26 Mai 2012
O cristianismo não é uma religião do medo, mas da confiança e do amor ao Pai que nos ama. Essas duas densas afirmações nos falam do envio e da acolhida do Espírito Santo, o dom do Ressuscitado, que nos torna filhos em Cristo, o Filho unigênito, e nos coloca em uma relação filial com Deus, relação de profunda confiança, como a das crianças.
Publicamos aqui a Audiência Geral do Papa Bento XVI, publicada no jornal L'Osservatore Romano, 23-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Queridos irmãos e irmãs,
Quarta-feira passada, eu mostrei como São Paulo diz que o Espírito Santo é o grande mestre da oração e nos ensina a nos voltarmos novamente para Deus com os termos afetuosos dos filhos, chamando-o de "Abba, Pai". Assim fez Jesus. Mesmo no momento mais dramático da sua vida terrena, Ele nunca perdeu a confiança no Pai e sempre o invocou com a intimidade do Filho amado. No Getsêmani, quando sente a angústia da morte, a sua oração é: "Abba! Pai! Tudo é possível para ti: afasta de mim este cálice! Mas não o que eu quero, mas sim o que tu queres" (Mc 14, 36).
Desde os primeiros passos do seu caminho, a Igreja acolheu essa invocação e a assumiu como própria, sobretudo na oração do Pai Nosso, em que dizemos cotidianamente: "Pai ... seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu" (Mt 6, 9-10). Nas Cartas de São Paulo, encontramo-la duas vezes. O Apóstolo, ouvimo-lo agora, se dirige aos gálatas com estas palavras: "A prova de que vocês são filhos é o fato de que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: Abba, Pai!" (Gl 4, 6). E no centro daquele canta ao Espírito que é o capítulo oitavo da Carta aos Romanos, São Paulo afirma: "E vocês não receberam um Espírito de escravos para recair no medo, mas receberam um Espírito de filhos adotivos, por meio do qual clamamos: Abba! Pai!" (Rm 8, 15).
O cristianismo não é uma religião do medo, mas da confiança e do amor ao Pai que nos ama. Essas duas densas afirmações nos falam do envio e da acolhida do Espírito Santo, o dom do Ressuscitado, que nos torna filhos em Cristo, o Filho unigênito, e nos coloca em uma relação filial com Deus, relação de profunda confiança, como a das crianças; uma relação filial análoga à de Jesus, embora a origem e a espessura sejam diferentes: Jesus é o Filho eterno de Deus que se fez carne, nós, ao contrário, nos tornamos filhos n'Ele, no tempo, mediante a fé e os Sacramentos do Batismo e da Crisma. Graças a esses dois sacramentos somos imersos no Mistério pascal de Cristo. O Espírito Santo é o dom precioso e necessário que nos torna filhos de Deus, que realiza aquela adoção filial a qual são chamados todos os seres humanos para que, como precisa a bênção divina da Carta aos Efésios, Deus, em Cristo, "nos escolheu antes de criar o mundo para que sejamos santos e sem defeito diante dele, no amor" (Ef 1,4).
Talvez, o ser humano de hoje não percebe a beleza, a grandeza e a consolação profunda contidas na palavra "pai" com que podemos nos dirigir a Deus na oração, porque a figura paterna muitas vezes hoje não é suficientemente presente, embora muitas vezes não seja suficientemente positiva na vida cotidiana. A ausência do pai, o problema de um pai não presente na vida da criança é um grande problema do nosso tempo, por isso se torna difícil entender na sua profundidade o que quer dizer que Deus é Pai para nós.
De Jesus mesmo, da sua relação filial com Deus, podemos aprender o que significa propriamente "pai", qual é a verdadeira natureza do Pai que está nos céus. Críticos da religião disseram que falar do "Pai", de Deus, seria uma projeção dos nossos pais no céu. Mas o oposto é verdadeiro: no Evangelho, Cristo nos mostra quem é pai e como é um verdadeiro pai, de modo que possamos intuir a verdadeira paternidade, aprender também a verdadeira paternidade. Pensemos na palavra de Jesus no Sermão da Montanha, onde diz: "Amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês! Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu" (Mt 5, 44-45).
É justamente o amor de Jesus, o Filho unigênito – que chega ao dom de Si mesmo na cruz – que nos revela a verdadeira natureza do Pai: Ele é o Amor, e nós também, na nossa oração de filhos, entramos nesse circuito de amor, amor de Deus que purifica os nossos desejos, as nossas atitudes marcadas pelo fechamento, pela autossuficiência, pelo egoísmo típicos do homem velho.
Gostaria de me deter um momento sobre a paternidade de Deus, para que possamos nos deixar aquecer o coração por essa profunda realidade que Jesus nos fez conhecer plenamente e para que a nossa oração seja por ela nutrida. Portanto, podemos dizer que, em Deus, o ser Pai tem duas dimensões. Acima de tudo, Deus é nosso Pai, porque é o nosso Criador. Cada um de nós, cada homem e cada mulher, é um milagre de Deus, é querido por Ele e é conhecido pessoalmente por Ele.
No Livro do Gênesis, quando se diz que o ser humano é criado à imagem de Deus (cf. 1, 27), quer-se expressar justamente essa realidade: Deus é o nosso Pai, por Ele não somos seres anônimos, impessoais, mas temos um nome. E uma palavra nos Salmos sempre me toca quando eu a rezo: "Tuas mãos me plasmaram", diz o salmista (Sl 119,73). Cada um de nós pode dizer, nessa bela imagem, a relação pessoal com Deus: "Tuas mãos me plasmaram. Tu me pensaste e criaste e desejaste".
Mas isso ainda não basta. O Espírito de Cristo nos abre a uma segunda dimensão da paternidade de Deus, além da criação, porque Jesus é o "Filho" em sentido amplo, "da mesma substância do Pai", como professamos no Credo. Tornando-se um ser humano como nós, com a Encarnação, a Morte e a Ressurreição, Jesus, por sua vez, nos acolhe na sua humanidade e no seu próprio Filho, para que possamos entrar no seu específico pertencimento a Deus.
Certamente, o nosso ser filhos de Deus não tem a plenitude de Jesus: devemos nos torná-lo cada vez mais, ao longo do caminho de toda a nossa existência cristã, crescendo no seguimento de Cristo, na comunhão com Ele para entrar cada vez mais intimamente na relação de amor com Deus Pai, que sustenta a nossa vida. É essa realidade fundamental que nos é descerrada quando nos abrimos ao Espírito Santo, e Ele nos faz voltar novamente a Deus dizendo-lhe: "Abbá!", Pai! Realmente entramos além da criação na adoção com Jesus; unidos estamos realmente em Deus e filhos de um modo novo, em uma dimensão nova.
Mas gostaria agora de voltar aos dois trechos de São Paulo que estamos considerando acerca dessa ação do Espírito Santo na nossa oração. Aqui também são duas passagens que se correspondem, mas contêm uma tonalidade diferente. Na Carta aos Gálatas, de fato, o Apóstolo afirma que o Espírito grita em nós "Abba! Pai!". Na Carta aos Romanos, ele diz que somos nós que gritamos: "Abbá! Pai". E São Paulo quer nos fazer compreender que a oração cristã nunca é, nunca ocorre apenas em sentido único de nós a Deus, não é só um "agir nosso", mas é também expressão de uma relação recíproca em que Deus age por primeiro: é o Espírito Santo que grita em nós, e nós podemos gritar porque o impulso vem do Espírito Santo. Nós não poderíamos rezar se não estivesse inscrito nas profundezas do nosso coração o desejo de Deus, o ser filhos de Deus.
Desde que existe, o “homo sapiens” sempre está em busca de Deus, tenta falar com Deus, porque Deus inscreveu a si mesmo nos nossos corações. Portanto, a primeira iniciativa vem de Deus, e, com o Batismo, Deus de novo age em nós, o Espírito Santo age em nós; é o primeiro iniciador da oração, para que possamos depois realmente falar com Deus e dizer "Abba". Portanto, a Sua presença abre a nossa oração e a nossa vida, abre aos horizontes da Trindade e da Igreja.
Além disso, compreendemos – este é o segundo ponto – que a oração do Espírito de Cristo em nós e a nossa n'Ele não é só um ato individual, mas também um ato de toda a Igreja. No rezar, abre-se o nosso coração, entramos em comunhão não só com Deus, mas precisamente com todos os filhos de Deus, porque somos uma coisa só. Quando nos dirigimos ao Pai na nossa sala interior, no silêncio e no recolhimento, jamais estamos sozinhos. Quem fala com Deus não está sozinho. Estamos na grande oração da Igreja, fazemos parte de uma grande sinfonia que a comunidade cristã espalhada em toda a parte da terra e em todo tempo eleva a Deus.
Certamente, os músicos e os instrumentos são diferentes – e esse é um elemento de riqueza –, mas a melodia de louvor é única e em harmonia. Todas as vezes, então, que gritamos e dizemos: "Abba! Pai!" é a Igreja, toda a comunhão dos seres humanos em oração que sustenta a nossa invocação e a nossa invocação é invocação da Igreja. Isso se reflete também na riqueza dos carismas, dos ministérios, das tarefas, que desenvolvemos na comunidade.
São Paulo escreve aos cristãos de Corinto: "Existem diversos carismas, mas um só é o Espírito; há diversos ministérios, mas um só é o Senhor; há diversas atividades, mas um só é Deus que realiza tudo em todos" (1Cor 12, 4-6). A oração guiada pelo Espírito Santo que nos faz dizer "Abbá! Pai!" com Cristo e em Cristo nos insere no único grande mosaico da família de Deus, em que cada um tem um lugar e um papel importante, em profunda união com o todo.
Uma última anotação: aprendemos a gritar! "Abba!, Pai" também com Maria, a Mãe do Filho de Deus. O cumprimento da plenitude do tempo, do qual fala São Paulo na Carta aos Gálatas (cf. 4, 4), acontece no momento do "sim" de Maria, da sua adesão plena à vontade de Deus: "Eis aqui a serva do Senhor" (Lc 1, 38).
Queridos irmãos e irmãs, aprendamos a apreciar na nossa oração a beleza de sermos amigos, ou, melhor, filhos de Deus, de podê-lo invocar com a confidência e a confiança que um filho tem pelos pais que o amam. Abramos a nossa oração à ação do Espírito Santo para que em nós ele grite a Deus "Abba! Pai" e para que a nossa oração mude, se converta constantemente o nosso pensar, o nosso agir para torná-lo cada vez mais conforme ao do Filho Unigênito, Jesus Cristo. Obrigado.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''O cristianismo não é uma religião do medo, mas da confiança e do amor'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU