17 Mai 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 5º Domingo da Páscoa, 19 de maio (João 13, 31-33a.34-35). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Evangelho segundo João, é sempre o Ressuscitado, o Cristo Senhor, que fala e age, de modo que este texto quer nos mostrar o Cristo no meio de nós, que, na sua glória, continua nos entregando as palavras essenciais para compreender e participar no mistério da humanização de Deus. O que o Cristo ressuscitado e vivo anuncia à Igreja? Que ele é o pastor bom e nós, as suas ovelhas (4º Domingo da Páscoa), que nos deixou um mandamento último e definitivo (5º Domingo), que nos dá o Espírito consolador (6º Domingo), que, ao lado do Pai, intercede por nós (7º Domingo).
Detenhamo-nos, portanto, no trecho litúrgico de hoje, tirado dos “discursos de despedida” que o quarto Evangelho estende por nada menos do que quatro capítulos (cf. Jo 13,31-16,13). Jesus lavou os pés dos seus discípulos, para se revelar como Senhor e Mestre que se faz servo, a ponto de dar a vida por eles (cf. Jo 13, 1-20), depois anunciou a traição de um dos Doze, Judas. (cf. Jo 13, 21-30). Por que este último chegou a tanto? Só Deus conhece o abismo do coração humano (cf. Jr 11, 20; 12, 3; 17, 9-10; 20, 12), mas nós podemos supor que Judas não agiu por sede de dinheiro, mesmo que o quarto Evangelho o descreva como ladrão e apegado ao dinheiro (cf. Jo 12, 6): para entregar o próprio mestre, era preciso uma razão mais forte do que 30 moedas de prata...
Em vez disso, podemos pensar que Judas mandou prender Jesus porque tinha crescido dentro dele o rancor em relação a ele. Chamado por Jesus, ele o seguira, mas depois se dera conta de que o Deus revelado por Jesus não estava em conformidade com a sua imagem de Deus: o que Jesus fazia e dizia, parecia cada vez mais uma contradição com a fé recebida dos pais, então ele chegara a considerá-lo como um “herege” a ser eliminado, para que a fé pudesse se beneficiar com isso. Não pode haver outra razão senão um ódio religioso, porque nos Evangelhos não há sinais de relações pessoais feridas nem de um “eu mínimo” por parte de Judas.
A essa altura, Jesus, conhecendo a reação interior de Judas aos seus gestos e às suas palavras, sentia-se inibido a agir e a falar, a dizer tudo em confidência e liberdade. Quando há a presença de alguém que tem “o olho mau” (Mt 20, 15) e, em seu ser, mantém vivo o preconceito que se torna eficaz antes mesmo de ter escutado; quando alguém alimenta o rancor, então é melhor calar, não por bloqueio psicológico, mas por “submissão” (eulábeia: Hb 5, 7).
É por isso que está escrito no início do nosso trecho: “Depois que Judas saiu do cenáculo, disse Jesus...”. Jesus já está livre para falar com parrhesía e revela: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele. Se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo, e o glorificará logo”.
Agora, tem início a glorificação de Jesus e, ao mesmo tempo, a glorificação de Deus no próprio Jesus, porque a traição contra Jesus e a sua entrega nas mãos daqueles que o matarão não é uma derrota, mas sim um evento de glória. Sim, é difícil entender essa visão “ao contrário” da realidade, mas precisamos nos exercitar para ter uma visão dos eventos que não é a nossa, mas sim a de Deus.
E o que Deus vê? Que no Filho entregue resplandece mais do que nunca o amor de Jesus e também o seu próprio amor, aquele de quem deixa que tal entrega ocorra. Da mesma forma, o olhar de Jesus sobre a sua paixão que já começou com a saída de Judas do cenáculo não é um olhar que vem da carne e do sangue (cf. Jo 1, 13), isto é, da capacidade humana, mas vem por revelação de Deus mesmo. Jesus sabe que “não há amor maior do que dar a vida pelos amigos” (cf. Jo 15, 13), e, então, com a saída irrefreável de Judas, eis a epifania do amor, a glória do amante que resplandece e se impõe.
A cruz é glória não porque é um instrumento de dor, mas porque é o sinal do fim infligido a quem amou, a quem é justo, a quem livremente e por amor depôs a própria vida pelos outros. Logo, essa glorificação se manifestará mediante a intervenção de Deus, que dará ao Filho a própria glória, ressuscitando-o da morte. Assim, Jesus interpreta para os discípulos os eventos das horas posteriores: não uma derrota, não um fracasso, mas uma manifestação da glória de Deus, no sentido de que Deus tem “peso” (kavod) na história, a ponto de decidir os eventos que dão salvação.
Uma vez indicada essa “hora” que chegará em breve, faltando já pouco tempo do seu êxodo deste mundo ao Pai (cf. Jo 13, 1), Jesus expressa as suas últimas vontades, revela o seu testamento, dá o mandamento que resume toda a Lei; um “mandamento novo” (entolè kainé), não porque seja uma palavra nova dirigida por Deus aos fiéis, mas no sentido de que é último e definitivo, depois do qual não haverá outros: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (cf. também Jo 15, 12). Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros”.
Com ternura, chamando-os de “filhinhos” (teknía), Jesus revela aos discípulos o essencial: “Amai-vos uns aos outros”. Nós esperaríamos: “Amai-me”, mas, em vez disso, não: “Amai-vos”! Porque, amando-nos reciprocamente, na verdade, amamos precisamente a ele, o Cristo Jesus. Quem ama Jesus, de fato, realiza acima de toda a sua vontade, o seu mandamento.
O discípulo amado dirá isso explicitamente na sua primeira carta: “Se nos amamos uns aos outros, Deus está conosco, e o seu amor se realiza completamente entre nós” (1Jo 4, 12); isto é, Deus está presente naqueles que se amam reciprocamente e, graças ao amor recíproco, sente-se verdadeiramente amado, porque vê que a sua vontade é realizada e plenamente cumprida (cf. 1 Jo 5, 3).
Quanta perda de tempo em discursos que distinguem entre amor “vertical” e amor “horizontal”, quantas acusações recíprocas entre os assim chamados irmãos “mundanos” e os assim chamados irmãos “espiritualistas”: raciocínios de pessoas lentas de ouvido e de coração! Porque o amor, quando é verdadeiramente assim, não pode deixar de ser amor de Deus e amor pelos irmãos e pelas irmãs, ou seja, amor de Deus que em nós – saibamos ou não – faz-se amor pelos outros. Se nos amamos mutuamente, então estamos juntos, então há comunhão; e quando estamos juntos, então Jesus, o Vivente, está presente (cf. Mt 18, 20), o Ressuscitado está no meio de nós (cf. Mt 28, 20), como fonte e selo da comunhão. E, quando amamos o outro dando-lhe de comer, de beber, vestindo-o, visitando-o na prisão ou na doença, então amamos a Cristo que está realmente presente, presente mais do que nunca diante de nós.
Portanto, o amor, acima de tudo, deve ser recíproco, amor pelo outro, que, se for irmão ou irmã na fé, deve responder com amor: amor recíproco, amor de um pelo outro! Em todo caso, o discípulo ou a discípula de Jesus deve sempre amar o outro, quer responda ou não, porque este é o amor de Jesus Cristo, sempre gratuito. Enquanto houver um fragmento de amor vivido entre os humanos, Deus está presente, está vivo, e Cristo está entre nós! A salvação, ou seja, a vida de cada um de nós, depende da observância deste mandamento: “Amai-vos uns aos outros”.
Mas Jesus dá também a forma, a medida, o estilo desse amor: “Amai-vos como (kathós) eu vos amei”. Trata-se de amar o outro como Jesus o ama, isto é, acolhendo-o como ele é, perdoando-o e remindo os seus pecados, cuidando fielmente dele, tornando-o irmão ou irmã até a morte, até depor a vida por ele/ela. Há uma forma no amor cristão, um estilo determinado por Jesus e por ele testemunhado nos Evangelhos. Se Jesus é mestre, ele o é sobretudo na arte de amar.
É fácil falar de amor ou crer que se vive o amor, mas vivê-lo como Jesus o viveu, ao preço do dom da vida, é arte, é uma obra-prima de amor, portanto é manifestação da glória de Deus que é glória de amar. Assim, esse amor torna-se “signo”, isto é, um sinal de que, onde há tal amor, lá está a vida cristã, vida do discípulo de Jesus. O cristão, de fato, não se distingue porque reza (todos os religiosos rezam, assim como os não religiosos quando estão na angústia!); não se distingue porque faz milagres (em todas as religiões existem taumaturgos); não se distingue porque tem uma sabedoria refinada (o Oriente elaborou uma sabedoria que rivaliza com a nossa ocidental): não, distingue-se porque ama, ama como Jesus, “até o extremo” (eis télos: Jo 13: 1)!
Portanto, no testamento de Jesus existem
o mandamento novo,
o estilo e a forma,
o signo (ou significância).
Pobres homens e pobres mulheres que no mundo tentam todos os dias amar como Jesus, com o seu estilo, e sentem isso como o maior e mais significativo compromisso de serem cristãos: esses são os discípulos e as discípulas de Jesus. Todo o resto é cena, cena religiosa que passa com este mundo (cf. 1Cor 7, 31). O juízo que nos aguarda a todos só ocorrerá sobre o amor, para cada homem ou mulher que tenha ou não conhecido e acreditado em Jesus Cristo, o Vivente, o Senhor: ele nos pediu para nos amarmos entre nós, humanos, porque só assim ele se sente amado por nós!
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''Amai-vos uns aos outros como eu vos amei'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU