Por: Jonas | 03 Fevereiro 2016
“Se Milagro (foto) foi ou não prolixa na administração dos fundos e isso se quer investigar, que assim seja, mas legal e constitucionalmente, em um processo com juízes imparciais e não com parentes e correligionários e, enquanto isso, que seja libertada, como se faz com todos os processados por esse crime”, escreve Raúl Eugenio Zaffaroni, ex-juiz da Suprema Corte Argentina e atual integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a respeito da prisão da ativista argentina Milagro Sala. O artigo é publicado por Página/12, 02-02-2016. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/Z8UQfv |
Eis o artigo.
Às vezes, é necessário recapitular e explicar. No caso da prisão de Milagro Sala, que vai ganhando a dimensão de um escândalo institucional sem precedentes nos trinta e dois anos de vida constitucional continuada, que por sorte temos, é preciso apresentá-la, ainda que a explicação demande se meter em coisas com aspectos técnicos, mas que o público deve conhecer.
1) A prisão é decidida por uma Justiça cuja cabeça – o Superior Tribunal da Província – foi ampliada em uma sessão noturna da Legislatura. Dois dos deputados da situação que votaram pela ampliação foram, de imediato, nomeados juízes do Superior Tribunal “autoampliado”. Nem Menem fez estas coisas em seus melhores tempos, pois não se pode negar que em geral foi muito mais prolixo.
2) É presa por ordem de um juiz que, de imediato, pede licença. É acusado pelo crime do art. 194 do código penal, ou seja, de “impedir, atrapalhar ou paralisar o normal funcionamento dos transportes por terra”.
Este artigo foi introduzido em 1968 por uma lei “de fato” de [Juan Carlos] Onganía, sem indicação de fonte, nem referência ao direito comparado, e substitui o antigo texto original do código que penalizava a interdição dos trilhos da estrada de ferro.
O mesmo artigo requer que não produza “perigo comum”, ou seja, risco de catástrofe, porque em tal caso configuraria um crime contra a segurança pública. Porém, isto não significa que não requeira a produção de algum perigo, dado o antecedente da “interdição dos trilhos”.
Não se trata de penalizar um simples incômodo que pode ser motivo de uma contravenção provincial ou municipal, mas, sim, qualquer perigo que não seja de catástrofe, mas que no caso deve ser da vida ou integridade física de alguém, porque interditar um trilho do trem pode não produzir o risco de uma catástrofe, mas sempre implica certo risco para a vida ou a integridade de alguma pessoa.
Neste caso, não há risco algum para ninguém, porque a única coisa que se perturba é o transporte urbano, que deverá circular por outras vias.
Aplicar literalmente o texto do artigo 194, sem levar em consideração o direito ao protesto público, considerando que toda reunião de pessoas perturba de alguma maneira a circulação de pessoas e veículos, implicaria cancelar o direito constitucional de reunião e de petição coletiva.
Porém, a perturbação do trânsito urbano não é produzida por Milagro Sala, mas por milhares de pessoas. Mesmo que esses milhares de pessoas se reúnam nas calçadas, obrigariam os transeuntes a circular pelas ruas e, por conseguinte, perturbariam a circulação e estariam cometendo um crime.
Isto é assim porque o corpo de cada um de nós suja e incomoda, perturba, e muitos corpos juntos mais ainda, mas nós, humanos, individual ou coletivamente, até hoje e nesta terra, não podemos prescindir de nossos corpos.
Assumir literalmente este artigo implica, pois, proibir a reunião de pessoas.
3) Como isto é bastante frágil, é acusado pelo crime de “sedição” do artigo 230, que se comete quando “uma força armada” ou “reunião de pessoas” faz uma petição em nome do Povo.
Sempre se entendeu que quando se trata de uma reunião de pessoas, deve haver ao menos uma ameaça de violência, ou seja, um perigo análogo ao de uma “força armada”, porque, caso contrário, todos os políticos que em seus comícios de campanha invariavelmente falam em nome do povo deveriam ser processados.
Pretende-se agravá-la porque há crianças, aplicando o artigo 41 do código, que agrava a pena de quem se vale de um menor para cometer um crime, pensado em geral para o roubo. Deste modo, convertem um sinal de “não violência” em um agravante.
4) Como se considera que tudo isto é crime e Milagro não para de apoiar a manifestação pública, é considerada inserida na “instigação pública para cometer crimes” (art. 209 do código), ou seja, em definitivo, seria uma instigação pública para cometer “não crimes”.
5) Quando tudo isto cai por terra e ela é libertada, é imediatamente acusada de “administração fraudulenta” (art. 173 inc. 7º ) e deste modo continua presa, mas como esse crime tem uma pena máxima de seis anos, é solta (acredito que quase ninguém conta com prisão preventiva por este crime no país).
Para evitar a libertação pelo novo “crime”, é acusada por “associação ilícita” (artigo 210 do código).
A associação ilícita é consumada caso três ou mais pessoas, ainda que seja em uma noite de bebedeira, entrem em acordo para cometer “crimes”, sem que depois façam algo. Obviamente, isto, interpretado literalmente, é inconstitucional, ao menos em crimes que não sejam de genocídio, terrorismo ou algo parecido.
É só um acordo e está muito longe do primeiro ato de tentativa de qualquer crime. Além disso, com a interpretação literal, a pena é irracional: o simples acordo para cometer furtos em lojas (pena de um mês a dois anos de crime consumado) tem uma pensa de até dez anos, mesmo quando não seja feita nenhuma tentativa de furto.
Todos nós sabemos que o art. 210 (associação ilícita) nada mais é que um instrumento que serve para que na instrução se negue a libertação, mesmo que depois não se chegue a nenhuma condenação.
Em nosso código originário de 1921 havia uma pena muito leve, mas em 1974, em razão da violência política, ela foi aumentada e isso ficou e até piorou. Além disso, como se tudo isto fosse pouco, não é possível negar que a genealogia da associação ilícita remonta aos tempos em que a greve era crime, como instrumento de repressão contra os sindicatos.
Com isto, por certo, não dizemos nada de novo. Só recapitulamos a lógica distorcida, antijurídica e republicanamente inconstitucional com a qual se maneja este verdadeiro sequestro legalizado.
Se Milagro foi ou não prolixa na administração dos fundos e isso se quer investigar, que assim seja, mas legal e constitucionalmente, em um processo com juízes imparciais e não com parentes e correligionários e, enquanto isso, que seja libertada, como se faz com todos os processados por esse crime.
Este festival de vexatórias aberrações penais, de invenções pseudo-jurídicas sem muita imaginação - por certo - é escandaloso.
Diante de tudo isso, não é possível omitir algo que se destaca: Milagro é deputada regional e, por conseguinte, possui foros que não impedem o processo, mas, sim, a prisão. Não é certo que esses foros são “inconstitucionais”, porque não podem ser criados por lei, uma vez que neste caso não são criados por lei, mas, ao contrário, por um tratado internacional que compromete o Estado Argentino.
Como ainda em meio aos transes mais dramáticos não podemos cair na tristeza, nem perder o humor, permito me reprovar como professor de direito, reprovei muito poucos alunos. Também, já que somos e de passagem, permito-me sugerir aos juízes “criativos” que explorem outras possibilidades: talvez possa se pensar que toda reunião de pessoas é contaminante e apelar a alguma figura de proteção do meio ambiente. Porém, na dúvida, advirto-lhes que não existe nenhuma figura de “aborto qualificado por escalonamento”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O caso argentino da ativista Milagro Sala - Instituto Humanitas Unisinos - IHU