17 Fevereiro 2016
"O que dizer do povoado de Bento Rodrigues que era habitado principalmente por agricultores familiares, que de um dia para o outro, viram tudo que construíram, durante uma vida, destruído? Dos pescadores e outros ribeirinhos que tiveram sua fonte de sustento suspensa? E povos indígenas que tiveram seu modo de vida afetado?", questiona Sucena Shkrada Resk jornalista e autora do Blog Cidadãos do Mundo, em artigo publicado por EcoDebate, 16-02-2016.
Eis o artigo.
Três meses se passaram e a conclusão a que se chega é que a expressão “tragédia anunciada” se materializou no acidente do rompimento da barragem de rejeitos minerais(de ferro) do Fundão, operada pela Samarco, controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP Biliton, em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, MG, no dia 5 de novembro de 2015.
O acidente socioambiental, considerado o maior no país até hoje, que se estendeu ao litoral capixaba, abriu a ‘caixa da pandora’ do segmento da mineração. Revelou-se que boa parte deste setor poderoso da economia que é baseado essencialmente em extrativismo dos bens naturais pouco está investindo em precaução e remediação de danos, deixando rastros de passivos ambientais. Ao mesmo tempo, a fiscalização no setor demonstra ser extremamente frágil, facilitando os descumprimentos legais.
Com as chuvas no mês de janeiro, mais um deslocamento na barragem do Fundão foi detectada no final do mês, acionando o alerta amarelo no entorno, mas sem gerar ocorrências. Ainda há o temor de novos acidentes com outras duas barragens de rejeitos da mineradora, que têm volume bem maior de sedimentos.
No último dia 5 de fevereiro, outro acidente ocorreu em Jacareí, SP. Desta vez, uma barragem de rejeitos de mineração de areia atingiu o rio Paraíba do Sul. Uma operação de reparo foi feita pela mineradora responsável – Rolando Comércio de Areia – com supervisão de técnicos da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Temporariamente o abastecimento foi prejudicado em São José dos Campos, por causa da turbidez da água que atingiu nível crítico.
Um dado irrefutável para a constatação de que é necessário rigor das empresas e das autoridades neste segmento é o Relatório de Segurança das Barragens, da Agência Nacional de Águas (ANA), que levanta informações de unidades de mineração, geração de energia e abastecimento humano. Neste contexto, hoje estão em operação 14.966 barragens e somente 432 passaram por algum tipo de vistoria em 2014. Quantas têm plano de emergência (sem inferir obviamente sua eficácia), que é uma exigência legal? Apenas 162.
Em Minas Gerais, um inventário realizado pela Fundação Ambiental do Meio Ambiente atesta que há 42 barragens com estabilidade não garantida por auditores. Os empreendimentos ficam localizados nas bacias dos rios São Francisco, Piracicaba, Jaguari, Grande e das Velhas. Outro temor se refere à segurança de barragens já desativadas.
Este é um dos ângulos dos diversos comprometimentos que envolvem a manutenção desses complexos. A pergunta que não quer calar: como podem estar funcionando normalmente, sem cumprir estes requisitos? Qual é o papel do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM)? E do órgão estadual licenciador? Do Ministério de Minas e Energia? Os Ministérios Públicos Federal e Estaduais estão apurando os casos e analisando quem são os envolvidos na causa do acidente.
Como pano de fundo, tramita em regime de prioridade no Congresso Nacional o projeto de um novo Código da Mineração (37/2011) polêmico, mais permissivo ao setor. Mas algumas questões continuam sendo claras no novo texto: a concessionária tem de se responsabilizar pela segurança das pessoas e dos equipamentos e para a proteção do meio ambiente, como também responsabilizar-se civilmente e indenizar todos e quaisquer danos decorrentes das atividades das lavras contratadas. Entretanto, não entra em detalhes sobre algo fundalmental, que é o princípio da precaução e de extinção de concessão por atos danosos e ou negligentes.
Acidente em Mariana teve projeção mundial
O acidente da barragem de Mariana teve repercussão mundial, sendo objeto de análise da Organização das Nações Unidas (ONU), que iniciou, em dezembro passado, investigação com seu grupo de trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos sobre o comportamento de empresas de mineração e do governo no desastre.
Não é possível ter memória curta e passar uma borracha nesta tragédia que resultou em dezessete mortos, dois desaparecidos, 35 municípios mineiros afetados diretamente pela lama com diferentes graus de toxidade, que se propagou até o mar do Espírito Santo, causando danos ambientais e socioeconômicos que ainda estão sendo apurados. Como é possível desprezar que 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério e lama se transformaram em uma arma praticamente incontrolável por onde passou em mais de 700 km de extensão?
O abastecimento de água e o ecossistema desta área atingida sofreram impactos que ainda estão sendo dimensionados e toda a bacia hidrográfica foi comprometida por este acidente, considerado o pior do gênero neste setor mundialmente, depois do que ocorreu em 2014, na mina canadense, de Mount Poulley, na Colúmbia Britânica, segundo o Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (Ivig).
O que dizer do povoado de Bento Rodrigues que era habitado principalmente por agricultores familiares, que de um dia para o outro, viram tudo que construíram, durante uma vida, destruído? Dos pescadores e outros ribeirinhos que tiveram sua fonte de sustento suspensa? E povos indígenas que tiveram seu modo de vida afetado?
Segundo o Ministério Público Estadual mineiro, estudo de 2013, encomendado pelo órgão para o Instituto Prístino, já havia alertado para a possibilidade do rompimento das barragens do Fundão e de Santarém.
Após o acidente, um levantamento oficial, com contribuição de mais de 80 organizações, está sendo encaminhado ao Ministério Público, Assembleia Legislativa Mineira e prefeituras. O documento divulgado à imprensa registra o número de 321.626 pessoas afetadas somente ao longo do Rio Doce. As principais recomendações da análise são a urgência da ação de restauro e redução de danos por parte das empresas operadoras e controladoras da mineradora. Também sugere a criação de uma fundação privada que possa gerir um fundo de R$ 2 bilhões por ano em uma ação de R$ 20 bilhões ao todo, que envolveria todos os municípios afetados até o Espírito Santo.
Pesquisadores de um grupo independente e outros oficialmente fizeram levantamento da qualidade das águas ao longo do rio Doce e no mar. Entre os resultados, foram detectadas quantidades de alguns elementos químicos acima do nível tolerável ao longo dos últimos meses, como chumbo, alumínio, ferro, bário, cobre, boro e mercúrio. O rio Doce chegou a ser taxado como morto por alguns especialistas.
A possibilidade de recuperação em cinco meses é cogitada, de acordo com análise de Paulo Rosman, professor de Engenharia Costeira da COPPE/UFRJ e autor de um estudo encomendado pelo Ministério do Meio Ambiente sobre o caso. Ele argumenta que as chuvas previstas até abril podem carregar os sedimentos. O especialista alerta, entretanto, que não deve haver povoados nas proximidades dessas barragens, o que seria uma imprudência.
Outros especialistas de diferentes organizações falam em décadas. O desequilíbrio ecossistêmico foi um dos resultados do acidente, que é difícil dimensionar o alcance, por enquanto. Algo irremediável foi a morte de milhares de peixes e de outros organismos com a avalanche de lama. Faltam respostas de como será reposto o estoque pesqueiro. A implicação à sobrevivência de algumas espécies ainda está sendo analisada.
O monitoramento das águas do rio Doce começou a ser feito regularmente pela ANA e pelo Serviço Geológico do Brasil, a partir de 6 de novembro do ano passado. O Ministério do Meio Ambiente criou por portaria, somente em 7 de janeiro, um grupo para coordenar a “posição ambiental na esfera federal” sobre o caso. Essas ações têm de ser divulgadas à sociedade, para que também possa acompanhar.
Na página oficial da Samarco, os informes são breves, como este do dia 27 de janeiro:
Barragens permanecem estáveis
“Ocorreu na tarde de hoje, dia 27 de janeiro, uma movimentação de parte da massa residual da Barragem de Fundão devido as chuvas das últimas semanas.
De forma preventiva e seguindo seu Plano de Emergência, os empregados que atuam próximo à área afetada foram orientados a deixar o local. Não houve a necessidade de acionamento de sirene por parte da empresa. As defesas civis de Mariana e Barra Longa foram devidamente informadas.
O volume deslocado permanece entre a barragem de Fundão e Santarém, dentro das áreas da Samarco. A empresa reafirma, que as estruturas das barragens de Germano e Santarém permanecem estáveis, com base no contínuo monitoramento.” (sem entrar em maiores detalhes).
Fazendo uma retrospectiva, a empresa preparou um plano de emergência após o acidente, conforme determinação legal, e chegou a negar que foi negligente. Vale lembrar que à época do acidente, confirmou que não tinha um sistema de sirenes para alertar moradores em situações como aquela e que avisou algumas pessoas por telefone, apesar de ter um plano de emergência no papel. A Vale e a sócia australiana foram acionadas pela Justiça, mas a Vale alega que não é a responsável legal, mas que estaria criando um fundo para esse caso. Ainda muito a esclarecer.
Qual a lição tirada de tudo isso? Que a sociedade precisa acompanhar o processo, que não pode acabar em mais um acúmulo de papel da burocracia. Ações práticas têm de ser tomadas por estas empresas, para a redução de danos, ressarcimento às vítimas, e no contexto macro, os órgãos governamentais têm o dever ético de cumprirem seu papel para exigir a regularização dos sistemas de precaução de todas as mineradoras que não estão cumprindo as exigências legais. E claro, a justiça devidamente punir os culpados. Não podemos acreditar mais em sistemas de faz-de-conta e que caiam num esquecimento perverso de um país “sem memória”.
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As lamas da mineração: a caixa de pandora foi aberta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU