araucária. E eles estão sendo processados com base na Lei Antiterror chilena. Quer dizer, isso é uma situação complicadíssima: você tem uma resistência rigorosa por parte dessa etnia e ao mesmo tempo você tem um enquadramento dos lutadores como terroristas. Então, voltando à sua pergunta originária, não é satisfatório. Esse gesto não garante absolutamente nada.
Um ponto também polêmico da lei é o fato de ela criminalizar atos considerados preparatórios de possíveis ações terroristas e a apologia ao terrorismo. Do ponto de vista do direito, o que isso significa? E como podemos analisar as prisões realizadas dias atrás de pessoas que teoricamente preparariam um atentado terrorista no Brasil?
A ameaça, em muitos casos, já é tipificada como crime no Brasil. A própria apologia do crime também. Essa visão foi transposta para o seio da Lei Antiterror, como atos preparatórios. Agora, veja o que aconteceu recentemente, na semana retrasada [prisão de suspeitos de prepararem ato terrorista]. O que é ato preparatório de alguma coisa? Quem é que vai definir e avaliar isso? É o Estado policial, um Estado extremamente punitivo. Repito: o exemplo das prisões preventivas se aplica mais uma vez aqui. Diante de um potencial ofensivo, alguém determina que aquilo é um ato de preparação ao terror. Leva aquilo a um magistrado, que, com raras exceções, têm uma formação autoritária e antidemocrática. O que ele fará diante de uma situação como essa, de um potencialmente crime? Ele vai decretar a prisão. Essa situação é típica, é claramente a demonstração e a prova de que aquilo que os movimentos sociais reivindicaram [sobre a lei antiterrorismo], já está sendo aplicado. Eu tenho muito temor, bastante temor.
A gente que viveu um período complicado, de 1964 a 1985, sabe como o Estado brasileiro é capaz de agir. No recomeço do restabelecimento da democracia, após o Colégio Eleitoral que elegeu o Sarney, você deve lembrar que houve uma intervenção militar do Exército numa greve em uma siderúrgica em Volta Redonda, em que mataram três operários. E, veja, naquela época já se dizia que o Brasil já estava num período democrático, nós tínhamos tido em 1984 uma campanha que levou milhões de brasileiros às ruas em favor das ‘Diretas Já’. Um ano depois daquele processo de escolha direta teve a intervenção do Exército, oficial, determinada pelo presidente da República. E três operários foram mortos! Então, os exemplos que o Estado brasileiro tem dado nessa direção não são minimamente tranquilizadores, não negam que não possa haver inúmeros abusos e uma atitude extremamente coercitiva e dura com base nessa Lei Antiterror.
Foi denunciado nas redes sociais que, num debate sobre desmilitarização da polícia, que estava sendo realizado na sede do PCB, no Rio de Janeiro, houve intervenção da PM, que teria afirmado que aquele e vários outros eventos estariam sendo monitorados. Por acaso, você estava lá e ajudou na mediação. O que esse episódio mostra?
Como presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, eu tenho cumprido uma peregrinação de conversa com várias forças políticas, vários partidos políticos de esquerda e organizações, alertando-os para situações complexas e autoritárias por conta, inclusive, da Lei Antiterror. Conversei já com quatro ou cinco forças políticas e encaminhei recomendações e sugestões para outras com os quais não pude conversar até o momento. E nesse dia eu estava na sede do PCB para fazer exatamente isso. Estavam todos os presentes lá, num debate público, divulgado pelas redes sociais — e extremamente interessante, diga-se de passagem —, quando de repente fui chamado na antessala, onde estava um policial militar sem mandado fazendo uma incursão. Uma incursão verificadora, sindicando in loco o que acontecia naquela reunião. Eu prestei lá o esclarecimento necessário, manifestando profunda estranheza por aquela ação da Polícia Militar, e na sequência ele se retirou. Permaneci lá por uns 40, 50 minutos, até cumprir a minha obrigação. Ao sair, na portaria do prédio, vi um oficial da PM, dirigindo-se ao porteiro do prédio, fazendo uma série de indagações a respeito do que se passava no andar da sede do PCB. Intervi de imediato junto a esse oficial da PM, perguntei o que se passava, expliquei que 30 minutos antes o evento já tinha sido esclarecido a um colega dele. Ele ficou um pouco surpreso com a minha intervenção, eu me identifiquei, ele pediu desculpas e se retirou.
Ou seja, se eu não estivesse ali na portaria, muito provavelmente esse oficial da PM teria feito uma outra incursão com o mesmo propósito. Isso é um absurdo. E ambos, tanto o primeiro policial quanto o segundo, disseram que o que estava acontecendo era um monitoramento in loco. O que é isso? Com que autoridade, com que direito estava a polícia militar do Rio de Janeiro agindo dessa forma? Com base em que, com que fundamento? Ambos disseram que estavam cumprindo ordens. Que ordens são essas? De quem partiu? Com base em quê? A Ordem dos Advogados do Brasil inclusive já emitiu uma nota muito dura, dizendo que essa ação da Polícia Militar é absolutamente inadmissível. Agora, isso é consequência dessa paranoia já instalada por conta da Lei Antiterror. Esses atos estão previstos em algum lugar, em alguma regra? Não. No entanto foram executados com base em ordens superiores. Mais uma vez, repito, há uma diferença crucial entre aquilo que é legislado e aquilo que é executado. Essa situação é um exemplo muito cabal disso. E os dois policiais não se importaram de dizer que estava acontecendo um monitoramento amplo, geral e irrestrito.
Esse tipo de atitude não tem previsão legal?
Não. Que a polícia acompanhe, tudo bem, isso pode ser feito. Mas que faça incursões desse tipo, não. Isso tem um caráter intimidatório, repressivo. Quando você desloca um policial militar ou uma equipe militar para um ato como esse, com esse tipo de conduta e ação, você está coagindo, intimidando, cerceando. Isso é ilegal. Não pode acontecer em hipótese alguma. Se isso foi empiricamente constatado, imagina o que não pode estar acontecendo sem o nosso conhecimento, sem a nossa visão.
Na Lei Geral das Olimpíadas, existe alguma coisa que diga respeito à garantia desse Estado policial, à violação de direitos?
Não exatamente. Mas, ao mesmo tempo, a Lei Geral das Olimpíadas remete a possibilidades excepcionais de segurança pública. E, ao fazê-lo de uma maneira bastante genérica, acaba dando espaço para todo tipo de ação e arbitragem, que é exatamente o que nós tememos e o que vimos acontecer aqui na Copa das Confederações, na Copa do Mundo, e assim por diante. Você tem uma situação de policiamento na cidade do Rio de Janeiro extremamente elástica, são milhares e milhares de homens das forças de segurança: Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, forças de segurança e assim por diante. É muito difícil coibir ações truculentas com tamanha vastidão, tamanha presença militar. Essa militarização não faz bem para a democracia. Isso é um péssimo sinal. E isso é uma coisa que vem sendo trabalhada no inconsciente das pessoas há muito tempo. E as pessoas aplaudem isso, não percebem que o Estado policial, o Estado militarizado, é um profundo cerceamento de direitos. Não tem sido mais exceção. Alguns autores dizem que o fascismo muitas vezes começa pelas ações das polícias. Eu não sei se pode se ter isso como algo genérico, mas certamente nós estamos muito próximos disso. É muito complicado.
Do ponto de vista dos direitos humanos, qual você imagina que será o legado das olimpíadas e qual tem sido o legado dos megaeventos no Brasil?
Na verdade, nós temos um espectro de retrocesso democrático e social muito grande e os direitos humanos, obviamente, estão incluídos. Essa transformação da cidade em negócio, que precisa se mostrar internacionalmente como uma cidade-evento, é uma expressão do capitalismo internacional. E um capitalismo extremamente excludente, extremamente redutor de direitos e garantias. Os exemplos que nós temos visto na Ásia, na África, ou até mesmo na Europa, Canadá, enfim, outros países, são sempre de perda de direitos. O legado não tem sido nada bom para os mais pobres, para os periféricos, para os presos, para os oprimidos, e assim por diante. Muito pelo contrário: esse processo tem levado a uma concentração de renda, à maior exclusão social, à redução de direitos para aqueles que já tem menos direitos. Acho que no Rio de Janeiro nunca se removeu tanta gente como nos últimos dez anos. E, ao mesmo tempo, tem uma profunda financeirização dos direitos: do direito à moradia, do direito de ir e vir, do direito de melhorar o transporte público e assim por diante.
Em outras palavras, o interesse público efetivamente das cidades vem perdendo espaço por conta desses megaeventos para uma elite cada vez mais concentradora. E isso por si só já é um dano aos direitos sociais, aos direitos humanos, incomensurável. Vários trabalhos e livros têm sido publicados nos últimos anos sobre como essa transformação, esse predomínio da cidade de negócios sobre os interesses da população tem significado uma progressiva perda de direitos das parcelas mais excluídas da sociedade. O Minha Casa Minha Vida é construído a 60, 70 quilômetros do emprego das pessoas. Você tem um metrô sofisticado que atende primordialmente a elite e a classe média alta da cidade, em detrimento de um transporte de massa de qualidade para os bairros mais periféricos, para a população mais necessitada. Essa atividade de negócio [dos megaeventos] se presta à maximização do lucro, à concentração de renda e à exclusão social. O Rio de Janeiro vai muito mal nessa direção. Talvez tenha sido uma das cidades do mundo onde, nos últimos dez anos, essa concepção de Estado de negócio foi levada ao extremo, com enormes prejuízos sociais.
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‘As pessoas não percebem que o Estado policial é um profundo cerceamento de direitos’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU