A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 9º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 2,23-3,6.
“Estende a mão!” (Mc 3,5)
Retornamos ao tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, depois de termos feito o percurso do Tempo Quaresmal e do Tempo Pascal. Neste ano “B”, seguimos o evangelista Marcos.
O evangelho deste domingo nos motiva a fazer caminho com Jesus, que se revelou profundamente livre diante das tradições religiosas judaicas; o relato que a liturgia nos propõe encontramos Jesus “transgredindo” a lei do sábado em duas situações diferentes: uma no campo, onde os discípulos colhiam espigas de trigo para comer e outra na sinagoga, onde o próprio Jesus se encontra com um homem de mão atrofiada, excluído, carente de energia e vitalidade.
A sinagoga era o lugar onde se recordava e se celebrava o Deus que havia conduzido o seu povo “com braço estendido e mão forte” para a terra da liberdade; agora se converteu em um lugar onde a Lei afoga a liberdade dos filhos de Israel. A sinagoga se transformou no espaço onde se gera submissão, medo e escravidão; em vez de pôr as pessoas de pé, a caminho de uma nova Páscoa, atrofia seus braços e as paralisa; ela deixa de ser lugar de celebração da vida para ser lugar de exclusão, de indiferença e preconceito.
O sentido do sábado era este: dia de festa pelo bem-estar (Shalom) de todas as criaturas, dia da comunhão universal, do repouso da Criação em Deus. No entanto, a casuística e o legalismo farisaico fizeram da libertação um jugo e da festa um pranto.
Na sinagoga Jesus expressa sua dor e sua profunda irritação porque lhe dói a dureza de coração daqueles que fizeram de Deus uma propriedade privada e da sinagoga, uma garantia de seus interesses.
Jesus vai converter a sinagoga em lugar de vida para o filho de Israel paralisado; coloca-o de pé, estende-lhe a mão, leva-o para o meio, devolve-lhe a capacidade de decisão...
No centro da sinagoga, ao lado do “Santo” (espaço em que são conservados os livros sagrados), há uma elevação, o púlpito, onde fica quem preside e quem faz a leitura. O “centro” é, pois, o espaço que atrai as atenções de todos. É daí que, “paramentado”, o leitor proclama o texto da Torá e dos Profetas, seguido da pregação. Normalmente os doutores da Lei é que ocupavam a tribuna para fazer a pregação.
O centro, portanto, é o lugar mais importante (e sagrado) da sinagoga, o lugar de onde a Torá ilumina a conduta do ser humano.
O homem da mão seca certamente estava sentado (“levante-se”) quando Jesus lhe ordena “ocupar o lugar da Torá”. Uma pessoa deficiente é o centro de todas as atenções. Em vez de ler a Torá, Jesus provoca a assembleia a fazer outra leitura – a leitura da vida de um homem estigmatizado pela má interpretação da lei. Em outras palavras, trata-se de permitir que fale o espírito da Lei, e não sua letra. Jesus provoca seus adversários, acusando-os de transformar o sábado em dia de opressão, a festa em dor.
Para o homem da mão seca, ocupar o “centro” não era apenas dar uns passos rumo ao meio da sinagoga.
Certamente Jesus pretendia que ele encontrasse o próprio centro, que reconhecesse a própria dignidade de ser humano, que descobrisse o “eixo” da própria vida, assim como o ser humano foi criado como centro de toda Criação. Não é a mão seca que diminui ou suprime a dignidade do ser humano, como não são as mãos sadias a incrementá-la ou garanti-la. O deficiente foi convidado a viajar para o próprio centro à procura de sua “alma”, seu eixo, seu “eu interior”. Com isso pode estender o braço, mostrar a mão, sem medo de dizer “eu sou gente”. Aí se dá a cura total da pessoa.
Para que possa ser curado, ele precisa encarar sua deficiência, precisa tornar-se o centro das atenções, não pode se esconder dos olhares dos outros. Jesus exige que faça exatamente aquilo que sempre tentou evitar: colocar-se no centro, ser observado e considerado.
Mas, Jesus queria atingir também a assembleia e os defensores do legalismo do sábado. Agora põe como ponto de partida para todas as leis uma pessoa concreta, com suas necessidades especiais.
Quando ordena ao deficiente físico ocupar o centro, Jesus pretendia atingir tanto o doente quanto os que, embora fossem fisicamente sãos, eram profundamente doentes de fundamentalismo e legalismo.
O sábado nasce como dia de comunhão com Deus e com as pessoas, como festa pela vida que percorre a vida de todos. Enquanto uma criatura de Deus estiver privada de liberdade e de vida, o sábado e a festa terão sempre o gosto amargo da exclusão e do preconceito.
Os letrados e fariseus de hoje também não se alegram quando o favor, o perdão e a misericórdia de Deus se aproximam dos pecadores e excluídos. Eles têm prazer doentio em impor sobre os outros “pesados fardos”, ritos vazios, mortificações e penitências que alimentam culpa...
Há concepções de “Deus” que matam a festa, a alegria e o prazer de celebrar a vida; há homens e mulheres piedosos que não sabem de banquete, de dança e de alegria. Há pessoas que não suportam a ternura e a compaixão de Deus; parece que estão cheias de ressentimentos e frustrações, como se a experiência de Deus não fosse uma experiência prazerosa e vivificante. Não suportam a alegria dos outros, não se alegram pelo fato de que os pecadores tenham festa e perdão, os solitários tenham companhia, os atrofiados recuperem sua liberdade e autonomia. Determinadas concepções de “Deus” provocam atrofia do coração.
O homem da “mão ressequida” é um personagem significativo. Jesus não hesita em transgredir o preceito sabático e declara o supremo valor da vida. Temos aqui um homem impedido, pela atrofia e pelos preconceitos religiosos, de exercer sua vida plena, sua autonomia e, provavelmente, de participar integralmente do culto judaico. Lucas especifica ser a mão direita. A mão é símbolo da força e da liberdade: através das mãos é que são realizados os trabalhos: “dos trabalhos de tuas mãos hás de viver” (Sl 128,2); também na oração elas são meios de expressão: “à noite estendi a mão, sem descanso” (Sl 77,3).
Em termos antropológicos, ter as mãos atrofiadas pode significar ausência de liberdade, de autonomia. Machucar ou quebrar a mão ou o braço impede o exercício de funções e cria dependências. Ficar de pé e ter a mão curada está em oposição à interpretação do sábado proposta pelos fariseus e doutores da lei que criavam impedimentos, tolhendo a maturidade e a autonomia dos fiéis perante o culto e a sociedade.
Jesus é o Senhor do sábado e liberta o homem para o exercício da vida plena: trabalho e celebração, fé e vida.
O Evangelho deste domingo também nos motiva a descer e transitar pela nossa sinagoga interior, em companhia do Senhor; ali encontraremos dimensões da vida que estão atrofiadas: nossa auto-imagem, sentimentos negativos, rejeições, feridas, fracassos... que, embora dentro da sinagoga, estão em um canto, escondidas dos olhares dos outros. Tais situações consomem energia e esvaziam o fluir da vida.
O que é mais desumanizante e trágico não é ter mãos atrofiadas, mas ter mentes e corações bloqueados pelo negacionismo, intolerância, preconceito... Mentes atrofiadas são geradoras de mentiras (fake news) e incapazes de uma visão mais crítica da realidade; mentes manipuladas por aproveitadores de plantão; mentes incapazes de discernimento e de criar algo novo... Corações atrofiados são fonte de rigidez, de insensibilidade, de falta de compaixão; corações de pedra que só expelem veneno e impedem toda possibilidade de encontro e de acolhida; corações incapazes de bombear uma só gota de amor, mas só injetam veneno nas relações familiares, sociais, religiosas, carregando o ambiente de violência, exclusão e ódio.
E Jesus mete o dedo na chaga daqueles que são “duros de coração”. Ele os chama de hipócritas, pois sabem manejar a lei segundo seus próprios interesses, mas incapazes de compaixão. O que Jesus não suporta é a falta de compaixão dos “piedosos”, “lobos revestidos em pele de cordeiro”.
A narrativa deste domingo nos convida a encarar a nossa vida e parar de nos esconder por trás de outros; nos encoraja a arriscarmos, pois somente assim poderemos lidar com os conflitos com os quais somos confrontados e dos quais não devemos fugir.
- Na “sinagoga” que é você (pensamentos, emoções, reações, dizeres, olhares, conhecimentos, atitudes), o que está paralisado? atrofiado?