19 Fevereiro 2021
Publicamos aqui o comentário de Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 1º Domingo da Quaresma, 21 de fevereiro de 2021 (Marcos 1,12-15). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Evangelho deste Primeiro Domingo da Quaresma é curto: quatro versículos, embora, na realidade, vou me concentrar quase exclusivamente nos dois primeiros, tendo comentado os versículos 14-15 alguns domingos atrás (3º Domingo do Tempo Comum).
Os versículos 12-13 são muito intensos, capazes de nos comunicar o essencial sobre as tentações de Jesus, mesmo que, no nosso imaginário, esteja impressa e, portanto, memorizada por nós a narração mais dramática e mais precisa dos Evangelhos segundo Mateus e Lucas (cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13).
Concentremo-nos, portanto, no relato de Marcos. Jesus foi batizado no rio Jordão por João, seu mestre, e, ao sair da água, viu os céus se abrirem, o Espírito de Deus descer sobre ele com a doçura de uma pomba (cf. Mc 1,9-10) e, sobretudo, ouviu uma declaração dirigida somente a ele. De fato, do céu, da morada de Deus, chega-lhe uma voz que proclama: “Tu és o meu Filho amado; em ti pus toda a minha alegria” (Mc 1,11; cf. Sl 2,7; Gn 22,2; Is 42,1). É a voz do Pai, que confirma o seu amor e a sua identidade de Filho amado; é a voz que o habilita, com a força do Espírito, “companheiro inseparável de Cristo” (Basílio de Cesareia), para a missão pública entre os filhos de Israel.
Mas, logo que isso acontece, “imediatamente” (euthýs) o Espírito que desceu sobre ele o leva aonde os céus não estão abertos, mas sim fechados; leva-o, literalmente “manda-o para o deserto”, onde está presente mais do que nunca o diabo, Satanás, aquele que põe à prova, cuja missão é dividir e separar, sobretudo de Deus.
Satanás é um dos nomes dados a essa potência maléfica que aparece desde o início da criação (a serpente: cf. Gn 3,1) e que, nos textos de Qumran, é aquele que guia os “filhos das trevas” à batalha contra os “filhos da luz”, aquele que se opõe ao Messias de Deus.
Assim, Jesus entra em uma zona de sombra, entra na prova, porque o deserto é terra de prova, de tentação. Ele havia sido isso durante 40 anos para Israel, “batizado” e saído das águas do Mar Vermelho; havia sido durante 40 quarenta dias para Moisés e para Elias; havia sido para aqueles que tinham ido ao deserto para preparar um caminho para o Senhor (cf. Is 40,3), combatendo como “filhos da luz” contra o demônio e as suas trevas; havia sido para João Batista.
Jesus, portanto, está caminhando sobre as pegadas deixadas pelos enviados de Deus e, desse modo, sabe que deve se preparar para aquela que será a prova, a luta cotidiana até a morte.
Naquele deserto de Judá, ao lado do Mar Morto, entre aquelas rochas áridas, Jesus “ficou durante quarenta dias e ali foi tentado por Satanás”. É uma luta corpo a corpo, da qual ninguém é espectador; é uma luta interior através da qual ele deve aprender a obediência do Filho – “aprendeu a obediência através dos seus sofrimentos” (Hb 5,8), lê com inteligência o autor da Carta aos Hebreus – e vencer o tentador que se opõe à vinda do Reino do modo como Deus quer e que Jesus deve assumir, a ponto de revestir-se dele.
São dias de luta em que Jesus amarra o príncipe dos demônios, amarra aquele que é “o forte” (Mc 3,27), porque – como havia anunciado o Batista – “o mais forte” (Mc 1,7) é precisamente Jesus, que expulsará os demônios, libertando os homens e as mulheres da alienação demoníaca.
Marcos não nos diz nada de específico sobre as tentações sofridas por Jesus, aquelas que os outros evangelistas, em uma espécie de midrash, narrarão como uma luta contra as três libidines do eros, da riqueza e do poder, em suma, uma luta contra um manifestação mundana, prepotente e arrogante do Reino. Essa descrição deliberadamente tão genérica por parte de Marcos é uma indicação a discernir quantas vezes durante a sua missão Jesus ainda será tentado.
De fato, ele será instado a utilizar o seu poder divino para impor de modo triunfal o reino de Deus, quando lhe pedirem um sinal, um milagre surpreendente do céu (cf. Mc 8,11); depois, será tentado na hora da agonia no Getsêmani (cf. Mc 14,32-42) e, mais uma vez, ao longo de toda a paixão até a cruz (cf. Mc 15,29-32). Jesus permanecerá sempre fiel à sua missão de enviado do Pai, como justo em um mundo injusto, ao preço de nunca responder à violência com a violência e de dar a sua vida até o fim.
Aqui o evangelista mais antigo enfatiza o fato de que Jesus é constantemente tentado, durante 40 dias, sem nunca ceder a uma visão triunfalista da vinda do Reino. Plenamente submisso ao Pai, criatura entre as criaturas não humanas do deserto (rochas, pedras, arbustos, répteis, aves, feras selvagens), Jesus está em profunda comunhão com toda a criação. Está como que colocado no centro dela, é o verdadeiro Adão como Deus o quis, capaz de viver reconciliado e em paz com todas as criaturas e com toda a terra.
Jesus aparece como o homem manso, harmonioso, pacificado com o céu e a terra, para inaugurar a era messiânica profetizada por Isaías: “O lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos (...) o leão comerá capim como o boi. O bebê brincará no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiará a mão no esconderijo da serpente” (Is 11,6-8).
Na criação marcada pelo reino de Deus, animais e anjos, terra e céu, baixo e alto, terrestre e sobre-humano estão reconciliados e, portanto, em harmonia com a humanidade, com o novo Adão: é uma aliança de paz cósmica. Sim, é o Reino messiânico prometido por Deus a toda a terra, que certamente está vindo. Jesus o inaugura no deserto; por isso, logo depois, pode proclamar: “O tempo já se completou, e o Reino de Deus está próximo”.
Mas é preciso lembrar que essa “harmonia” e essa “paz” têm um alto preço: o preço da kénosis, do esvaziamento e do abaixamento daquele que “tinha a condição de Deus e esvaziou-se a si mesmo (heautòn ekénosen)”, tornando-se homem e despojando-se das suas prerrogativas divinas, em vez de retê-las ciosamente para si mesmo e considerá-las um privilégio (cf. Fl 2,6-7).
Precisamente nessa profunda humilhação, que é testemunha da sua tentação verdadeira e real (não um teatrinho exemplar para nós!), Jesus faz a paz entre o céu e a terra, para que as criaturas do céu, os anjos, se aproximem dele no deserto e o sirvam. Eles o reconhecem como Deus na carne de um homem: Jesus de Nazaré, o filho de Maria.
Jesus, amado na plenitude do amor do Pai que lhe foi declarado na hora do batismo e acompanhado pelo Espírito Santo, já era atuante como vencedor sobre Satanás, sobre o mal, sobre a doença, sobre a morte. É o Messias que vem e traz a vida; basta, portanto, segui-lo, acolhendo o seu convite urgente, que resume em si todo o Evangelho recém-iniciado: “Convertei-vos e crede no Evangelho!”. Assim, Jesus proclama que o tempo se completou e que o reino de Deus já se aproximou: é uma realidade possível, que os homens e as mulheres podem acolher, deixando que Deus reine sobre eles. As potências alienantes dos ídolos, cujo príncipe é Satanás, podem ser vencidas, porque Jesus as venceu no deserto e, depois, ao longo de toda a sua vida humana.
Diante do dom do Reino de Deus, portanto, é necessário “converter-se”, como nos pede o tempo quaresmal: trata-se de mudar de mentalidade, de reorientar a própria vida à luz do “Evangelho” que “é potência de Deus” (Rm 1,16). E o cristão, tentado como Jesus no deserto deste mundo, não poderá mais se sentir sozinho nessa batalha. Como sugerem os Salmos, ele poderá rezar: “Na minha luta, és tu quem lutas” (Sl 43,1; 119,154), e, com a graça do Senhor, será vencedor sobre o próprio demônio.
Nós, monges, não esquecemos que os nossos pais do século IV escolhiam precisamente o deserto para combater Satanás. Narra-se, por exemplo, que Antônio, exausto após a longa luta contra as tentações, perguntou: “Mas onde estavas, Senhor?”. E ouviu Jesus responder: “Estava ao teu lado para combater a tua batalha!”.
A tentação, a prova ritma a nossa vida: se não houvesse a tentação, haveria a indiferença! Mas cabe a nós combatê-la e vencê-la com a ajuda da graça, rezando ao Pai: “Não nos abandones na tentação, mas livra-nos do mal” (Mt 6,13).
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Jesus, continuamente tentado como nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU