Por: Caroline | 03 Março 2014
O teólogo Pedro Trigo, jesuíta de origem espanhola mas naturalizado venezuelano, faz uma análise sobre a atual situação da Venezuela, segundo ele “do lado do governo, a distração em assumir sua responsabilidade configura um erro grave, pelo qual todos pagaremos. E buscar derrubar o governo sem desenhar uma alternativa que o supere, e que envolva a todos os venezuelanos, é também meter-se em uma rua sem saída”. O artigo é publicado pela Revista SIC, 25-02-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/Z1W6x6 |
Eis o artigo.
Como ponto de partida, apresento meu desacordo em relação à convocação para ir às ruas com a pretensão da derrubada do governo. Em primeiro lugar porque assim, ao invés de derrubá-lo, o colocamos nas mãos de militares pouco democráticos. Em segundo lugar porque, como em qualquer agrupamento, há minorias que querem “aguçar as contradições” nas passeatas pacíficas, que são sempre legítimas, e que geram violência. Esses que, em seu limite, podem provocar a atuação abusiva dos órgãos de segurança e paramilitares, chamados pelo governo de coletivos, que, inconstitucionalmente atuam armados, mesmo publicamente.
Contudo, compreendo a saída de estudantes às ruas. Interpreto sua motivação de fundo, isto é, o que realmente os move e que não precisa necessariamente coincidir com as razões explicitadas, através do dano mais visível destes últimos anos: a proletarização galopante da classe média assalariada que não tem como repassar ao consumidor os aumentos de custos e que já viu a capacidade aquisitiva de seus salários diminuir velozmente, de modo que hoje já não é mais possível cobrir as necessidades básicas.
Os estudantes são seriamente prejudicados pela atual conjuntura, mas o que os faz desacreditar ainda mais da sua perspectiva do futuro, já comprometida, e que conduziu quase um milhão e meio de profissionais a sair do país, é a ameaça de um futuro indesejado.
Ainda que o povo não seja consciente desta realidade injusta, ela os afeta profundamente porque os serviços básicos, principalmente a saúde e educação, tiveram grande queda de qualidade e, entre as muitas razões envolvidas, uma, isoladamente, é que os salários se tornaram coisa nula.
O mais irritante desta política governamental é que ela é realizada por pessoas que pertencem a uma mesma classe, normalmente a média baixa, e que estão sobrecarregados por trabalhar com o governo.
Voltando ao ponto de partida, devo dizer que, ainda acredito na legitimidade dos protestos estudantis, mas parece-me que eles nos distraem do atual momento assinado pelo governo. A inflexível política irresponsável não tem como enfrentar as necessidades da economia com os dólares do petróleo. Estamos endividados e este ano os recursos que entrarão serão muito menores visto que, parte dos empréstimos feitos em troca de uma oferta futura de petróleo, irão se esgotar sem que cheguem os dólares em troca.
É absolutamente imprescindível que haja uma maior produtividade em nosso país, de maneira que as divisas sejam reservadas para aquilo que não podemos produzir. Para isso, as pesquisas realizadas com todos os setores da sociedade - incluindo as classes C, D e E, que são a base do chavismo- assinalam há muitos anos a necessidade de que não seja apenas o Estado o sujeito da produção no país assim como, menos ainda, a empresa privada. A solução seria um acordo entre ambos, no qual se dê às empresas as garantias, que hoje evidentemente não existem, sobre a propriedade e os investimentos, assim como a necessidade de que os direitos dos trabalhadores venham acompanhados de suas obrigações correspondentes, claramente assinaladas e exigíveis frente a lei e os tribunais independentes do executivo (como pede a Constituição). Por parte das empresas, é imprescindível que seja levada a sério sua responsabilidade social, tanto com seus provedores, como com seus empregados e com os usuários dos produtos. Tudo isso acordado entre as partes e também exigível frente aos tribunais imparciais.
Quanto maior for a demora em dar este passo necessário por parte do governo, pior será para a Venezuela. E senão o der, sua legitimidade estará abalada, não por sua origem mas por seu desempenho, que está conduzindo o país a inviabilidade. Do lado do governo, a distração em assumir sua responsabilidade configura um erro grave, pelo qual todos pagaremos. E buscar derrubar o governo sem desenhar uma alternativa que o supere, e que envolva a todos os venezuelanos, e que não poderá deixar de conter o melhor dos objetivos que Chavez buscava, e sem constituir uma equipe profissionalmente competente e não sectária que seja capaz de implementá-las, é também meter-se em uma rua sem saída.
Agora, se o governo deixar de governar através do sectarismo, isto é, apenas para os seus, e entrar em diálogo com a sociedade e especificamente com as empresas privadas para que todos decidam sobre os rumos que deverão ser seguidos, todos participarão daquilo que, afinal de contas, concerne a todos, e que devemos receber com felicitações e dar o apoio sincero e necessário.
Todavia, o que não deveria ter nenhuma demora nem diferença entre os venezuelanos é a busca por uma solução para o problema da violência, não uma resposta retórica mas verdadeira, na busca pela paz. Nada pode justificar a violência, sobretudo, a agressão física e, nada neste mundo, justifica a morte violenta. A pátria não vale mais que uma vida humana. Não há sentido em sacrificar-se pela pátria, há sentido que alguém viva para o bem do país. Todos têm que ser muito agradecidos àqueles que o fazem e temos que estimular para que todos nós avancemos nessa direção. Entretanto não se pode tirar a vida de ninguém, mesmo alegando a defesa da pátria. Isso não tem nenhuma justificativa.
Aquele que não cumpre a constituição e as leis, e isso for comprovado por um tribunal imparcial e com direito a defesa, poderá ser condenado a pagar uma multa côngrua ou poderá ir para a prisão, para uma prisão capaz de reabilitar e na que seus direitos humanos sejam respeitados. Não existe a pena de morte. Não podemos tolerar que se continue matando impunemente, não podemos aceitar que se continue matando.
Todos devemos nos unir para dar um fim à morte violenta, tanto para a violência cometida pelo Estado (seria bom que o Estado estivesse presente quando Chavez insurgiu, no despertar de 27 de fevereiro, o lema de que nunca mais o exército dispararia contra o povo), como a violência dos coletivos, que se forem chamados por seus nomes serão considerados paramilitares, assim como a violência das gangues criminosas, ou a violência horizontal dos cidadãos.
A situação é tão grave que deve começar por cada consciência que decida não matar por nenhuma justificativa, assim como decida não responder a violência com mais violência. Deve começar com a opção pessoal pela paz, uma opção incondicional. Apenas a partir dessa opção tudo mais terá sentido. É imprescindível que o Estado cumpra sua promessa de marcar todas as balas e armas, para que se possa saber quem as vendeu e para quem ela foi repassada, desse modo poderão ser apuradas as responsabilidades administrativas e penais. Se o governo não estiver disposto a pagar esse preço, isto é, arrumar todos os órgãos de segurança, que hoje são parte do problema e não da solução, este não será um governo legítimo pois encobre o crime. Deus queira que o grito do sangue já derramado possa cada vez mais.
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Conjuntura venezuelana, análise do teólogo Pedro Trigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU