01 Junho 2015
"Assistimos hoje, “bestializados”, a uma avassaladora ofensiva regressista que, em todos os planos, se dedica a subverter os conteúdos civilizatórios e até mesmo as promessas de justiça social e isonomia da Constituição-Cidadã. Não nos deixamos paralisar, antes, pela força das armas; não nos deixaremos paralisar agora pela avalanche de cambalachos, coações, negociatas, manipulações e tramoias das ratazanas que infestam a Praça dos Três Poderes, com o “auxílio luxuoso” das raposas que os financiam eleitoralmente e acobertam midiaticamente", escreve Adriano Pilatti, professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio, em artigo publicado no sítio Empório do Direito, 29-05-2015.
Eis o artigo.
“Con$tituição da República Corporativa do Brasil
Art. 1º. A República Corporativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos bancos, do agronegócio, das grandes empreiteiras, das franquias neopentecostais e da imprensa comercial, constitui-se em Estado Plutocrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a hipocrisia;
II – a oligarquia;
III – a venalidade da pessoa humana;
IV – os valores antissociais da privatização do público e da exploração do trabalho;
V – o mercantilismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do Capital, que o exerce por meio de representantes comprados ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
A prosperarem, de um lado, o golpe contra a Constituição consumado ontem pela Presidência e pela maioria da Câmara dos Deputados, e, de outro, as “negociações” que, segundo alguns jornalistas, estariam em curso entre Câmara e STF para eternizar a privatização da representação política, é melhor dar logo ao art. 1º da então ex-Cidadã a redação acima. A inacreditável votação realizada na calada da noite contraria várias regras expressas da Constituição, além de subverte-la e anulá-la em vários de seus princípios fundamentais.
Ao submeter a votos a emenda-fantasma da constitucionalização do financiamento empresarial, após a rejeição de outra com conteúdo praticamente idêntico na noite anterior, o presidente violou o § 5º do art. 60, segundo o qual “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Por sessão legislativa, entende-se o período anual de funcionamento do Congresso que, nos termos do art. 57, inicia-se em 2 de fevereiro e se encerra em 22 de dezembro, com interrupção entre 17 e 31 julho. Além disso, segundo denúncias revestidas de credibilidade, a proposta de emenda não teria reunido o número mínimo de assinaturas correspondentes a um terço dos deputados, o que viola também o inciso I do art. 60.
Houve, assim, duplo e frontal descumprimento do “devido processo legislativo” estabelecido no art. 60, resultante de ilegalidade e abuso de poder perpetrados pela Presidência e pela maioria da Casa. E isto legitima parlamentares a impetrarem, como parece que já se fez, mandado de segurança perante o STF contra o ato da presidência e a votação decorrente, para assegurarem seu direito líquido e certo de somente deliberarem segundo o devido processo legal, no caso o devido processo legislativo constitucional (CF, art. 5º, inciso LXIX, combinado com os incisos XXXV e LIV do mesmo artigo, com o próprio art. 60 e a alínea “d” do inciso I do art. 102).
Entre o edifício do Congresso Nacional e o do Supremo Tribunal Federal joga-se hoje o destino da Constituição de 1988. Não se trata de questão meramente formal, mas de subversão, pela raiz, a partir de seus fundamentos, do regime político estabelecido pela ordem constitucional vigente. Trata-se de verdadeira usurpação da soberania popular pelo poder econômico. Trata-se de conspiração para entregar todo o poder à capacidade de corrupção dos senhores do dinheiro.
Onde estão, neste momento, a falsa indignação e o moralismo de bordel da impren$a e dos bonecos de ventríloquo que lhe servem de colunistas? Onde estão os desequilibrados e apopléticos “formadores de opinião”, que não denunciam a instalação de uma mega-incubadora de corruptores e corruptos no coração da Constituição que sempre desprezaram? O silêncio eloquente desses funcionários midiáticos do Capital tem a força de uma confissão. Todo o poder aos patrões, esse é o desejo mais mórbido que os excita.
Pertenço a uma geração que exercitou incessantemente o direito de resistência até conseguirmos o restabelecimento das liberdades democráticas e das eleições diretas, a convocação da Constituinte, a definição de um texto progressista que servisse às lutas por direitos, até conquistarmos a promulgação da Constituição Cidadã. De lá para cá, não cessamos de lutar pela eficácia social, pela afirmação da força normativa do sistema de direitos e de limitações aos poderes políticos, econômicos e ideológicos que ela consagra. Assistimos hoje, “bestializados”, a uma avassaladora ofensiva regressista que, em todos os planos, se dedica a subverter os conteúdos civilizatórios e até mesmo as promessas de justiça social e isonomia da Constituição-Cidadã. Não nos deixamos paralisar, antes, pela força das armas; não nos deixaremos paralisar agora pela avalanche de cambalachos, coações, negociatas, manipulações e tramoias das ratazanas que infestam a Praça dos Três Poderes, com o “auxílio luxuoso” das raposas que os financiam eleitoralmente e acobertam midiaticamente.
O grau de desfaçatez que, em todos os níveis, os gigolôs da representação hoje exercitam contra a integridade das instituições que ocupam, por meio de violentas invasões (e evasões) financeiras, pode vir a nos conduzir, mais cedo do que se pensa, a um ponto de ruptura, a um “que se vayan todos” – aí incluídos todos os serviçais engravatados, togados e fardados do Capital que só faz predar terras, águas, cidades e gentes em nosso desafortunado País.
A gravidade do que está em curso reaviva a pertinência das palavras que a Declaração de Thomas Jefferson incorporou ao patrimônio político-cultural de nossa contraditória espécie: “Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.
Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo fim, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos guardiões para sua futura segurança.”
A Câmara não é Westeros, mas já tem o seu “rei louco”, e “o inverno está chegando”. Mas ele não agiu sozinho ontem: a acompanha-lo na trilha da infâmia, somaram-se 330 representantes, ou candidatos a representantes, do Capital (10% a mais, piada pronta, do que os 300 antes denunciados e depois em parte aliciados por Lula, e hoje praticamente perdidos por Dilma). Há um verdadeiro sindicato do crime eleitoral em fase de reorganização para nos reconduzir a uma repaginada “República Velha” do cabresto financeiro-midiático e dos currais empresariais. Sin City também é aqui. A alternativa é resistir, seguir lutando. Não perdemos a receita.
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Uma Outra Constituição. Artigo de Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU