22 Junho 2016
A política como subjetivação: seminário debate transição a outro desenvolvimento e aponta para feminismo, direitos da natureza e espiritualidade.
O artigo é de Inês Castilho, jornalista, publicado por Outras Palavras, 20-06-2016.
Primeiramente, fora temer em nós. Pois a barbárie exterior se alimenta da nossa barbárie interior.
Desde que bandeiras partidárias foram expulsas, há exatos 3 anos, nas Jornadas de Junho de 2013, só aumenta a desconstrução da farsa política que não nos representa. Do espetáculo de horror da votação do impeachment, no 17 de abril, quando fomos instadas a ver nossos destinos cidadãos nas mãos daqueles homens brancos, ricos e corruptos; e depois a barbárie do estupro coletivo, evidencia-se a busca necessária e urgente de novos caminhos, formas de (in)ação política e convivência planetária, de subjetivação coletiva na tolerância e no amor. Pois, é preciso repetir, a raiz da barbárie está no coração do homem.
É dessa perspectiva que a Abong – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais e o Iser Assessoria – Religião, Cidadania e Democracia realizaram o seminário “Novos Paradigmas: Rumo ao Bem Viver”, nestes dias 13 e 14 de junho, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Os debates giraram em torno da necessidade de transformar o modelo de desenvolvimento dominante, baseado numa concepção produtivista-consumista que desconsidera os limites da natureza e aprofunda as desigualdades sociais.
A transformação pessoal seria o fundamento da transição, desta mu-dança que, como diz Immanuel Wallerstein, depende de nossas infinitas pequenas ações, a micropolítica, para se realizar no campo progressista. E norteia-se por valores como a diversidade, que se espelha e honra a lógica da vida, o conflito como riqueza, o autoconhecimento como mobilizador.
Intuição, silêncio, meditar junto, tudo isso é parte do desenvolvimento. Desenvolvimento individual também é política, e é preciso ser incorporado como tal – afinal, seria o mundo da política só o da ação, não o da subjetivação? Passar da lógica mais egoica, afirmativa, para uma lógica integrativa, de ser parte. Rompendo com nós somos os bons, os outros não – a lógica da esquerda.
Trata-se de e, não de ou, incorporando a complexidade de Edgar Morin. Ver a diferença como complementaridade, a sombra e a luz em si, inclusive – a rigor único espaço sobre o qual se tem alguma soberania. Meditar coletivamente em busca de cidadania planetária, Nacion Pachamama. Desilusão do controle.
O eixo da mudança seria deixarmos de achar que somos o centro do mundo e focar excessivamente em nosso ponto de vista. Enfrentar o desafio da conversão, converter-se em outro, no Outro. Ao mesmo tempo aceitar o erro, a incoerência, pois a amizade implica o perdão prévio. Reorientar com amor, de modo a reenamorar-nos. Ouvir sua voz entre as outras – it1s a long way. Ter na arte uma alegria, um norte, uma cura.
“Um ponto crucial da transformação do mundo é a coerência entre o que se diz e o que se faz, o envolvimento na transformação pessoal de cada um dos membros do coletivo. O que faço aqui-agora tem interferência no mundo. A ideia da interdependência, do salto quântico, da não-localidade quântica, essas ideias não são em geral validadas, mas particularmente as mulheres sabem que são verdade. Sair do mundo patriarcal para um mundo equilibrado. E por estar no patriarcado valorizar as práticas femininas do cuidado, da conservação, a lógica feminina de manutenção do cotidiano” – palavras de Débora Nunes, arquiteta e urbanista.
Outra política
Não o poder sobre o outro, mas com o outro. O poder não controlador, mas libertador. Novos coletivos praticando poder como serviço, não como instrumento de dominação. Avançar os novos paradigmas nas categorias feministas, dos direitos da natureza (assegurados na Constituição do Equador e da Bolívia). Circular a liderança, dividir tanto o poder quanto a responsabilidade. E ao descentralizar ganhar tempo de ser, de cuidar de si, de contemplar, empoderar outros, outras.
“Por isso os bastidores das organizações são tão importantes. Quem limpa, cozinha, organiza, trazer para o palco. Com alegria, uma política da amizade que é inspiração maior, inclusive da política. A amizade é cúmplice e também exigente, exige a coerência que evita sermos cooptados. O ego é muito sedutor, então um controla os excessos do ego do outro. Romper com a lógica de identificar diferenças como superiores ou inferiores. Um coletivo cúmplice da nossa palavra inconsciente.”
Daí para as instituições, pro instituinte. Por exemplo, o exercício do mandato político não será uma profissão, mas um serviço. Não um privilégio, mas uma honra, mandatários e mandatárias encarnando seus representados e como tal ganhando a média do salário da população, usando o SUS, a escola pública, o transporte coletivo. Candidatos também por sorteio, numa lógica plural de interesses territoriais, profissionais. Além de um direito, o controle do poder considerado como uma obrigação da cidadania. Abrir nosso imaginário.
Com uma circularidade que não cabe no Estado nacional, mas na governança de territórios. O conceito de cidadania planetária significando a participação em espaços da comunidade, da cidade, do bioma, país, planeta. Avançar na visão da transformação a partir dos biomas , a convivência na caatinga, no semiárido.
Com a presença da voz e do calor, na troca e no diálogo presencial da educação popular, mas também nas relações mediadas por novas tecnologias, com educação à distância.
Mas atenção: belas ideias podem contudo tornar-se autoritárias, se não forem coconstruídas. Por isso falamos em transição. A solução pronta, o modelo, é completamente contrário à lógica orgânica dos novos coletivos cidadãos, dos novos paradigmas científicos (que pleiteiam a incorporação da incerteza como fato incontornável da Vida) e dos novos modelos de vida, que inspiram novos modelos políticos.
A mudança não será feita pela governança mundial. Mas poderá ser feita sem ela? A pergunta fica no ar. Fundamental agora é pensar a visão estratégica, a transição do modelo produtivista-consumista para outro modelo, o pós-capitalismo.
Experiências vivas
Diante de crises permanentes como mudanças climáticas e aquecimento global, da lógica cumulativa como estratégia de desenvolvimento, um desenvolvimento para poucos que transforma a humanidade em “inquilina no planeta”, o imaginário político precisa abrir-se e se reinventar. Uma inspiração são as formas práticas que a sociedade civil já usa para organizar suas intervenções no espaço público.
“Mudanças profundas vêm de baixo, dos pequenos. Falo de um desenvolvimento para a vida, de experiências do viver local que dão pequenas lições, por exemplo, de consumo responsável, economia colaborativa, territórios solidários, resistência propositiva. Práticas sustentáveis ou inovadoras são trilhas que podem mostrar esse novo paradigma de desenvolvimento ou sociedade”, diz Jorge Krekeler, que recolhe experiências inovadoras na Bolívia, Peru, Equador e Colômbia no projeto Almanaque do Futuro.
Consumo consciente, comércio justo, administração autogestionária. O desafio da comunicação. “Na América Latina a cultura é oral, por isso falamos em blog presencial – se as pessoas não se conhecem, não adianta. A quantas pessoas se pode chegar com essa sobredose constante de informação?, pergunta Jorge, que fala de um mundo plano, de movimentos em que não há hierarquias, intergeneracionais. Que venham a formar massas criticas para promover a transformação.
Também no Brasil um mapa de iniciativas com gestão democrática, energia renovável, cultivo agroecológico, produção e comercialização que valorizam o local começa a ser desenhado no Observatório da Sociedade Civil, projeto da Abong que reúne e divulga experiências “que apontam para a construção de um novo paradigma de desenvolvimento que conjugue justiça social, radicalização da democracia e a convivência harmoniosa com o meio ambiente”.
Agroecologia
Nos últimos 15 nos, o uso de agrotóxico no Brasil foi de 7kg a 15k por hectare e as monoculturas, voltadas principalmente para exportação – de soja, milho e algodão – cresceram assustadoramente. A agricultura que vem da chamada revolução verde, baseada no uso de insumos químicos e maquinário pesado, tem nesses venenos 20% do seu custo de produção. Não se trata de defensivo agrícola ou remédio, como querem seus fabricantes, mas venenos com grande impacto no meio ambiente, e – pasmem! – embora sejam tão nefastos à saúde quanto o cigarro, recebem subsídios por meio de isenção de impostos.
“A agroecologia é uma ciência e uma prática com melhor manejo da natureza. Tem dimensão social e política, porque é um processo de construção social de mercados, de aproximar produtores e consumidores e valorizar a semente crioula, a semente da paixão, semente da fartura no Nordeste – e que são adaptadas ao clima, às condições do solo”, ensina Maria Emilia Lisboa Pacheco, presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar).
Hoje em risco de desmonte pela extinção do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), a agroecologia segue lógica distinta da chamada agricultura convencional. Pensa no conjunto, não mede produtividade por hectare; não busca difundir, mas trocar conhecimentos. A diversidade é seu princípio-chave, por inspiração no conhecimento tradicional, na contramão de análise de espécies em separado.
É uma ciência cidadã, que dialoga com o movimentos sociais, lembrando a importância das mulheres, desde a publicação do livro de Ana Primavesi, Manejo Ecológico do Solo, bíblia dos agroecologistas, até a militância das camponesas da Marcha das Margaridas e das feministas da Marcha Mundial das Mulheres.
Está associada à economia solidária – outro tema em debate no seminário. Deve ter um circuito curto de mercado, para evitar o “passeio de alimentos”, que chega a milhares de quilômetros, e descentralizar o sistema de distribuição e abastecimento alimentar no Brasil.
“Isso se faz apoiando feiras, principalmente agroecológicas, sistemas de rede da economia solidária, e existem muitos no Brasil, garantindo que o pequeno varejo não seja tragado pelos grandes monopólios. Valorizar experiências como a Rede Ecovida, caminhões que saem do Rio Grande do Sul com a maçã e vão até o Vale do Ribeira, em São Paulo, trocando produtos, compondo feiras. São iniciativas que precisam ser transformadas em políticas públicas. Usam menos energia e promovem a aproximação entre quem produz e quem consome, e maior diversidade, em respeito inclusive ao tempo de safra dos vários alimentos.”
Outra inteligência
Nas palavras de Kaká Werá, escritor e ambientalista, e do teólogo Marcelo Arruda, o seminário foi buscar os valores norteadores dessa transição ali onde é mais profunda a visão sobre a natureza humana – os caminhos espirituais. Na ideia de unidade e interconexão com a Vida em todas as suas expressões. Com o Cosmos. A humanidade em todas as suas gerações e com as outras espécies, outra visão sobre a natureza humana. A importância da sutileza, da energia sutil. Buscando pautas comuns na meditação conjunta.
Aprender com os índios, povos muito antigos cuja sabedoria em medicina, convivência, arquitetura, nasce de um diálogo com o ecossistema. Diálogo que nasce de outro lugar, dos sonhos, do coração, e não passa por uma observação somente exterior. Cultivar uma inteligência diferente da racional, perceber a interdependência entre os reinos mineral, animal, humano. “Que a sociedade desenvolva essa outra inteligência”, deseja Kaká Werá.
Um senso profundo de pertencimento – pertencemos à terra, não a terra pertence a nós. O lugar onde se habita é um templo vivo. Uma espiritualidade fundamental, em que os ecossistemas são os ancestrais. Árvores, cachoeiras da Mata Atlântica são ancestrais – o que dá pertencimento, relações de sustentação, de ali se alimentar e morar.
“Deixar-se guiar pelo Espírito. Espírito como Pachamama, ecossistema, energia universal. A Terra é um ser, uma inteligência viva. A espiritualidade é esse modo olhar, o Despertar“, diz Marcelo Arruda.
Ubuntu: Sou porque Você é. Namastê: o Ser em mim saúda o Ser em você. Amar ao Próximo como a Si mesma. Tudo está conectado, nada separado. Yin e Yang. Somos filhos das estrelas e irmãs da pedras, compostos dos mesmos materiais, sofrendo as mesmas forças (da gravidade, força fraca, força forte…).
Espantar o medo, povo sem medo, trazer à luz o inconsciente coletivo. O caminho do coração indígena (outras linguagens), o caminho da compaixão budista, o caminho de Jesus, nem a saída nem a chegada – o caminho, o Tao. Antes da Queda do Céu.
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A humanidade como um fio da teia da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU