24 Junho 2016
“É imperioso que qualquer alteração não só à Lei Maria da Penha, mas de qualquer instrumento legal que lide com direitos tão sensíveis, seja submetida a amplo debate social, especialmente com a participação de grupos e movimentos sociais que mais são afetados por tais mudanças”, escreve Ana Paula Braga, advogada, membra da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP e da Rede Feminista de Juristas e sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e Marina Ruzzi, advogada, mestranda em Gestão de Políticas Públicas pela USP, membra da Rede Feminista de Juristas e sócia da Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas, em artigo publicado por CartaCapital, 23-06-2016.
Segundo elas, “insistir numa rápida aprovação do Projeto de Lei n. 07/2016 demonstra a existência de um interesse corporativista antes de qualquer ideal democrático”.
Eis o artigo.
No dia 7 de agosto deste ano, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completará 10 anos de existência. Essa lei, que é uma das mais elogiadas internacionalmente no tocante à proteção da mulher em situação de violência doméstica, poderá, pela primeira vez, ser alterada pelo polêmico Projeto de Lei nº 07/16, que modifica e acrescenta alguns dispositivos à Maria da Penha.
Esse Projeto está dividindo opiniões de operadores do direito e de movimentos sociais e feministas. Em que pese alguns avanços – como a previsão de que o atendimento às mulheres em situação de violência nas delegacias de polícia seja feito preferencialmente por profissionais do sexo feminino, e da previsão de não revitimização da mulher durante esse atendimento e durante as investigações –, alguns pontos devem ser elucidados com maior cautela.
Em primeiro lugar, critica-se a rápida tramitação do projeto de lei, sem que tenha havido prévio diálogo com o movimento de defesa dos direitos das mulheres, que foi o principal responsável pela conquista da Lei Maria da Penha. Teme-se que a aprovação célere da lei não abra espaço para debate e para ouvir as reivindicações das principais interessadas no tema: as mulheres.
Mas o ponto mais polêmico certamente é a introdução do artigo 12-B, que confere à autoridade policial o poder de conceder ou não as medidas protetivas de urgência – competência que hoje é exclusiva do Poder Judiciário.
A justificativa para a inclusão de tal artigo é que essas medidas, para que sejam eficazes, precisam ser conferidas com a maior rapidez possível – evitando assim novas agressões e risco de morte. Sendo concedidas diretamente na delegacia, poupar-se-ia o tempo do envio do pedido à apreciação do juiz, o que pode levar até 48 horas. O argumento tem como lema “quem tem dor, tem pressa”.
Entretanto, é preciso ressaltar que, ao conferir esta competência às autoridades policiais, corre-se grande risco de se surtir efeito contrário e esta medida se configurar, na verdade, em um novo óbice à proteção das mulheres.
Já resta claro, por meio das incontáveis notícias e relatos, que uma das maiores barreiras das mulheres em situação de violência doméstica é justamente o tratamento humilhante e machista que recebem nas delegacias.
As polícias do país, em sua grande maioria, ainda são despreparadas para lidar com violência de gênero. Entre as grandes queixas das mulheres que se encontram em situação de violência e que buscam ajuda policial, está a falta de acolhimento e de atenção a seu problema.
Não raro, mulheres têm seus depoimentos questionados, menosprezados, além de serem culpabilizadas pela violência que sofrem, saindo muitas vezes da delegacia sem sequer conseguir registrar boletim de ocorrência. Quem dirá então ganhar as medidas protetivas de que tanto necessitam.
Além disso, o artigo 12-B sofre de clara inconstitucionalidade, pois ofende o princípio constitucional da separação de poderes, uma vez que confere a um órgão do Poder Executivo competência jurisdicional de apreciar direitos fundamentais sensíveis.
Sendo assim, é possível que haja uma futura ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o que poderá enfraquecer a Lei Maria da Penha e causar insegurança jurídica às mulheres que tiveram suas medidas protetivas deferidas inconstitucionalmente por delegados de polícia.
Ainda há de se destacar que o projeto de lei introduz o termo “vítima” para se referir às mulheres em situação de violência, afastando-se do texto da Lei Maria da Penha, o qual se refere apenas às “mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.
A não utilização do termo “vítima” é considerada um avanço da lei, pois não restringe a mulher à condição passiva da violência que está vivendo. Afinal, chamá-la de vítima é não reconhecer o seu poder de ação, focando apenas no sentido negativo de suas experiências.
Essa escolha não foi acidental: a Lei Maria da Penha contou com a ampla participação de movimentos sociais, os quais lutaram pela utilização do termo politicamente mais adequado.
Outro ponto que vale mencionar é que há outros projetos de lei pela defesa de direitos das mulheres tramitando há anos no Congresso Nacional, e que não contaram com tamanho compromisso por parte dos parlamentares.
Um exemplo é o projeto de lei nº 2.431/2007, que dispõe sobre a inclusão, nos currículos escolares, de conteúdos e práticas que contribuam para o combate da violência doméstica contra a mulher. Causa, portanto, estranheza a rapidez com que o PL 07/2016 está sendo votado. Entende-se que parte disso talvez advenha de um lobby por parte dos delegados, os quais estão de certa forma representados na chamada “bancada da bala”.
Por fim, é certo que trazer determinadas demandas à lei é importante para lhes dar destaque e lhes reconhecer a importância – como a previsão de que as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher funcionem ininterruptamente.
Sem previsão orçamentária que permita que essas medidas sejam implementadas, porém, elas estão completamente fadadas à ineficiência. Uma lei não tem condições de criar determinada política apenas por meio de sua aprovação: é necessário que haja uma articulação entre os Poderes para que certos projetos sejam efetivados.
Sem o orçamento necessário que permita que novas Delegacias da Mulher sejam criadas, que passem a funcionar 24 horas por dia, em que o atendimento seja realizado prioritariamente por mulheres e que os funcionários tenham uma formação adequada para esse tipo de atendimento, é possível que tais mudanças legislativas fiquem apenas no papel, e que a simples aprovação do texto da lei retire da pauta de discussão a necessidade de implementação real de tais medidas.
Por isso, é imperioso que qualquer alteração não só à Lei Maria da Penha, mas de qualquer instrumento legal que lide com direitos tão sensíveis, seja submetida a amplo debate social, especialmente com a participação de grupos e movimentos sociais que mais são afetados por tais mudanças.
Também é necessário que as previsões de políticas públicas voltadas para o atendimento dessas mulheres sejam devidamente implementadas e capilarizadas, uma vez que sequer se conseguiu consagrar os avanços já conquistados em todos os lugares do Brasil.
Assim, insistir numa rápida aprovação do Projeto de Lei n. 07/2016 demonstra a existência de um interesse corporativista antes de qualquer ideal democrático. Com isso, as maiores prejudicadas serão as mulheres em situação de violência doméstica, que não terão seus direitos concretamente garantidos.
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O Projeto de Lei n. 07/2016 e os riscos iminentes à Lei Maria da Penha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU