Por: André | 16 Mai 2016
A misericórdia de que fala o Papa Francisco tem consequências sociais, políticas e econômicas; Francisco está apelando a uma reforma dos corações de todos, não apenas dos católicos; e ao denunciar o imperialismo internacional do dinheiro não faz outra coisa senão repetir palavras de seus antecessores – estas são algumas das afirmações de Andrea Tornielli, um dos vaticanistas que mais conhece Jorge Mario Bergoglio e o funcionamento interno do Vaticano, o Estado conduzido por esse jesuíta argentino desde março de 2013.
Escrever sobre o Papa parece ser a principal ocupação do jornalista Tornielli. Nos três anos em que Bergoglio é Papa, foram publicados quatro livros de Tornielli que o tem como protagonista: uma biografia (Jorge Mario Bergoglio: Francisco); um livro de histórias e anedotas dos primeiros meses de pontificado (Florzinhas de Francisco); um ensaio sobre um tema, o pensamento econômico do papa (Esta economia mata), e uma entrevista exclusivamente sobre um tema (O nome de Deus é misericórdia). Tornielli também é autor de biografias dos Papas Bento XVI, Paulo VI e Pio XII e de outros títulos, como os que o levaram a conhecer Bergoglio, em 2005.
Aos 52 anos, Tornielli vive em Milão e vai e vem a Roma para fazer seu trabalho como vaticanista para o jornal La Stampa e dirigir o Vatican Insider, o sítio digital desse jornal dedicado às notícias sobre a Igreja. Convidado pelo Instituto de Cultura Italiano para apresentar seu último livro (editado no Brasil pela Editora Planeta) na Feira do Livro, Tornielli visitou Buenos Aires pela primeira vez e conversou com La Nación.
A entrevista é de Silvina Premat e publicada por La Nación, 12-05-2016. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Você conheceu Jorge Bergoglio antes de ser eleito Papa?
Sim. Conheci-o em 2005 em Roma. Certo dia, o vi cruzando a Praça São Pedro e me aproximei para saudá-lo. Eu sabia que ele conhecia um amigo meu que o havia entrevistado em Buenos Aires em 2001. Por isso, mencionei-lhe esse amigo e dei-lhe de presente dois livros que eu havia escrito sobre a infância de Jesus e a Ressurreição. Depois me escreveu para me contar que tinha lido os dois livros e pediu para que os publicasse pela Editora Claretiana, e inclusive fez um prólogo para um deles. Assim começou o contato e depois o via quando ele ia a Roma para as reuniões das Congregações.
Nota mudanças entre esse Bergoglio que conheceu e o Papa Francisco?
Agora ele sorri mais, mas não vejo outras mudanças. Eu sempre o vi em ambientes privados e não em encontros em público. Nesses encontros privados era como agora, tinha um trato com os outros simples e direto e sempre pedia que rezassem por ele.
Você já escreveu vários livros sobre Bergoglio. Por que quis fazer uma entrevista específica sobre a misericórdia?
Porque queria apresentar o seu coração e investigar por que esse tema é importante em seu pontificado e por que este ano da misericórdia. Fiz-lhe a proposta e não me disse nem sim nem não; disse-me apenas: “vamos ver”. Depois lhe mandei um projeto com algumas perguntas e ele marcou um encontro. Eu não queria fazer-lhe perguntas para ter um bom título sobre os divorciados recasados ou algum tema quente, mas pensava este livro como uma porta aberta, como uma possibilidade de aproximação. Nesse sentido, não é um trabalho totalmente jornalístico, é diferente.
O livro O nome de Deus é misericórdia nasce de uma única entrevista?
Sim, foi uma conversa de várias horas e depois o trabalho continuou com comentários ou correções por telefone e correio eletrônico.
Que vínculo existe entre misericórdia e justiça e entre misericórdia e política?
Chamou-me muito a atenção quando, em 2001, algumas semanas após o grande ataque de 11 de setembro contra os Estados Unidos, São João Paulo II, em sua primeira mensagem ao Dia Mundial da Paz, disse que não há paz sem justiça e não há justiça sem perdão. Ou seja, o perdão e a misericórdia são necessários para que possa haver verdadeira justiça e são necessários também para a vida social de um país.
Portanto, a misericórdia não é um tema que afeta apenas a nossa relação com Deus, mas tem consequências sociais na vida das famílias que, como disse o Papa, são escola de misericórdia. Mas a misericórdia tem consequências também para a vida de uma cidade, de um país e para a vida política. Também para as relações entre os Estados, porque se não há misericórdia e perdão, se não há a possibilidade para todos de dar um passo atrás renunciando ao que talvez se teria que ter, não há reconciliação e paz.
Sabemos que a justiça humana pode chegar ser perfeita injustiça e o perdão serve para que seja verdadeira justiça. Ensinou-o João Paulo II, e o Papa Francisco ensina-o agora muito bem com a atenção que tem com os presos e suas tentativas de diálogo e de construção de pontes com todos. Creio que a mensagem do perdão e da misericórdia tem mais consequências sociais e políticas do que acreditamos.
A que economia refere-se o Papa quando afirma que “esta economia mata”?
Alguns dizem que o Papa fala contra a economia de mercado. Não é verdade. Ele diz “esta” economia mata, ou seja, um tipo de economia que não coloca no centro o homem, mas o dinheiro e o transforma em ídolo. Esta é a economia que mata. É uma economia das finanças que pode determinar qual parcela da população dos países mais pobres pode cair em um nível ainda mais baixo na pobreza. Este não é um sistema justo.
O Papa João Paulo II falou de estruturas de pecado em sua encíclica de 1987, a Sollicitudo Rei Socialis. Então, há um pecado estrutural. Se em um mundo com espaço e alimentos para todos há milhões de pessoas que não têm o que comer e são jogados fora não sei quantos alimentos, então este não é um sistema justo. É um sistema que temos que questionar sem fazer revolução, mas fazendo perguntas.
Pode nos dar um exemplo do que está dizendo?
Estive na República Centro-Africana; ali um homem do campo cultiva tomates e os vende no mercado para comprar leite e outros alimentos para a sua família. Se àquela cidade, a esse mercado, chegam tomates vindos da Itália mais baratos, cujos produtores recebem subsídios da Europa, esse homem não consegue mais vender os seus tomates. Qual é a surpresa se esta pessoa deixa o seu país buscando um futuro melhor para a sua família? Nós nos surpreendemos porque tanta gente quer emigrar, mas que economia estamos construindo? É justa?
O Papa, com muita coragem, fez esta pergunta. Creio que pela primeira vez o Papa deu tanta ênfase na necessidade de mudanças estruturais. E também na encíclica Laudato Si’ mostra as conexões. Ou seja, não há um problema de meio ambiente separado do problema da pobreza, da justiça e do econômico. Não: tudo está ligado, e se o problema da pobreza não for resolvido de forma estrutural estaremos condenados a uma crise pior do que esta que estamos vivendo.
O Papa está sendo ouvido?
Penso que prestam atenção ao que ele diz, porque cresce a consciência sobre estes temas. É incrível o que está acontecendo. Na Europa, por exemplo, há países que fazem reformas e reduzem os orçamentos para iniciativas sociais; privatizam e dizem: “temos que fazê-lo porque é uma exigência do mercado”. Mas, o que é o mercado? Quem é o senhor “mercado”? Eu nunca vi seu rosto e, sobretudo, nunca votei nele.
Há 30 anos não era assim. Há 30 anos, a política decidia os fins e a economia tinha que contribuir com os instrumentos para alcançar esses fins. Agora é o contrário. A economia decide seus fins e seus interesses – que nem sempre coincidem com os dos outros – e a política tem que fazer o trabalho para atingir esses fins. Isso é incrível.
O Papa é uma autoridade mundial e sua palavra pode ajudar para que cresça a consciência popular sobre isto. Alguém que tem dinheiro e pode escolher o que comprar e onde investir, ou seja, se premia um produto feito sem prejudicar o meio ambiente e sem usar o trabalho infantil ou se compra de empresas que causam prejudicam o meio ambiente e os outros. Pode decidir. Essa é a grande resposta, porque os cidadãos podem votar com sua carteira, podem escolher e decidir com ela.
A encícicla Laudato Si’ e os parágrafos sobre a economia na exortação Evangelli Gaudium são muito interessantes e fortes. São os conteúdos do segredo mais bem guardado da Igreja católica, é o verdadeiro quarto segredo de Fátima em sua doutrina social que ninguém conhece, embora esteja escrito em documentos do magistério.
A que está se referindo?
Em 1931, o Papa Pio XI publicou a encíclica Quadragésimo Anno, dois anos após a grande crise dos mercados financeiros de 1929, na qual fala do imperialismo internacional do dinheiro. E Pio XI não era latino-americano, não fazia parte da Teologia da Libertação, não era comunista. Além disso, ele condenou o comunismo. Disse essas palavras fortes e proféticas sobre o tema das finanças e da economia internacional que hoje nenhum político de esquerda na Europa diz. E essas são palavras de um Papa. Então, há uma riqueza na tradição da doutrina social da Igreja. O que Francisco faz é simplesmente abrir algumas páginas que muitos esqueceram, mas que não são novas; encontram-se na tradição da Igreja.
Será que foi esse esquecimento que provocou as resistências ao Papa no interior da Igreja?
Na questão social acredito que há razões históricas. Por exemplo, em 1989, o mundo estava dividido, e cada vez que se falava de uma determinada maneira de um tema social, como a pobreza, por exemplo, isso podia ser visto como um apoio ao comunismo. Havia medo disso e se tinha mais prudência.
Historicamente, então, eu posso compreender o que aconteceu, mas depois de 1989 não posso compreender. Por que este medo de falar ou aprofundar um conteúdo da doutrina social da Igreja que teria força social e também política para fazer mudanças? O Papa fala da vocação dos políticos que teriam que pensar no bem comum – quase ninguém faz isso hoje – e recuperar um protagonismo da política em relação à economia e as finanças.
Os políticos são os únicos em quem podemos votar; não votamos nos empresários nem nos chefes das finanças, que são dezenas de pessoas que em Wall Street tomam muitas decisões sobre a direção que o mundo deve tomar. Isto não é complotismo; isto é assim e necessitamos de uma política que possa retomar um pouquinho o seu protagonismo.
Voltando às resistências ao Papa.
Outros papas tiveram também resistências e talvez mais fortes, como Paulo VI. Ou seja, é quase natural que a mensagem do Papa encontre resistências. Hoje é forte com Francisco, mas acredito que é uma consequência natural. Ele está tentando apelar a uma reforma dos corações; é um chamado para todos. Há duas atitudes: colocar-se à disposição e tentar sintonizar, ou resistir e dizer que o Papa não entende nada porque vem da Argentina, da América Latina. Dizem isso por aí.
Eles se esquecem de que ele viveu aqui na Argentina fenômenos como a secularização e a crise econômica, que nós conhecemos depois. É uma maneira de dizer que não conhece a economia. Mas entende muito bem e aqueles que resistem também entendem muito bem. As resistências são naturais. Sempre quando se inicia processos de reformas há resistências, dificuldades, discussões e gente que não quer mudanças em nada, talvez para defender uma ideia, que pode ser justa e boa, mas também para defender um poder.
Na Itália, o estilo do Papa nem sempre cai no gosto da hierarquia. Também é verdade que algumas resistências não são à sua mensagem, mas ao modo como ele vive e comunica a mensagem do Concílio Vaticano II. O Papa Francisco fala muito pouco do Concílio, muito menos que João Paulo II e Bento XVI porque não tem o problema de apresentar a interpretação correta. Ele foi ordenado sacerdote depois do Concílio e o traz consigo, com sua experiência. Algumas resistências são ao Concílio, ao papel dos leigos, ao diálogo inter-religioso. Creio que é uma resistência ao fato de que ele vive e testemunha o Concílio sem falar muito do tema.
O que mais lhe impacto em Francisco? Que anedotas lembra sobre a sua relação com ele?
Especialmente duas coisas que mostram sua atenção para quem tem diante de si. Quando cheguei para a entrevista do livro O nome de Deus é misericórdia fazia muito calor e eu estava de paletó e ele me perguntou se não queria tirá-lo. Depois viu que não tinha papel para fazer minhas anotações; eu havia levado três gravadores e não ia fazer anotações por escrito. Fiz-lhe a primeira pergunta e ele se levantou e me disse: “Você não tem onde escrever. Vou buscar papel e caneta”. Disse-lhe que não era necessário. Chamou-me a atenção porque íamos falar de misericórdia e ele percebeu o que podia ser uma necessidade minha e tomou a iniciativa de resolvê-la.
Outro exemplo: quando o vi antes do conclave contei-lhe que minha mãe estava muito doente. Alguns dias após a eleição, no dia 17 de março, saudei-o ao final de uma missa que celebrou em Santa Ana e ele me perguntou como estava a minha mãe. Surpreendeu-me que depois de tudo o que lhe aconteceu – foi eleito Papa! – se lembrasse de um comentário que eu lhe havia feito.
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“É quase natural que a mensagem do Papa encontre resistências”. Entrevista com Andrea Tornielli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU