04 Fevereiro 2016
"Os problemas que afetam o pontificado de Francisco vêm muito mais do lado de dentro da Igreja do que do lado de fora. O que o Dia da Família mostrou é que a Igreja dos “valores não negociáveis”, aquela que continua a considerar a homossexualidade uma “desordem intrínseca”, está longe de acabar", escreve Massimo Faggioli, historiador italiano, em artigo publicado por Global Pulse, 01-02-2016. A tradução de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Não são os bispos, pelo menos não em sua maioria.
Algo aconteceu em Roma no último sábado (30 de jan.) e que oferece um retrato de uma situação particular que tem se desenvolvido na vida da Igreja atualmente.
No local do antigo estádio romano, o Circus Maximus, alguns poucos milhares de católicos italianos se reuniram para marcar a sua oposição a um projeto de lei que vem sendo debatido no parlamento, o qual legalizaria as uniões homoafetivas e permitiria que tais casais tenham reconhecido o direito à adoção.
(Os organizadores afirmam que reuniram cerca de dois milhões de participantes no vasto campo próximo às margens do Rio Tibre, porém este número é um exagero e simplesmente não deve ser levado em conta.)
A proposta de lei para as uniões civis homoafetivas é iniciativa de uma senadora, Monica Cirinnà, membro do Partido Democrata, um partido de centro-esquerda. Essa proposta conta com o apoio do primeiro-ministro Matteo Renzi, católico em seus quarenta e poucos anos e ex-prefeito de Florença.
O evento foi chamado de “o Dia da Família”, parecendo-se com uma iniciativa ocorrida em 2007. O seu propósito conteve duas partes: expressar oposição ao projeto de lei em discussão no parlamento e ser um contraponto às manifestações a favor do casamento gay que aconteceram no sábado passado em muitas cidades em toda a Itália.
Mas, ainda mais importante, o Dia da Família foi, na verdade, uma resposta a algo que está acontecendo na Igreja hoje, tanto na Itália como ao redor do globo.
Por um lado, a iniciativa salientou algumas das muitas ambiguidades presentes em uma Igreja que está tentando fazer a transição de uma era definida pela defesa ardorosa de “valores não negociáveis” para uma nova era com o Papa Francisco.
A Conferência Episcopal Italiana deu, de forma não oficial, o seu apoio à manifestação do Dia da Família, mas não foram todos os bispos que subscreveram tal apoio. Nenhum bispo ou membro do clero se dirigiu à multidão diretamente no dia do evento. E o influente fundador do Caminho Neocatecumenal, Kiko Argello, declarou em carta aberta que fora convidado a se manter distante do palco principal de sábado.
Muitos movimentos católicos leigos (Comunhão e Libertação, Focolares, escoteiros católicos entre outros) não participaram, porém seus membros se fizeram presentes individualmente.
O comício se dizia não ser “contra” (a comunidade gay e lésbica), mas algumas organizações políticas de extrema direita estiveram no evento. Dessa forma, o tom e o conteúdo das mensagens proferidas no palco central e estampadas nas bandeiras entre a multidão revelaram um medo profundo pelas mudanças sociais causadas pela admissão honesta de que gays e lésbicas existem e que merecem terem os seus direitos reconhecidos, não só como indivíduos mas também como casais.
Por outro lado, alguns fatos ficaram bem claros. O líder do Dia da Família e os que estiveram reunidos no Circus Maximus praticamente não mencionaram o Papa Francisco. E o papa, por sua vez, se manteve acima da disputa, apesar de ter tido muitas oportunidades – antes e durante o evento – para falar da iniciativa.
Por exemplo, Francisco não mencionou o Dia da Família em seu Angelus, na quarta-feira. Porém fez questão de repetir (duas vezes) que “nenhuma condição humana pode ser usada como motivo de exclusão” de Deus.
Mas os fiéis católicos que se manifestaram publicamente contra a proposta de casamento entre pessoas do mesmo sexo que está sendo debatido no parlamento italiano apresentaram uma oposição trivial. Eles não apenas estão se opondo aos direitos de adoção dos casais gays ou a mães de aluguel, mas também estão contra a ideia de legalização das uniões civis gays homoafetivas.
Nesse sentido, os católicos italianos que se reuniram para o Dia da Família estiveram próximos de lançar uma “guerra cultural” ao estilo americano, onde não há mediação possível entre posicionamentos morais diferentes.
Verdade seja dita, os guerreiros culturais católicos da Itália enfrentam uma partida digna de ser assistida contra os seus opositores secularistas. Estes não irão dar o braço a torcer e estão dispostos a irem até o fim com o projeto de lei, incluindo mães de aluguel em seus dispositivos. Eles acreditam que transformar a questão em lei dar-lhes-á uma oportunidade de ouro no sentido de se livrarem de toda influência possível que a Igreja pode continuar a ter na sociedade italiana.
Todavia, os problemas que afetam o pontificado de Francisco vêm muito mais do lado de dentro da Igreja do que do lado de fora. O que o Dia da Família mostrou é que a Igreja dos “valores não negociáveis”, aquela que continua a considerar a homossexualidade uma “desordem intrínseca”, está longe de acabar.
Eis um estilo de catolicismo muito diferente daquele do atual papa. A Igreja da cultura de guerra se mantém viva e ainda é capaz de mobilizar-se e ser ouvida. Mas ela é uma Igreja que não tem a mesma compreensão que Francisco.
O que se viu no palco montado no Circus Maximus foi uma espécie de volta ao começo dos anos 2000, quando a Igreja italiana era dominada pelo Cardeal Camillo Ruini, a mente política do episcopado italiano na era João Paulo II.
O Vaticano fica a uma pequena distância daquele vasto campo, mas os homens de Francisco e a sua mensagem não foram vistos no Dia da Família.
É provavelmente correto dizer que o evento era, em parte, uma resposta ao chamado do papa, feito em maio passado, para que os leigos católicos tomassem as questões sociais em suas próprias mãos em vez de ficarem esperando serem dirigidos por bispos “pilotos”.
Mas estes fiéis se puseram a assumir as questões sociais de uma maneira nada próxima ao estilo do Papa Francisco.
Não se trata de uma estratégia maquiavélica do papa, no sentido de que ele deixa os leigos fazerem o que não se atreve a fazer a fim de não se tornar impopular. Não. Existe uma diferença profunda entre a Igreja de que Francisco fala e a Igreja que o Dia da Família representou com as suas faixas e gritos de guerra.
A Igreja do “pueblo” sobre a qual fala Francisco é marcada por condições pessoais profundamente imperfeitas e sociais. É composta de paróquias onde gays, lésbicas e suas famílias são bem-vindos.
A Igreja representada pelo Dia da Família pareceu estar cega ao fato de que as famílias consistem de natureza bem como de cultura. Este evento expressou um extremismo ideológico fora de contato não só com o mundo secular, mas também com a vida diária de católicos no mundo.
A dúvida, portanto, é esta: “Quem são os católicos de Francisco?”
Não são os bispos, pelo menos não em sua maioria. Não são os membros dos movimentos leigos organizados, cuja cultura, linguagem e líderes ainda constituem uma manifestação da Igreja de João Paulo II e Bento XVI. E não são os políticos católicos, dos quais Francisco está mantendo uma clara distância.
Assim, a pergunta permanece: Há um “pueblo” para Francisco?
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Quem são os católicos do Papa Francisco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU