30 Mai 2016
O Vaticano sempre foi uma estufa para as teorias da conspiração, e uma nova controvérsia sobre o chamado Terceiro Segredo de Fátima está mostrando o quão persistentes essas fixações podem ser - na medida em que o último episódio até mesmo forçou a saída do Papa Emérito Bento XVI de seu retiro para refutar alegações de que ele haveria encoberto a verdade sobre a misteriosa profecia.
A reportagem é de David Gibson, publicada por Religion News Service, 28-05-2016. A tradução é de Luísa Flores.
Ao mesmo tempo, no entanto, a nova saga do terceiro segredo de Fátima tem ofuscado o que poderia ser algo muito mais problemático para o Vaticano: como a presença de Bento XVI como o primeiro ex-papa em mais de seis séculos continua a levantar questões sobre a natureza do papado e a autoridade de Francisco, o papa atual.
Até agora, a maior parte da atenção da mídia tem sido focada nesses três "segredos" de Fátima que a Igreja Católica crê que tenham sido confiados pela Virgem Maria a três pequenos pastores na cidade portuguesa de Fátima em 1917.
Duas das profecias foram publicadas na década de 1940, mas o Terceiro Segredo - supostamente perigoso demais para ser revelado - permaneceu selado nos arquivos do Vaticano.
Esse silêncio naturalmente inflamou a imaginação religiosa dos verdadeiros crentes na profecia secreta.
Então, para acalmar os ânimos, São João Paulo II ordenou que o Terceiro Segredo fosse publicado na íntegra em 2000. Ele também fez com que seu principal teólogo, o cardeal Joseph Ratzinger, publicasse uma explicação complementar das descrições gráficas da profecia em relação às perseguições e assassinatos de papas e bispos.
Mas teorias da conspiração são difíceis de desaparecer. E este ano, logo após a festa de Nossa Senhora de Fátima de 13 de maio, um blog tradicionalista publicou afirmações de que Ratzinger - que foi eleito Bento XVI depois da morte de João Paulo em 2005 – teria revelado a um amigo que havia mais no segredo do que havia sido publicado.
O blog também sugeriu que as partes escondidas eram previsões obscuras sobre o atual pontificado do Papa Francisco e sobre a turbulência, e até mesmo heresias, que alguns conservadores acreditam que Francisco tem incentivado.
As acusações eram tão explosivas que o escritório de imprensa do Vaticano emitiu uma negação veemente em 21 de maio, citando diretamente o frágil ex-papa de 89 anos de idade. Bento XVI descreveu os relatórios como "puras invenções, absolutamente falsos" e confirmou que "a publicação do Terceiro Segredo de Fátima está concluída".
Claro, nem todos os devotos de Fátima estavam convencidos, e alguns argumentaram que a negação era apenas parte da conspiração - e por aí vai.
Desde o "Código Da Vinci" de Dan Brown até os rumores de conclaves fraudulentos, da lenda medieval da "Papisa Joana" a sussurros de enredos maçônicos e assassinatos papais, a cultura secreta de Roma faz brotar numerosas tramas.
Mas enquanto a história de Fátima produzia manchetes, o assessor pessoal de longa data de Bento XVI, Dom Georg Gänswein, fez um discurso surpreendentemente franco que reacendeu a questão igualmente potente da existência de dois papas ou um, ou se o próprio papado foi redefinido.
Falando em um evento de 20 de maio na Universidade Gregoriana de Roma para o lançamento de um livro dedicado ao pontificado de Bento - e tendo ganhado muita atenção um dia antes de declaração de Bento sobre Fátima - Ganswein disse que o papado "continua a ser a base da Igreja Católica", mas disse que "o ministério papal não é o mesmo de antes".
Bento XVI, explicou ele, "deixou o trono papal e, no entanto, mesmo com o passo dado em 11 de fevereiro de 2013, não abandonou este ministério [papal]". Gänswein disse que renunciar nesse sentido teria sido "impossível após a sua aceitação irrevogável do cargo em abril de 2005", quando o conclave de cardeais elegeu Bento como papa.
Ganswein prosseguiu dizendo que Bento intencionalmente "construiu um escritório pessoal com uma dimensão colegial e sinodal, quase um ministério comum".
Por isso, ele disse, há "não dois papas, mas sim um ministério expandido - com um membro ativo e um membro contemplativo", referindo-se a Francisco e Bento XVI.
O papa emérito "havia apenas dado um passo ao lado para ceder lugar a seu sucessor e a uma nova etapa na história do papado".
Fica em aberto se Gänswein clarificou ou confundiu o conceito do que o papado é hoje e em que sentido poderia haver dois papas ao mesmo tempo.
Mas o arcebispo - que, além de cuidar de Bento XVI, também desempenha um papel cerimonial importante na administração do Papa Francisco - continuou seu pronunciamento. Nessa fala, por exemplo, ele procurou distinguir a renúncia de Bento daquela do último papa a sair do cargo, Celestino V.
Celestino era um eremita idoso, Pietro da Marrone, que foi escolhido como Papa em 1294 por cardeais que haviam sido bloqueados durante dois anos antes de um sucessor. Celestino estava sobrecarregado com o trabalho e a situação e abdicou do posto após cinco meses, revertendo para seu nome original.
Ele foi preso por seu sucessor, Bonifácio VIII, que temia que alguns pudessem reunir-se em favor de Celestino como um antipapa; Celestino definhou na prisão e morreu em 1296.
Em seu discurso, Gänswein disse que a renúncia de Bento não era semelhante à de Celestino, pois diferentemente dele, o Papa Bento não voltou a usar seu nome de batismo, Joseph Ratzinger, depois de deixar o cargo nem parou de usar a distintiva batina papal branca.
No entanto, as afirmações de Gänswein realmente parecem ir contra algumas das próprias palavras de Bento XVI. O papa emérito, depois de muita especulação sobre o porquê de ele manter o título papal e a batina branca, disse a um entrevistador em 2014 que "não havia outras roupas disponíveis" quando renunciou - uma explicação que muitos acharam estranha, para dizer o mínimo.
Ele também disse que queria ser chamado de "Padre Bento" na aposentadoria, ao invés de "Papa Emérito" ou mesmo "Bento XVI", mas disse: "Eu estava muito fraco naquele momento para colocar isso em prática".
O próprio Bento sempre sublinhou que Francisco é o papa legítimo, mas o argumento notável de Gänswein sobre um papado "transformado" e um "ministério expandido" com dois papas trabalhando lado a lado levanta todos os tipos de questões, dada a clara doutrina da Igreja Católica sobre a autoridade suprema e papel central do papa, o sucessor de São Pedro.
Na verdade, desde o momento em que Bento surpreendeu o mundo católico e especialmente seus aliados de opiniões tradicionais, houve um debate sobre se um papa poderia de fato renunciar, abdicar, ou se aposentar. (O próprio Bento usou o termo "renunciar".)
Em seus frágeis últimos anos, São João Paulo II declarou que tal renúncia era impossível - "Por acaso Cristo desceu da cruz?", ele haveria relatado. Gänswein parecia estar tentando encontrar um meio termo ao observar que, enquanto Bento XVI efetivamente renunciou, ele também continua sendo papa, em certo sentido, ou pelo menos um dos papas.
Nem todo mundo estava convencido. As afirmações de Gänswein de "que temos dois papas são claramente absurdas e ridículas" twittou Massimo Faggioli, um historiador da igreja e teólogo da Universidade de Villanova.
Do outro lado do espectro, um blogueiro conhecido como Augustinus, que escreve para o site tradicionalista Rorate Caeli, respondeu ao discurso de Ganswein argumentando que "a ideia de que o próprio papado tenha agora se transformado em suas profundezas e que para que esta transformação se realizasse a vontade e as ações de Bento XVI em fevereiro de 2013 tenham sido o suficiente, levanta questões extremamente sensíveis, negativas e perturbadoras sobre a própria teologia da Igreja".
Rocco Palmo, que escreve um blog de insider clerical, chamado "Whispers in the Loggia", chamou o modelo de Gänswein de "Diarquia Papal" - em oposição a uma monarquia - um meme que já estava sendo estimulado na mídia italiana há dois anos por fãs de Bento XVI.
Sob esse raciocínio, Bento renunciou ao aspecto de governança do papado, mas compartilha os outros poderes e permanece em um mosteiro no próprio Vaticano para expressar essa autoridade partilhada.
Agora, isso é uma receita para uma conspiração do Vaticano tão grande quanto o Terceiro Segredo de Fátima e suas chamas não precisam de muito oxigênio, dada a forma como Francisco abalou os conservadores.
Bento XVI, na verdade, já era um ponto de manifestações de católicos descontentes com o Papa Francisco e os discípulos do papa aposentado continuam a lançar iniciativas para promover seu legado.
Além disso, enquanto o papa emérito comprometeu-se a ficar "escondido do mundo" após a sua impressionante renúncia, ele tem aparecido periodicamente em eventos do Vaticano - muitas vezes a pedido do Papa Francisco, que o encoraja a assumir uma figura de "avô" para a igreja. Ele também fala regularmente e escreve para fieis seguidores para transmitir seus pontos de vista sobre várias questões.
Tudo isso colocou lenha na fogueira da conspiração.
Agora o próprio braço direito de Bento colocou mais lenha nessa fogueira, que parece improvável de apagar tão cedo.
Em seu discurso na Universidade Gregoriana, Gänswein lamentou os comentários feitos por ele em março descrevendo Bento XVI - que estava prestes a completar 89 anos - como "uma vela que está apagando lentamente, serenamente".
Essa observação deixou em pânico muitas pessoas na Igreja, não apenas alguns gatos pingados.
Gänswein disse, no entanto, que seu comentário "foi estúpido." Bento XVI, por mais que seja frágil, é mentalmente ativo, ele disse, e continua a receber visitantes e lidar com correspondências.
Gänswein também disse que Bento pode fazer uma grande aparição pública no Vaticano em 29 de junho, que marcará o 65º aniversário de sua ordenação como padre. "[I]sto pode representar uma oportunidade para mostrar que Bento XVI está bem", ele disse.
Também pode ser uma oportunidade de contato sem outra rodada de especulação sobre quem realmente é o papa, ou se realmente há dois papas.
E como se isso não fosse suficiente, o Vaticano anunciou que Francisco (o outro papa) está planejando visitar Fátima no próximo ano para o centenário das aparições marianas.
Neste ponto, as linhas do enredo poderiam escrever-se sozinhas.
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Uma conspiração do Vaticano persiste e um mistério maior se desenrola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU