05 Julho 2016
Não é preciso ser psicanalista para entender que certas transformações mediante cirurgia estética a que se submetem os corpos femininos não respondem ao critério de embelezamento do próprio corpo, mas ao de uma radical metamorfose dele, a fim de torná-lo o mais semelhante possível àquilo que o imaginário erótico masculino exige.
A opinião é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 03-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Agrupamento de corpos seminus ocupam as praias das férias europeias, espreitam as cidades, aparecem em todos os resorts. Não se pode não vê-los. A ontologia sartreana do corpo exposta em "O ser e o nada" encontra aqui a sua verificação empírica: o nosso corpo é sempre visto, não pode evitar de ser submetido ao olhar do Outro que nos "medusiza" fatalmente, transformando-nos de sujeitos em objetos. O nosso corpo, de fato, nunca é só nosso. Por diversas razões: não decidimos as suas características, adoece e morre mesmo se nós não o quisermos.
Mas, acima de tudo, ele é sempre visto pelo olhar dos outros. Sartre havia enfatizado isso fortemente: o nosso corpo é sempre olhado, fotografado, petrificado pelo olhar do Outro. Às vezes, dão-se conta disso traumaticamente as jovens mulheres, quando fazem experiência da voluptuosidade do olhar masculino: o seu corpo aparece, pela primeira vez, como algo que foge a si mesmo.
O exibicionismo, antes de ser uma patologia, deriva desse status sempre visível do corpo. O nosso corpo é jogado, por força maior, em uma contínua exibição. Trata-se de um exibicionismo que coincide com a própria vida e que não podemos evitar de modo algum, mas apenas viver com mais ou menos alegria ou angústia.
Esse status necessariamente exposto, exibido, alienado do nosso corpo, porém, pode se acentuar patologicamente. As insistentes dietas quaresmais, os exercícios fitness massacrantes, a obsessão com a própria forma, as intervenções de cirurgia plástica para modelar o corpo adaptando-o aos seus estereótipos sociais são um exemplo evidente disso.
Uma paciente, anos atrás, me contava sobre o efeito depressivo que o seu corpo ao espelho, superados os 50 anos, lhe causava de vez em quando. Em particular, ela via se amplificarem as inúmeras intervenções de cirurgia plástica às quais tinha se submetido: nos lábios, nas bochechas, nos seios, nas pernas e nos quadris. A sensação estranhante que ela sentia era a de ter o corpo de outra. Com efeito, a sua pergunta "por quem eu fiz tudo isso?" deixava vazar que, certamente, não havia sido por ela mesma, que não havia sido para se agradar mais que ela tinha oferecido o seu corpo ao bisturi.
Freud já havia posto em relação o exibicionismo com a angústia de castração: mostrar o próprio corpo perfeitamente em forme exibindo a sua beleza ou força muscular são tentativas para preencher um profundo sentimento de inadequação. A excessiva atenção à própria imagem, ao contrário do que se pode acreditar, não denuncia tanto o narcisismo do sujeito, mas sim uma ferida dele, que exige ser compensada.
Esses sujeitos, para existirem, devem se conformar com o ideal que o olhar do Outro lhes impõe como normativo. Não é preciso ser psicanalista para entender que certas transformações mediante cirurgia estética a que se submetem os corpos femininos não respondem, de fato, ao critério de embelezamento do próprio corpo, mas ao de uma radical metamorfose dele, a fim de torná-lo o mais semelhante possível àquilo que o imaginário erótico masculino exige.
O cânone que se impõe, comumente, é o das comédias à la Alvaro Vitali. O corpo se assimila a uma boneca que deve satisfazer as exigências sexuais do próprio parceiro. O refrão das vedetes de plantão que falam das operações plásticas a que se submeteram, defendendo ter feito isso para se sentirem consigo mesmas, muitas vezes, não diz a verdade. Na realidade, trata-se de modificar o próprio corpo para torná-lo mais atraente para o olhar do Outro e não para o próprio. É a essência do exibicionismo narcisista.
O exibicionismo como forma específica de perversão, porém, não tem a ver com tudo isso. Nem com o status ontologicamente sempre visível do nosso corpo, nem com a sua modelagem sobre o olhar e o fantasma do Outro. O exibicionismo se torna realmente pervertido quando, como lucidamente explica Lacan, não goza ao se apresentar ao olhar do Outro, ao se deixar ver, como se diz, mas ao provocar a sua angústia.
A imagem do exibicionista que gira nu sob o seu inevitável casaco para se oferecer ao olhar do Outro deve ser repensada. Não se trata de gozar ao se expor, mas ao desconcertar quem observa a cena, em quebrar não o próprio tabu, mas o do Outro.
Esse é o específico da dimensão propriamente perversa do exibicionismo: mais do que ao belo, à sedução, à complacência ou à exibição do próprio corpo para enfeitiçar o olhar do Outro, ele visa a se apossar dele, a sacudi-lo para arrastá-lo na angústia.
Existe um gozo (inconsciente ou consciente) em mostrar o próprio corpo que se tornou monstro, que consiste em se apossar do olhar do Outro. É algo que podemos ver em obra naqueles corpos que mostram sem pudor as próprias deformações. Isso acontece, por exemplo, nas grandes obesidades ou nas formas graves de anorexia, ou naqueles corpos que carregam sobre si alterações profundas da sua imagem que se tornou marciana, por exemplo, por um uso excessivo e provocatório de piercings.
É isso, enfim, que se evidencia em certas tendências da arte contemporânea, onde a ostentação do feio, do horrível, do obsceno e do abjeto serve para fazer descer o olhar do espectador, para preenchê-lo de angústia.
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A verdade escondida por trás da obsessão com o corpo perfeito. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU