09 Fevereiro 2015
“Os Estados que abraçam a tecnologia transgênica perdem soberania alimentar, pois sua capacidade de controlar e regular a produção doméstica de alimentos é diminuída. Abandonam seu papel reitor no desenvolvimento agrícola e passam a converter-se em simples consumidores de mercadorias do Norte. Em certo sentido, contribuem para a consolidação da divisão internacional do trabalho, o padrão primário exportador e as condições comerciais desfavoráveis que historicamente marcaram as relações entre o Sul e o Norte”, escreve Enrique Castañón Ballivián, em artigo publicado no sítio Rebelión, 07-02-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte: http://bit.ly/1zmv0Ix
Enrique Castañón Ballivián é pesquisador boliviano. Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Escola de Ciências Sociais e Política Pública do King’s College, Universidade de Londres.
Eis o artigo.
A adoção dos transgênicos está se convertendo paulatinamente em um padrão comum das políticas agropecuárias na América do Sul. Já não se trata apenas de países com tradição em exportação de commodities agrícolas, como o Brasil e a Argentina. A prática permeou inclusive países com governos progressistas, como é o caso da Bolívia e do Equador. Embora em ambos os casos exista legislação correspondente para restringir o uso desta biotecnologia, a pressão política e econômica exercida pelos setores empresariais agropecuários está começando a dobrar os governos. Mais, diante dos preços flutuantes das matérias-primas, estes governos começam a ver no agronegócio uma opção alternativa para a geração de divisas. O paradoxo, no entanto, é que, diante da impossibilidade de reverter a força de seus discursos, pretende-se incluir os transgênicos na agenda da soberania alimentar.
O argumento a favor dos transgênicos é sempre o mesmo: um aumento da produtividade. No dizer de um representante do empresariado boliviano: “Na Argentina, obtêm 2.000 quilos de milho transgênico com uma terra mais fraca do que a nossa e nós tiramos apenas 800 quilos”. Apelar a visões produtivistas ortodoxas é sempre um argumento poderoso. Afinal, quem pode ser contra o aumento dos rendimentos agrícolas? Que isto se consiga simplesmente com o uso de transgênicos é uma pergunta em aberto, mais ainda se se considera que, por exemplo, 10 anos após a introdução da soja transgênica na Bolívia este não foi exatamente o caso, como demonstram as próprias estatísticas da associação empresarial [i].
É do conhecimento de todos que o uso de transgênicos foi fortemente questionado em nível global com base na evidência científica sobre os seus impactos nocivos sobre a saúde e o meio ambiente: câncer e perda de biodiversidade são, respectivamente, os elementos mais preocupantes. Não obstante, não pretendo tomar esta veia de análise já extensamente abordada. Proponho, ao contrário, considerar a introdução de transgênicos como uma perda da soberania para as multinacionais e pelo mesmo argumento que postulá-lo a partir da soberania alimentar é uma proposta inédita, para dizer o mínimo. Seguindo o marxista inglês, Henry Bernstein, argumento que o problema central com os transgênicos não reside na tecnologia em si, mas no controle oligopólico que os capitais transnacionais exercem sobre estes com a finalidade de subsumir a agricultura nos seus processos de acumulação de capital.
Deve-se compreender a problemática dos transgênicos em seu contexto mais amplo, razão pela qual é pertinente pincelar alguns elementos históricos que marcaram a economia política alimentar global [ii]. A partir dos anos 1940, a produtividade laboral e agrícola nas fazendas capitalistas do Norte aumenta significativamente em consequência dos avanços na indústria agroquímica; fato que, paralelamente, amplia a brecha produtiva em relação aos pequenos produtores camponeses do Sul. O rápido aumento nos níveis produtivos logo deriva em um problema de superprodução. Diante da falta de demanda efetiva, a resposta dos Estados Unidos foi a criação de um novo regime alimentar global que permitisse acomodar seus excedentes agrícolas em forma de “ajuda alimentar”. Esta medida, finalmente, se constituirá, além disso, em um elemento central da sua política externa, principalmente durante tempos da guerra fria.
Para Harriet Friedmann, a subvenção da produção agrícola e a gestão seletiva de sua comercialização em benefício de alguns países e corporações do Norte, são elementos que permitem falar em um regime alimentar de corte “mercantil-industrial”. A estabilidade deste regime, no entanto, duraria apenas algumas décadas, pois começaria a entrar em colapso paulatinamente em consequência de duas principais dinâmicas. Por um lado, o levantamento do embargo que os Estados Unidos tinham com a União Soviética abre passagem para que grandes quantidades de cereais norte-americanos sejam destinadas a este novo mercado, o que, por sua vez, produz repentina escassez de grãos no mercado global com o consequente aumento dos preços. Por outro lado, a geografia da produção industrial de alimentos vê-se reconfigurada com a incursão da Argentina e do Brasil – principalmente através do cultivo da soja –, o que dinamiza a competição no mercado mundial e, por conseguinte, erode significativamente a lógica mercantilista.
Já para inícios dos anos 1970, as pressões sobre o regime mercantilista e a emergência da globalização neoliberal darão passagem à formação de um novo regime alimentar em sintonia com as mudanças na economia política global. Neste novo regime alimentar, atualmente vigente, são as corporações transnacionais que adquiriram o papel protagônico, dado o aumento do seu poder e controle sobre as cadeias produtivas agrícolas. Em particular, o capital transnacional concentrou-se na produção de inputs agrícolas (sementes transgênicas, agroquímicos, maquinários, etc.) e na distribuição e comercialização dos produtos ou outputs, sendo o exemplo mais claro as cadeias de supermercados. Consequentemente, é possível afirmar que são estas empresas transnacionais que, na prática, estão organizando as condições de produção e consumo alimentar em nível global, e o fazem, claro, em função de seus interesses corporativos.
Não obstante, é no campo da produção em si que o capital encontrou historicamente barreiras para a sua penetração e imposição. Uma das principais barreiras é dada pelas próprias características das sementes, às quais se atribui um “caráter dual”, pois são ao mesmo tempo um meio de produção e, como grão, um produto. Enquanto seu segundo caráter é compatível com a forma mercadoria, o primeiro é antes antagônico. Ou seja, sempre e quando um agricultor possa continuar propagando sua semente após cada ciclo produtivo de maneira indefinida, será preciso pouco incentivo para que o capital se insira na produção comercial de sementes. É precisamente esta capacidade de auto-abastecimento que se pretende destruir através da tecnologia transgênica para assim dar passagem ao processo de subsunção da agricultura no capital [iii].
Este ataque à habilidade dos agricultores de reproduzir autonomamente suas próprias sementes foi realizado em duas frentes principais. Por um lado, o desenvolvimento de Tecnologias Restritivas do Uso Genético – mais conhecidas como Tecnologias Terminator – tornou possível prevenir a germinação de sementes a menos que se apliquem produtos químicos patenteados. Dado que não existe nenhum benefício agronômico, estas tecnologias não são mais que um mecanismo descarado para impedir que os agricultores possam continuar semeando longe do controle transnacional. Por outro lado, o lobby corporativo empurrou com força um maior e mais extenso desenvolvimento da legislação sob o acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual – ou TRIPS por sua sigla em inglês – que foi negociado na Organização Mundial do Comércio. Em anos recentes, foram aumentando as pressões da organização global para os Estados membros para que estabeleçam alguma forma de legislação TRIPS em relação aos cultivos.
Neste sentido, a promoção das sementes transgênicas pode ser entendida como parte do projeto neoliberal enquanto apropriação do “público” para sua transformação em mercadoria de propriedade exclusiva. Ao ser separados de um dos seus principais meios de produção, a semente, os agricultores são despojados de um elemento que historicamente lhes permitia certa independência em relação ao capital, razão pela qual sua subsunção ao processo de acumulação é facilitada. Este despojo exercido sobre o camponês a favor das transnacionais reproduz o caráter de “Robin Hood ao contrário” – roubar dos pobres para dá-los aos ricos – próprio do neoliberalismo [iv]. Não em vão David Harvey vê nos transgênicos, e na indústria da biotecnologia em geral, um dos mais claros exemplos do que denomina de “acumulação por despossessão” [v].
Dado que transferem o controle sobre a produção agrícola para as corporações transnacionais, os transgênicos encontram-se nas antípodas de qualquer noção de soberania alimentar. Ao desativar a capacidade de semeadura dos produtores locais, são as sementes transgênicas que se consolidam como a opção produtiva dominante. Isto faz com que as corporações passem gradualmente a controlar de fato a terra dos Estados. Consequentemente, a terra não pode ser posta em produção se não for com os insumos produzidos pelas próprias empresas transnacionais, com o agravante de que muito frequentemente os preços tanto das sementes como do resto dos produtos tendam constantemente a aumentar. O caso do México e do milho transgênico é ilustrativo neste sentido. Em outras palavras, os Estados que abraçam a tecnologia transgênica perdem soberania alimentar, pois sua capacidade de controlar e regular a produção doméstica de alimentos é diminuída. Abandonam seu papel reitor no desenvolvimento agrícola e passam a converter-se em simples consumidores de mercadorias do Norte. Em certo sentido, contribuem para a consolidação da divisão internacional do trabalho, o padrão primário exportador e as condições comerciais desfavoráveis que historicamente marcaram as relações entre o Sul e o Norte.
Notas:
[i] Os dados da Câmara Agropecuária do Oriente (CAO) mostram que o rendimento da soja desde a introdução da variedade transgênica estancou no nível mais baixo de toda a região, aproximadamente 1,9 ton/ha.
[ii] A leitura histórica das mudanças na economia política alimentar global está baseada em BERNSTEIN, H. (2010). Class Dynamics of Agrarian Change. Canadá: Fernwood Publishing.
[iii] KLOPPENBURG, J. (1988). First the Seed: The Political Economy of Plant Biotecnology, 1492-2000. New York: Cambridge University Press.
[iv] MOORE, J. (2010). The end of the road? Agricultural revolutions in the capitalist world-ecology, 1450-2010. Journal of Agrarian Change, 389-413.
[v] HARVEY, D. (2003). The New Imperialism. Oxford: Oxford University Press.
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Transgênicos para a soberania alimentar, uma proposta inédita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU