Por: Jonas | 01 Fevereiro 2016
“O tipo de militante que a esquerda do século XXI precisa deve ser modelado pela ‘vontade de sacrifício’ (Benjamin). É evidente que a frase soa fatal em períodos como o atual, mas nada podemos conseguir sem nos desfazer desta tremenda fantasia de que é possível mudar o mundo votando a cada cinco anos e consumindo o restante do tempo”, escreve o escritor e pensador-ativista uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por La Jornada, 22-01-2016. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Nos anos 1960 e 1970, quem se incorporava na militância muitas vezes escutava uma frase: “Ser como o Che”. Com ela se sintetizava uma ética, uma conduta, um modo de assumir a ação coletiva inspirada no personagem que – com a entrega de sua vida – havia se tornado bússola de uma geração.
“Ser como o Che” era um lema que não pretendia que os militantes seguissem ponto a ponto o exemplo de quem havia se tornado uma referência absoluta. Era outra coisa. Não um modelo a seguir, mas, ao contrário, uma inspiração ética que implicava uma série de renúncias, essas, sim, à imagem e semelhança da vida do Che.
Renunciar as comodidades, aos benefícios materiais, inclusive ao poder conquistado na revolução, estar disposto a arriscar a vida, são valores centrais nessa herança que passamos a chamar de guevarismo. Durante bom tempo, estes foram os eixos em torno dos quais se organizou boa parte da militância de esquerda, pelo menos na América Latina.
Essa esquerda foi derrotada em um breve período que podemos situar entre os golpes de Estado dos anos 1970 e a queda do socialismo real, uma década depois. Não se sai ileso das grandes derrotas. Assim como a queda da comuna de Paris foi um marco, segundo Georges Haupt, que levou as esquerdas da época a introduzir novos temas em suas agendas (a questão do partido passou a ocupar um lugar central), as derrotas dos movimentos revolucionários latino-americanos parecem ter produzido uma rachadura nas esquerdas de inícios do século XXI.
Ainda é muito cedo para realizar uma avaliação completa dessa guinada, já que estamos vivendo o momento, sem a suficiente distância crítica e, sobretudo, autocrítica. No entanto, podemos adiantar algumas hipóteses que enquadram aquelas derrotas na conjuntura atual que vivemos.
A primeira é que não se trata de voltar na história para repetir os velhos erros, que ocorreram, e foram muitos. O vanguardismo foi o mais evidente, acompanhado de um sério voluntarismo que impediu compreender que a realidade que pretendíamos transformar era bem diferente do que pensávamos, o que nos levou a subestimar o poder das classes dominantes e, sobretudo, a acreditar que se vivia uma situação revolucionária.
Porém, o vanguardismo não cede facilmente. Está solidamente arraigado na cultura das esquerdas e ainda que tenha sido derrotado em sua versão guerrilheira, parece ter mudado e continua vivo, tanto nos chamados movimentos sociais, como nos partidos que pretendem saber o que é que a população deseja, sem necessidade de escutá-la. Grande parte dos governos e dirigentes progressistas é um bom exemplo da persistência de um vanguardismo sem vanguarda proclamada.
A segunda (hipótese) tem relação com o método: a luta armada. Que a nossa geração dos anos 1960 e 1970 tenha cometido grandes erros no uso e abuso da violência, não quer dizer que tenhamos que jogar tudo fora. Recordemos que ao menos no Uruguai se pensava que a ação gera consciência, conferindo um poder quase mágico à capacidade da vanguarda armada para gerar ação nas massas só com a sua atividade, como se as pessoas pudessem atuar por reflexos mecânicos, sem a necessidade de se organizar e se formar.
As organizações armadas cometeram, além disso, atrocidades indefensáveis, utilizando a violência não só contra os inimigos, mas muitas vezes contra o próprio povo e também contra aqueles companheiros que apresentavam diferenças políticas com a sua organização. Os assassinatos de Roque Dalton e da comandante Ana María, em El Salvador, são dois dos fatos mais graves dentro do campo rebelde.
No entanto, isso não quer dizer que não seja necessário se defender. Não devemos passar ao extremo oposto de confiar nas forças armadas do sistema (como destaca o vice-presidente da Bolívia), ou retirar das forças repressivas o seu caráter de classe. Os exemplos do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), do povo mapuche do Chile, da Guarda Indígena nasa, na Colômbia, e dos indígenas amazônicos de Bagua, no Peru, mostram que é necessário e possível organizar a defesa comunitária coletiva.
A terceira questão é a mais política e é a ética. No legado de Che e na prática daquela geração, o poder ocupava um lugar central, algo que não podemos, nem devemos negar. Porém, a conquista do poder era para benefício do povo, jamais para o benefício próprio, nem sequer do grupo ou partido que tomava o poder estatal.
Sobre este tema há uma discussão aberta, em vista do balanço negativo do exercício do poder pelos partidos soviético e chinês, entre outros. Porém, para além dos erros e horrores cometidos pelos poderes revolucionários no século XX, inclusive para além da questão de se é conveniente ou não tomar o poder do Estado para mudar o mundo, é necessário recordar que o poder era considerado um meio para transformar a sociedade, nunca um fim em si mesmo.
Sobre este assunto há muito pano pra manga, em vista da brutal corrupção introduzida em alguns governos e partidos progressistas (em particular no Brasil e Venezuela), questões que poucos já se atrevem a negar.
A esquerda que necessitamos para o século XXI não pode deixar de ter presente a história das lutas revolucionárias do passado. É necessário incorporar aquele lema “ser como o Che”, mas sem cair em vanguardismos. Uma boa atualização desse espírito pode ser: “para todos tudo, nada para nós”. O mesmo pode se dizer do “mandar obedecendo”, que parece um importante antídoto contra o vanguardismo.
Há algo fundamental que não seria bom deixar escapar. O tipo de militante que a esquerda do século XXI precisa deve ser modelado pela “vontade de sacrifício” (Benjamin). É evidente que a frase soa fatal em períodos como o atual, mas nada podemos conseguir sem nos desfazer desta tremenda fantasia de que é possível mudar o mundo votando a cada cinco anos e consumindo o restante do tempo.
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Uma esquerda para o século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU