19 Agosto 2014
E mais: O apelo missionário para um evangelho social; uma falha tecnológica; e a postura do papa sobre o aborto
A reportagem é de John Allen Jr., publicada pelo portal The Boston Globe, 16-08-2014.
A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A Coreia do Sul dificilmente é a primeira prova deste insight sobre o Papa Francisco, e talvez não seja o melhor exemplo. No entanto, no dia que marca a primeira metade da viagem do pontífice à Ásia, mais uma vez fica claro o quanto ele é, realmente, um “Papa Teflon”.
Não é que alguma polêmica esteja se formando; pelo contrário: esta é exatamente a questão. Há material para alimentar mais do que uma disputa, porém dada a força da personalidade do papa, nada disso é o suficiente para elevar os ânimos.
Até agora, Francisco tem atraído multidões entusiasmadas, uma cobertura midiática enorme e um espanto desde companheiros VIPs a pessoas comuns, de ícones da cultura pop a freiras locais coreanas.
Muitas das características do papa já conhecidos trazem consigo um charme. Nestes caso foi andar no papamóvel em versão simplificada da KIA, andar num vagão de trem comum de um lugar a outro e ostentar uma fita amarela para mostrar solidariedade às famílias dos mais de 300 jovens coreanos que morreram num desastre recente no país envolvendo uma balsa.
A mensagem papal de preocupação com os pobres e com a reconciliação da dividida península coreana deu certo também.
O papa é, claramente, um sucesso nas ruas. Até mesmo pessoas não católicas e sem religião têm aproveitado para comprar uma coleção coreana popular que contém 100 dizeres do Papa Francisco, numa versão papal dos Analectos de Confúcio.
Kim Young-oh, um fabricante de carros da Hyundai que perdeu sua filha de 17 anos no desastre ocorrido em abril no país, resumiu o sentimento ainda antes de o pontífice parar com seu papamóvel numa praça de Seul no sábado, onde iria compartilhar palavras de conforto com ele e outros sul-coreanos.
“Não sou uma pessoa religiosa”, disse Kim, “mas Francisco parece ser, realmente, uma pessoa muito carinhosa”.
O surpreendente é que a Coreia do Sul tem, na verdade, uma tradição marcadamente de protestos e uma cultura política tumultuada. Há vários elementos aqui que, sob outras circunstâncias, esperar-se-ia protestar contra a visita.
Dae-Kwang Choi, por exemplo, é um pastor da Primeira Igreja Metodista Chung Dong de Seul. Segundo ele, muitos evangélicos coreanos possuem fortes objeções típicas de protestantes/pentecostais para com a Igreja Católica, tais como queixas sobre a grande ênfase dada à Virgem Maria e ao papado.
De acordo com o pastor, estes não estão animados em ver um festival com duração de uma semana devotado ao papa, e alguns se irritaram quanto a usar verbas governamentais para subsidiar o evento.
Mas será que eles virão a público criticar?
“Claro que não, com certeza não”, disse Choi. “Este papa é muito querido”.
Musang Beophyeon é um monge budista que trabalha como abade num templo localizado na área suburbana de Seul. Ele se queixou sobre a cerimônia de sábado onde Francisco beatificou 124 mártires católicos dos séculos XVIII e XIX.
“Muitos budistas arriscaram suas vidas para salvar os cristãos naquela época, mas hoje a Igreja quer esquecer esta parte da história”, lamentou. Ele considerou a celebração realizada como uma reivindicação injustificada de superioridade moral.
Isso trouxe algum aspecto negativo para o papa?
“De forma alguma”, disse Musang Beophyeon, ressaltando que escreveu um prefácio brilhante para um livro coreano sobre Francisco, em que diz que a simplicidade projetada pelo papa ressoa bem entre os budistas.
O mesmo vale para as vozes dissidentes dentro da Igreja.
Alguns membros da Igreja coreana criticaram uma parada, no sábado, feito nas instalações de uma organização católica de caridade chamada Kkottongnae, fundada por um padre carismático chamado John Oh, que tem sido perseguido ao longo dos anos por escândalos envolvendo corrupção. O centro abriga 5 mil doentes e deficientes físicos, e é visto pelos críticos como um grande esquema ilegal.
Entretanto, após ver o papa no local claramente comovido, ignorando o relógio na medida em que abraçava dezenas de crianças doentes e deficientes, ninguém iria propor discussões sobre este líder. Era o Papa Francisco já conhecido, lidando com as possíveis polêmicas e mudando o foco para algo mais importante.
Pensemos num outro grupo: os familiares das vítimas do naufrágio quiseram que o Papa Francisco pressionasse o governo no sentido de criar uma investigação criminal independente, algo que um porta-voz do Vaticano disse que o religioso não faria. No entanto, o pontífice estendeu a mão a estas famílias sob tantas formas, inclusive batizando um familiar, que elas estão agraciadas em vez de desapontadas.
Dado este carisma, Francisco parece sempre receber os benefícios da dúvida. Sexta-feira à noite, por exemplo, os jovens foram convidados a lhe fazer perguntas. Ele evitou a questão mais provocativa sobre a China, e ainda assim ganhou elogios por sua franqueza.
Talvez a grande prova de seu apelo seja esta: do lado de fora do hotel que recebe o centro de imprensa para a visita papal, um cafetão discreto porém determinado tem trabalhado à noite num esforço para atrair visitantes desejosos de contratar os serviços de uma garota de programa. Quando me abordou na sexta-feira à noite – sem sucesso –, perguntei se ele sabia que as pessoas que estão viajado junto do pontífice estão instaladas neste mesmo hotel.
Supõe-se que este rapaz não seja fã da moralidade sexual católica, mas mesmo assim mostrou gostar de Francisco porque, como ele disse: “Este papa não julga”.
O que a Coreia do Sul ilustra, portanto, é que o revestimento de teflon do Papa Francisco não é apenas um artefato ocidental ou latino-americano, mas parte de sua marca registrada mundial. Isso pode não resolver as objeções que alguns têm contra o catolicismo, mas parece persuadi-los de que o problema não se deve por causa do papa – o problema acontece apesar dele.
O apelo missionário pelo evangelho social
A viagem à Coreia do Sul tem trazido vários exemplos do compromisso do Papa Francisco para com o evangelho social, ou seja, casos de preocupação em relação aos pobres, à promoção da paz, e assim por diante. Este é um pilar de seu papado tão presente que o pontífice chegou a sustentar dizendo que o evangelho social deveria, na verdade, estar no centro da “atividade missionária” da Igreja, expressão católica para dizer evangelização.
Noutros contextos, isso poderia parecer apenas uma afirmação teológica bonita. Na Coreia do Sul, no entanto, trata-se de uma forma muito apropriada para dizer do recente “boom” do catolicismo no país.
O crescimento está bem-documentado, e é um crescimento tão acentuado que há dos anos um renomado escritor católico chamou a Coreia do Sul de “o Tigre Asiático da Igreja”.
Em 2008, a parcela da Igreja dentro da população coreana rompeu o limiar dos 10%, e vem crescendo a uma taxa anual de aproximadamente 3%. Em 1950, a população católica total do país era de apenas 156 mil, mas em 1990 este número chegou a 2.4 milhões. Hoje, está em 5.4 milhões de fiéis.
A maioria das paróquias católicas na Coreia do Sul atraem de 200 a 400 adultos convertidos por ano, e a Igreja também acrescenta de 130 a 150 novos padres no mesmo período. Atualmente, a Coreia do Sul tem quase 5 mil padres católicos, dois terços dos quais com menos de 40 anos.
Sem dúvida, há múltiplos fatores alimentando este fenômeno.
Por um lado, os laços de parentesco valem muito na Coreia do Sul, de forma que quando um membro familiar se converte há, frequentemente, um forte desejo para que os demais também se convertam. (É revelador que existam apenas 272 nomes de família em todo o país, dos quais uma variedade de apenas cinco nomes – Kim, Lee, Park, Choe e Jeong – representam 90% do total.)
Uma forte liderança leiga também desempenha um importante papel, assim como o legado do martírio. Alguns analistas acreditam que aquilo que se parece como um crescimento católico é, na verdade, parte de um movimento religioso mais amplo que vem ocorrendo na Coreia do Sul.
Beophyeon, o monge budista referido acima, diz que o budismo está apostando em ganhos e que uma tal participação também tem crescido em sua própria congregação.
De vez em quando, no entanto, os analistas dizem que um ingrediente inegável no sucesso missionário do catolicismo na Coreia do Sul foi o seu engajamento social.
A explosão do protestantismo se deu a partir das décadas de 1970 e 1980, enquanto que o grande aumento de fiéis no catolicismo se deu nas duas décadas seguintes – 1990 e 2000. Este período coincidiu com a transição de um regime militar para a democracia ocorrido no país, processo no qual a Igreja desempenhou um papel fundamental.
O líder dissidente Kim Dae-jung, que foi condenado à morte pelos militares e, mais tarde, se tornou presidente da Coreia do Sul entre os anos de 1998 e 2003, ganhando a reputação de um “Nelson Mandela da Ásia”, inspirou-se fortemente em suas crenças católicas e representa uma tradição nacional do ativismo católico feito por leigos.
Takahiro Suzuki, autor protestante japonês que escreveu um livro em 2013 sobre a expansão do cristianismo na Coreia, diz que a reputação social do catolicismo tem sido central para a sua expansão. Entre outros pontos fundamentais, Suzuki cita um momento em 1995 em que a Igreja concordou em acolher um protesto dos trabalhadores no lado de fora da Catedral Myeongdong, em Seul.
Mais recentemente, a Igreja Católica prestou apoio a famílias das vítimas do naufrágio que, atualmente, estão realizando protestos contra o que consideram uma resposta inadequada do governo.
Choi, o pastor metodista, concorda que tudo isso ajudou o catolicismo a conquistar corações e mentes.
“O compromisso social da Igreja Católica a tornou profundamente respeitada”, disse. “Ela até mesmo conquistou alguns protestantes por causa disso”.
O catolicismo sul-coreano é também conhecido por ter relações cordiais com a comunidade budista do país, distinguindo-se de uma linha mais combativa, às vezes, dos protestantes e pentecostais.
Numa cultura que preza a harmonia social, isso também é um aspecto que contribui bastante.
Tudo isso torna a Coreia do Sul um lugar especial para que Francisco mostre, ainda mais, que o evangelho social e os empreendimentos missionários são só não estão em conflito entre si, mas que também são dois lados de uma mesma moeda. Caso alguém duvide, a Coreia é um bom exemplo para provar esta afirmativa.
Uma falha tecnológica
Uma história que levantou interesse é que esta visita representa o mais próximo da China que um papa já esteve nos últimos tempos, e na quinta-feira Francisco se tornou o primeiro pontífice a sobrevoar o espaço aéreo chinês. O seu telegrama online ao presidente Xi Jinping, invocando “bênçãos divinas” para o país, provavelmente produziu mais comentários na imprensa do que qualquer frase que tenha dito desde o “Quem sou eu para julgar?”.
A China e o Vaticano não mantêm relações diplomáticas, de forma que a proximidade do Papa Francisco e o pequeno gesto animou alguns sobre um possível avanço nesse sentido, embora os analistas mais antigos continuem céticos.
No entanto, falhas tecnológicas não poupam nem mesmo um papa Teflon.
O Pe. Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, disse na sexta-feira à noite que, no começo do dia, a embaixada chinesa em Roma havia telefonado para o Vaticano pedindo uma cópia do telegrama porque, embora ouviam falar na mídia sobre a tal correspondência, aparentemente ela não tinha chegado. Segundo Lombardi, pode ter havido um problema técnico ao enviar a mensagem do avião papal, causado por alguma falha na comunicação com a torre de controle durante o voo.
De qualquer forma, disse Lombardi, a mensagem já foi reenviada.
Francisco em inglês
A viagem à Coreia do Sul também marca a estreia do Papa Francisco como um orador público em inglês. Até o momento, ele fez três discursos nesse idioma, que é o segundo mais comum em grande parte da Índia, e tem programado mais um a ser feito no domingo.
Em princípio, o seu nível de segurança no inglês se elevou. Ao final da missa de sexta-feira num estádio de futebol em Daejeon, cerca de 140 km ao sul de Seul, fez uso do inglês para convocar os coreanos a trabalharem juntos em resposta à tragédia envolvendo uma balsa em Sewol.
Quando chegou ao ponto central da fala – “trabalharem juntos” –, o pontífice fez um gesto com a mão direita e ergueu a voz, claramente enfatizando que isto era o principal para ele.
No entanto, quando Francisco sentia que era preciso sair do script, usava o italiano. Como já aconteceu noutros casos, algumas de suas melhores frases vêm nestes momentos improvisados.
Na quinta-feira à noite, acrescentou um comentário contra o clericalismo numa fala aos bispos coreanos. Na sexta-feira, respondeu a perguntas feitas por jovens asiáticos, incluindo um coreano que perguntou sobre a divisão da península. Francisco disse ser importante que os coreanos perdoem, visto que são membros de uma única família, invocando a história bíblica de José que perdoa os seus irmãos.
Numa visita não planejada na sexta-feira à noite à comunidade jesuíta da Universidade de Sogang, em Seul, Francisco reiterou a sua visão da Igreja Católica como um “hospital de campanha”, que cura as feridas da humanidade. Pediu aos jesuítas e padres em geral que não “castiguem” as pessoas, mas as “consolem”.
A boa notícia para os americanos que esperam ansiosos pela visita do papa em setembro de 2015 aos Estados Unidos é que ele provavelmente estará bem à vontade para ler os textos em inglês, e os falantes deste idioma não terão problemas para entendê-lo. Mas os que quiserem estar preparados para os melhores e surpreendentes momentos, estejam preparados para entender espanhol ou italiano.
Um papa pró-vida
Desde que Francisco disse a jornalistas no ano passado que, para ele, não é necessário se falar sempre sobre questões tais como aborto, homossexualidade e uso de métodos contraceptivos, pois as posições da Igreja nestes assuntos já são bem conhecidas, tem havido um ponto de interrogação em alguns círculos sobre a profundidade do compromisso para com a causa pró-vida.
Se ainda não havia ficado claro que Francisco é, de fato, um grande defensor de questões pró-vida, esta ida à Coreia do Sul trouxe alguns pares de evidências.
Em sua homilia de sexta-feira pela manhã em Daejeon, Francisco enumerou uma série de ameaças que ele enxerga, incluindo uma “cultura de morte que desvaloriza a imagem do Deus da vida e que viola a dignidade de todo homem, mulher e criança”.
Na mente dos católicos, a frase “cultuar de morte” liga-se ao falecido Papa João Paulo II, hoje São João Paulo, e as batalhas pró-vida travadas durante o seu papado. Ao inserir este dizer em sua retórica pública, Francisco se associa com esta agenda.
No sábado de tarde, Francisco acrescentou uma parada num “cemitério simbólico para crianças abortadas” localizado num campo atrás do prédio de uma entidade de caridade que ele visitou, a Kkottongnae. O campo é marcado por cruzes brancas e tem uma estátua da Sagrada Família: José, Maria e Jesus quando criança.
A parada no memorial foi tão rápida que sequer foi anunciada na transmissão ao vivo pela tevê. A sua presença, no entanto, parece ter sido o suficiente para deixar uma mensagem.
A batalha dos mártires coreanos
Francisco celebrou uma missa na Praça Gwanghwamun, em Seul, no sábado para beatificar 124 mártires coreanos. O evento envolveu dois temas-chave para ele: as realidades do martírio contemporâneo, especialmente dos cristãos que sofrem perseguição no Iraque, e o papel dos leigos na Igreja.
Os fundadores originais do catolicismo na Coreia não eram padres ou missionários estrangeiros, mas leigos que descobriram o credo na China e o trouxeram para o seu país. No sábado, Francisco disse que a história deles reflete a “dignidade e a beleza da vocação dos leigos”.
Desde Bento XVI, os papas geralmente não celebram cerimônias de beatificação, reservando um envolvimento pessoal para as canonizações, ou seja, os atos formais de declarar alguém como santo. A beatificação é o último estágio antes da santificação, e a prática recente era que a missa fosse conduzida pelo prefeito da Congregação para as Causas dos Santo. (No ano passado Francisco enviou uma mensagem de vídeo para uma cerimônia especialmente grande de beatificação na Espanha.)
Neste caso, foi natural que Francisco conduzisse a cerimônia, pois se encontrava no local. O que é difícil imaginar é que ele não tenha se comovido com as batalhas destes novos beatos.
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Coreia do Sul confirma Francisco como o “Papa Teflon” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU