13 Mai 2016
De um texto encorpado e articulado como a Amoris laetitia, extraiu-se um único argumento, que fagocita todas as forças em campo, como se fosse o único que importa. Assim, não se honra criticamente o texto e a sua complexidade.
A opinião é do teólogo italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado no sítio da revista Settimana, 09-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há alguns dias, um teólogo da área linguística alemã lançou um provocação aos amantes da disciplina em âmbito acadêmico. Na opinião dele, precisamos hoje de uma teologia jornalística, entendendo, com isso, o aprendizado de uma capacidade de linguagem e de escolhas temáticas que permitam intervir no debate público sobre os meios de comunicação não eclesiais ou exclusivamente teológicos. Em suma, parar com uma teologia que fala de si para si mesma, ou para um pequeno círculo de pessoas. Sair, em suma, do recinto eclesial para seguir a mobilidade da Palavra cristã, que, entre nós, parece ter se empobrecido bastante.
Por história pessoal, logo me senti sintonizado com essa perspectiva, embora não seja fácil persegui-la. A instrumentalidade dos grandes meios de comunicação e o nível cultural do jornalismo atual na Itália e alhures não tornam fácil uma intenção desse tipo.
Depois, pensei como o meu mestre H. Verweyen estremeceria diante desse modo de fazer teologia. A seriedade da matéria, no rigor intelectual de um homem de outro tempo (e de outro calibre), requer um adequado e correspondente âmbito de circulação das suas ideias.
Seguramente, o uso de meios de comunicação de massa para gerir as questões eclesiais e teológicas teve efeitos-bumerangue no pós-Concílio. Diante das pressões exercidas desse modo, a Igreja e os órgãos da Cúria entraram nas trincheiras, restringindo cada vez mais os espaços para um debate livre e amplo.
Devo dizer, porém, que o mestre sempre olhou com benevolência para o meu duplo registro: academia e jornalismo. Mas, a partir da sua lição, sempre tentei manter firmes alguns pontos na tradução jornalística da teologia: escreve-se somente se se tem um bom pensamento; faz-se isso sempre com seriedade; pode-se ser mordaz, mas nunca se falta com respeito em relação ao antagonista; discute-se a coisa sem segundas intenções; faz-se isso pelo bem e o cuidado da fé, assumindo a responsabilidade por isso; nunca se espera o momento mais cômodo, mas se está pronto para correr o risco da urgência do Evangelho.
Eu creio que isso é o que devemos recolher da senhorilidade dos nossos mestres quando se trata de entrar no campo do debate público sobre questões que dizem respeito à fé e à Igreja. A intervenção teológica, também no âmbito jornalístico, sempre mantém a sua compostura, mesmo quando a disputa é dura. Eu cresci em uma atmosfera teológica em que o debate teológico sobre as ideias, às vezes, também se tornou duro; mas era sobre as ideias que se discutia, e não contra as pessoas.
Parece-me que grande parte do debate midiático dos teólogos sobre a Amoris laetitia está a anos-luz de distância desse estilo de disputa teológica. Por um lado, um levantamento de escudos de quem se sente em uma fortaleza encastelada e derrama óleo fervente sobre os agressores que ameaçam destruir a preciosa arquitetura da tradição.
Por outro lado, quase o escárnio de quem se sente vencedor (finalmente) e quer humilhar aqueles que, agora, se encontram do outro lado da barricada.
Assim, não se avança um milímetro, e certamente não se faz o bem da fé e das histórias das pessoas. E se deturpa, em ambos os lados, o fôlego e a característica basilares da Amoris laetitia.
Com um paradoxo que narra a fraqueza e também uma certa hipocrisia da teologia: todos querem estar debaixo da asa segura do magistério, que vai bem apenas quando protege e confirma as nossas ideias. Nisso, somos todos um pouco inadequados em relação ao trabalho que a teologia deveria fazer pela e na fé.
Ambas as versões do posicionamento teológico, além disso, são marcadas por um ambíguo apego à figura do poder; mesmo que o camuflem de muitos modos. O mais forte (momentâneo) se arroga o direito da exclusiva veracidade da própria posição, muitas vezes sem ouvir as razões e as preocupações do outro. E ninguém trabalha teologicamente sobre as questões e os problemas abertos pela Amoris laetitia.
De um texto encorpado e articulado, extraiu-se um único argumento, que fagocita todas as forças em campo, como se fosse o único que importa. Assim, não se honra criticamente o texto e a sua complexidade.
Aqui, creio que o meu mestre continue tendo razão: a reductio comunicativa não faz bem para a teologia, para o pensamento, nem mesmo para a fé. Mas eis-nos aqui, todos servidores dessa lógica imperiosa. Quase como se o texto pós-sinodal tivesse sido reduzido como matéria para uma prestação de contas de antigos rancores (e, às vezes, frustrações).
A atmosfera envenenada que cerca o debate em questão é o sinal de uma miséria, e não o índice de uma paixão pelas ideias que honram o humano amado por Deus. Voltando ao unum argumentum que capturou toda a discussão em nível de comunicação, é preciso afirmar, acima de tudo, a sua parcialidade em relação ao conjunto do texto.
Detenhamo-nos, contudo, por um momento, sobre ele. Dito de forma positiva: ele afirma um primado das vivências, portanto, da pastoral, sobre o ensinamento e a norma geral, ou seja, sobre a doutrina pensada como corpo abstrato e separado. É a primeira vez que isso acontece na história milenar da Igreja? Estamos realmente diante de uma novidade que rompe com a grande tradição? Que trama ele imagina existir na relação entre notícia evangélica de Deus, saber da fé e palavra de autoridade da Igreja?
Só ao responder a essas perguntas é que a teologia realmente faz o seu trabalho. E isso requer tempo; tempo que a sua versão jornalística não concede.
Sobre esse unum argumentum, a solução de Francisco é de emergência, devido à urgência de se encarregar das vivências da fé como elas são – sem tirar nada do mérito da sua decisão. Uma espécie de compromisso para tentar manter unida uma Igreja litigiosa e dividida em si mesma, sem oferecer o flanco, a uns e a outros, para uma ruptura definitiva.
Além disso, ela antecipa, de longe, a forma da Igreja por ele imaginada, quando ela, de fato, ainda não existe desse modo. No entanto, sabemos que as soluções de emergência não são duradouras, vivem da urgência do momento, justamente, se também não se transforma o sistema doutrinal e jurídico do qual elas se desviam.
Como observou N. Lüdecke, não é honesto continuar afirmando verbalmente uma doutrina e miná-la na raiz, na prática. Isso sem pôr em dúvida a honesta intenção de Francisco, mas para dizer o problema irresolvido que também a Amoris laetitia deixa ao trabalho teológico.
Dado esse problema, não há nem vencedores nem vencidos, mas há trabalho para todos – com seriedade e honestidade intelectual.
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Amoris laetitia: sobre a compostura da teologia. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU