14 Janeiro 2015
No dia 12 de fevereiro de 2015 completa dez anos do brutal assassinato da missionária Dorothy Mae Stang, aos 73 anos de idade. Ela foi morta com seis tiros à queima roupa, um deles na cabeça, sem a mínima chance de defesa, na zona rural do município de Anapu, no oeste do Estado do Pará. Dos cinco homens julgados e condenados pela morte, apenas um cumpre prisão em regime fechado, mas por outro crime, outros três respondem a sentença no semiaberto (dormem na cadeia) e um ainda não cumpriu a pena.
A reportagem é de Catarina Barbosa, publicada pelo sítio Amazônia Real, 05-01-2015.
Sepultamento da irmã Dorothy Stang em Anapu (Foto: Alberto César Araújo/2005)
Para Dinailson Benassuly, coordenador do Comitê Dorothy, esse é o momento para rememorar o caso e exigir que Regivaldo Pereira Galvão, acusado de mandante do crime, cumpra a pena de 30 anos em regime fechado.
O fazendeiro, comerciante e agiota Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão” foi acusado pela investigação da Polícia Civil do Pará como principal mandante do assassinato de Dorothy Stang.
Em 2010, ele foi condenado a 30 anos de prisão em regime fechado pelo Tribunal de Justiça do Pará. Ficou preso por apenas 1 ano e 4 meses. Ele ganhou a liberdade por um recurso concedido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2012.
O Comitê Dorothy foi criado por religiosos e ativistas dos direitos humanos e ambientalistas após a morte da missionária e está sediado em Belém. A pressão exercida pelos membros da entidade junto à sociedade civil foi crucial para diminuir a morosidade dos julgamentos de crimes impunes no Pará.
O Comitê ainda não tem formalizada a programação de eventos que marcarão os dez anos da morte da freira, mas Benassuly garante que a data será lembrada com a bandeira da defesa do meio ambiente e, principalmente, da Amazônia.
A missionária e o desenvolvimento sustentável
Dorothy Mae Stang, uma mulher de estatura mediana, corpo franzino e olhos azuis que contrastavam com os cabelos curtos e brancos, era uma freira norte-americana nascida em Dayton, Estado de Ohio, que veio para o Brasil em 1966. Integrante da congregação católica de Notre Dame de Namur, seu objetivo — assim como de tantos outros missionários –, era levar o cristianismo e pregar a paz, mas por sua veia ambientalista, ao chegar a Anapu, ela identificou o problema fundiário e começou a trabalhar para que o pequeno agricultor tivesse direito à terra.
Educadora, a freira ensinou inúmeras gerações de agricultores a ler e escrever e a estudar, com o intuito de torná-los futuramente técnicos agrícolas e poder garantir sua subsistência.
Integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, em Anapu, Dorothy Stang liderava o primeiro projeto de desenvolvimento sustentável, o PDS Esperança, de agricultura familiar. Ela lutava pela regularização da terra para famílias de trabalhadores rurais e combatia a violência das invasões ao projeto por grileiros, madeireiros e fazendeiros.
Dorothy Stang pregava a paz e a defesa da floresta na Amazônia (Foto: Alberto César Araújo /2005)
A confiança no propósito do PDS Esperança foi o que motivou irmã Dorothy, como era conhecida há mais de 20 anos nas regiões margeadas pelo rio Xingu e Transamazônica (BR 230), a dedicar sua vida a esse projeto, levantando a bandeira da regularização da terra, um dos motivos que contribuiu para a execução do crime que tirou sua vida. Até sua morte, sua luta era pouca conhecida fora do Pará.
Além de acreditar, a freira investiu, antes de morrer, para que os assentados do projeto pudessem ser autossuficientes sem devastar a floresta amazônica. Esse era o sonho e ela foi assassinada quando ele estava apenas começando a se concretizar.
O PDS Esperança é um projeto do governo federal por meio do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que consiste em assentar pequenos agricultores em lotes de terra, dos quais 20% são destinados à produção de maneira sustentável e 80% ao manejo florestal comunitário.
Apesar de ser uma iniciativa federal, foi Dorothy Stang que deu visibilidade ao PDS Esperança, garantindo que o assentamento, criado por ela em 1999, fosse reconhecido pelo governo em 2003.
Hoje o PDS Esperança produz cacau, fruto que foi escolhido estrategicamente por não destruir a floresta. Medicilândia, município que também fica no oeste paraense, é hoje o maior produtor isolado de cacau do Brasil e também o de maior produtividade do mundo.
Em vida, a freira conseguiu junto ao Incra que casas fossem construídas para os agricultores do projeto de assentamento. Além disso, a formação dos técnicos agrícolas — iniciativa dela — foi indispensável para que o PDS chegasse onde está hoje.
Mas segundo Dinailson Benassuly, coordenador do Comitê Dorothy, as dificuldades ainda são grandes. Dentre elas, podem ser citadas as ameaças sofridas por moradores das áreas do assentamento Pilão Poente III, localizado no PDS Esperança, em março de 2014.
Espera-se assim, que com a consolidação do PDS Esperança, bem como o cumprimento da pena do Regivaldo Pereira Galvão, os membros do Comitê Dorothy e a sociedade civil como um todo possam dizer que a luta de Stang pela Amazônia — que é um bem de todos — venceu as barreiras da impunidade e tornou mais justa a vida de quem antes não tinha direito a terra.
E, embora ela e vários outros que defendem a regularização fundiária tenham sido silenciados, o esforço e a dedicação de cada um deles por uma sociedade mais igualitária, no campo, continuam eternizados naqueles que dão continuidade aos seus trabalhos em vida.
A origem do conflito agrário no PDS Esperança
Mesmo estimulando a produção sustentável e a preservação do meio ambiente para as gerações futuras, a luta da missionária Dorothy Stang para regularizar o PDS Esperança não era visto com bons olhos por fazendeiros do município de Anapu, que, em sua maioria, criam gado — prática que, segundo especialistas, vai na contramão da sustentabilidade, uma vez que se utiliza da devastação de grandes espaços para criação de pasto, por meio das queimadas, devido ao baixo custo do método.
O motivo pelo qual o PDS Esperança não era bem visto emerge do fato de que a propriedade que os fazendeiros possuíam estava localizada exatamente em áreas destinadas para reforma agrária e o desenvolvimento sustentável. Por saber o destino adequado para esses latifúndios, Dorothy Stang os reivindicava junto aos órgãos competentes, e os fazendeiros, por não quererem perder os lotes, questionavam a retomada da terra.
Além dos fazendeiros, alguns agricultores e madeireiros ou não entendiam a importância de trabalhar a natureza sem esgotar os recursos naturais, ou pior, aproveitavam-se da rentabilidade econômica da prática. A “não aceitação” contra a freira era tanta, que a prefeitura de Anapu e a Câmara Municipal da cidade, segundo depoimento dela, chegaram a considerá-lapersona non grata, sob o pretexto de que ela — que lutava pelos direitos de quem não tinha acesso à terra — estaria atrapalhando o desenvolvimento do município.
O lote 55 — área de 3.000 hectares de floresta nativa — foi o local de disputa que ocasionou a morte da missionária. Ela defendia que o espaço pertencia ao PDS Esperança, mas o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”, afirmava que a área foi vendida a ele legalmente por Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, comerciante e agiota da cidade de Altamira.
Assim, o conflito surge da ausência, ainda hoje, da comprovação da legitimidade dessas terras. Muito é especulado e pouco, efetivamente, certificado. Os donos atuais das propriedades — podem tanto tê-las comprado como também invadido. Sem a titularidade, tudo reside, apenas, no campo das conjecturas. Mas uma coisa é incontestável: muitos conseguem apropriar-se indevidamente de terras públicas na Amazônia, por meio da falsificação de documentos, a exemplo da grilagem.
No documentário “Mataram Irmã Dorothy”, de Daniel Junge, a missionária diz que o único documento que os fazendeiros possuem das propriedades é de cartório — de compra e venda. Ela, por sua vez, tinha o mapa indicando que a fazenda dos pecuaristas estava localizada em território da União.
Todo esse contexto nasce em meio ao plano de ocupação da Amazônia, criado na época da ditadura militar, na década de 60. Inicialmente, os lotes eram cedidos a quem fosse morar na região. Hoje, o que se vê são terrenos — cedidos por meio dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP) — sob posse de fazendeiros que afirmam terem conseguido as propriedades de maneira lícita. E assim, inicia-se o conflito.
Quanto mais o PDS Esperança avançava, quanto mais se desenvolvia, mais ameaças de morte a irmã Dorothy recebia. Para Dinailson Benassuly, coordenador do Comitê Dorothy, a freira é um símbolo de luta pela terra. “Até hoje ela é uma inspiração pra mim e para tantos outros”, diz.
O assassinato e a Bíblia como única defesa
Era manhã de sábado, dia 12 de fevereiro de 2005, como outra qualquer para os moradores do PDS Esperança, a 53 quilômetros de distância da sede de Anapu, no oeste do Pará. Irmã Dorothy Stang, então com 73 anos, vestia uma bermuda bege, blusa branca e portava, apenas, uma pasta amarela, onde levava a Bíblia, em suas mãos. Ela caminhava em uma estrada de terra batida em direção à casa de assentados quando foi abordada Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Carlos Batista.
Segundo a investigação policial, a missionária Dorothy Stang chamou a atenção dos dois homens por eles terem jogado, dias antes, sementes de milho dentro das lavouras dos agricultores do PDS Esperança para prejudicar as plantações. Rayfran e Clodoaldo eram contratados para trabalhar no lote 55, do qual Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, a alegava ser o dono.
A principal testemunha do crime, um agricultor que caminhava há poucos metros de distância da missionária, disse que o pistoleiro Rayfran perguntou à freira se ela estava armada. Ela afirmou: “eis a minha arma”. E lhe mostrou a Bíblia.
Rayfran Sales disparou seis tiros contra a freira, acertando-a na cabeça e em outras cinco partes do corpo. Dorothy Stang tombou na terra.
Naqueles dias em que a impunidade de crimes no Pará ganhou repercussão internacional, uma força-tarefa foi montada de emergência pelo governo federal para atuar na região de Anapu. Cerca de dois mil soldados foram deslocados de batalhões do Exército de Belém, Manaus e Marabá com a função de garantir a segurança de quem morava no munícipio e evitar outros assassinatos, já que muitos amigos da missionária estavam ameaçados de mortes, entre eles, José Amaro Lopes de Sousa, o Padre Amaro, um dos coordenadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e o bispo da Prelazia do Xingu, dom Erwin Kräutler.
Em dezembro do mesmo ano, o autor dos disparos confessou, diante do juiz, que recebeu R$50,00 pelo crime, mas que a promessa era de R$50 mil. Ao escutar tais palavras, o júri popular lamentou e Rayfran não esboçou um só gesto que demonstrasse arrependimento pelo ato.
Na época, o Procurador Geral da República, Felício Pontes, solicitou à Procuradoria Geral da República, a federalização do caso, isto é, que a Polícia Federal fizesse a investigação, uma vez que se tratava de grave violação aos direitos humanos e havia a suspeita de que fazendeiros formalizaram um consórcio para encomendar a morte da freira.
O pedido de federalização foi negado e o caso foi julgado pela Justiça Estadual do Pará. A Polícia Civil do Pará investigou o crime e prendeu os responsáveis.
O julgamento dos cinco acusados pelo crime
Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão (Foto: Carlos Mendes/TJ Pará)
Os réus Vitalmiro Bastos, Amair Cunha, Clodoaldo Batista e Rayfran Sales no julgamento em 2005 (Comitê Dorothy)
São cinco os envolvidos na morte da missionária Dorothy Stang. Todos foram julgados e condenados, mas três estão cumprindo pena em regime semiaberto. Exceto Rayfran das Neves, autor do disparo, que está preso, mas por ter cometido outro crime. Regivaldo Pereira Galvão até agora não cumpriu pena.
Veja, abaixo, onde está cada um dos condenados:
Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão” (mandante): Foi condenado em maio de 2010 a 30 anos de prisão, inicialmente, em regime fechado. Regivaldo sempre respondeu em liberdade, ficou preso, apenas, no início dos julgamentos por 1 ano e 4 meses. Hoje, mora em Altamira e aguarda em liberdade um recurso que tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A reportagem da agência Amazônia Real tentou contato com o advogado do Regivaldo, Jânio Siqueira, para obter mais informações sobre a defesa dele no caso, mas ele não retornou as ligações telefônicas até o fechamento desta matéria.
Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida” (mandante): Foi condenado em setembro de 2003 a 30 anos de prisão em regime fechado. Em fevereiro de 2014, conseguiu encurtar a sua pena em 125 dias por trabalhos realizados na prisão. Hoje, mora em Altamira, onde cumpre a pena em regime semiaberto.
Amair Feijoli da Cunha, o “Tato” (intermediário): Foi condenado a 17 anos de prisão inicialmente em regime fechado. Hoje mora em Tailândia, no Pará, e cumpre a pena em regime semiaberto. “Tato” teve a pena reduzida pela lei da delação premiada. A pena inicial, por homicídio duplamente qualificado, era de 27 anos. No julgamento, ele confessou que foi contratado por R$ 50 mil pelos fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura e Regivaldo Pereira Galvão. O valor seria dividido entre os executores.
Rayfran das Neves, o “Fogoió” (autor dos disparos): Foi condenado a 27 anos de prisão, que seriam cumpridos inicialmente em regime fechado. Assassino confesso, Rayfran foi beneficiado em 2013 com prisão domiciliar, por apresentar bom comportamento na cadeia. Hoje aguarda novo julgamento em regime fechado por ser acusado de matar, em setembro de 2014, um casal em Tomé-Açu, no Pará.
Clodoaldo Batista, o “Eduardo” (coautor): Foi condenado a 17 anos de prisão em regime semiaberto, porém não se apresentava à justiça desde 2011 — condição obrigatória exigida pelo regime. Clodoaldo sumiu, não disse onde estava morando, não cedeu endereço, nada. Dessa forma foi considerado foragido. Em 20 de outubro de 2014, se apresentou à Justiça do Pará. Agora, responde à pena em regime semiaberto, tendo que se recolher à noite para dormir em uma casa penal da Região Metropolitana de Belém. Clodoaldo mora em um sítio, no município de Benevides, no Pará.
Impunidade na Amazônia X Justiça
“Continuam morrendo anônimos todos os dias naquela região”, declara o promotor de Justiça Edson Cardoso, que atuou no caso Dorothy Stang, ao ser indagado pela Amazônia Real sobre a situação de Anapu hoje.
A afirmação, além de trazer uma perspectiva do que ainda acontece no município, permite ir ao passado e relembrar a história de um dos maiores ambientalistas brasileiros, que assim como a Irmã Dorothy defendia a floresta e as populações tradicionais: Chico Mendes lutou até sua morte em 22 de dezembro de 1988. Ela até fevereiro de 2005.
Quando o promotor fala em anônimos, se refere ao pequeno agricultor, porque nas suas palavras “as lutas sindicais ficam cada vez mais enfraquecidas a cada morte de líderes”. É de se imaginar que a luta é injusta: agricultores que querem apenas um pedaço de terra para plantar e garantir o sustento da família contra grandes latifundiários que contavam com capatazes para defender suas propriedades.
Dessa luta, desde o pequeno agricultor até as lideranças sindicais, a Amazônia tem muito sangue derramado em seu solo. No Pará, por exemplo, o caso conhecido como “Massacre de Eldorado dos Carajás” teve grande repercussão e, apenas, dois condenados. Dois. De 146 policiais militares julgados por terem participado do assassinato de 19 sem-terra, em abril de 1996, sem contar os mais de 60 feridos.
Segundo dados do Ministério Público, entre 1964 e 2011, os mortos por latifúndio, só no Pará, passam de 2 mil. Mas tanto no caso Dorothy Stang, quanto dos “Irmãos Canuto” ocorrido em 1990 vitimando os dois irmãos Paulo e José Canuto, o promotor Edson Cardoso conseguiu a condenação dos mandantes. Nesse último caso, a motivação também era a questão agrária. Eles, assim como a freira, lutavam pelos pequenos agricultores rurais. Contudo, passaram-se 18 anos até que o assassinato fosse levado a julgamento.
No caso de Chico Mendes — que foi um dos primeiros a atrair os olhos do mundo para a questão da terra na Amazônia –, o fazendeiro Darli Alves da Silva e seu filho Darci Alves Pereira foram condenados a 19 anos de prisão. No caso Dorothy, aguarda-se julgamento do recurso no STJ, para que Regivaldo Pereira Galvão cumpra sua pena.
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Dorothy Stang, dez anos de impunidade na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU