19 Outubro 2018
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 29º Domingo do Tempo Comum, 21 de outubro (Mc 10, 35-45). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No Evangelho segundo Marcos, depois de cada um dos três anúncios da paixão feitos por Jesus na sua subida a Jerusalém, está registrada uma cena de incompreensão por parte dos discípulos. Após o primeiro anúncio (cf. Mc 8, 31), é Pedro quem chega a contestar as palavras de Jesus (cf. Mc 8, 32), tornando-se “obstáculo” – “Satanás” (Mc 8, 33), como Jesus o chama – no caminho que Deus designou ao seu Filho.
Quando Jesus afirma, pela segunda vez, a necessitas passionis (cf. Mc 9, 31), todos os discípulos, como que atordoados, não compreendem ou, melhor, põem-se a discutir sobre quem dentre eles pode ser considerado o maior (cf. Mc 9, 32-34).
No trecho evangélico deste domingo, após o terceiro anúncio do seu sofrimento e morte, passagem inevitável para a ressurreição (cf. Mc 10, 32-34), são Tiago e João que mostram como estão distantes do modo de pensar de Jesus. Os dois irmãos seguiram Jesus desde o início do seu ministério público, são os seus primeiros companheiros, junto com Pedro e André, abandonaram tudo, família e profissão, para estar com ele (cf. Mc 1, 16-20), e, de algum modo, sentem-se os “anciãos” da comunidade.
Sendo filhos de Salomé, provavelmente irmã de Maria, mãe de Jesus (cf. Mc 15, 40; Mt 27, 56; Jo 19, 25), são primos de Jesus, portanto, seus parentes, pertencentes à família, ao clã e, por isso, acham que podem se orgulhar de precedências sobre os outros.
Ei-los, então, se apresentando a Jesus para lhe dizer o que pensam que “merecem” para o futuro, quando Jesus, o Rei Messias, estabelecer o seu reino: “Deixa-nos sentar um à tua direita e outro à tua esquerda, quando estiveres na tua glória”.
É uma pretensão mais do que uma pergunta, feita por quem raciocina exatamente como muitas vezes nós fazemos no cotidiano: as relações importam, então é preciso reivindicar o seu peso... E isso não ocorre apenas entre nós, homens e mulheres, irmãos e irmãs, porque, mesmo em relação a Deus, orgulhamo-nos de pretensões: somos nós aqueles que creem, somos nós os cristãos, portanto, junto de Deus, devemos ter uma precedência sobre os outros...
Jesus responde a Tiago e João com infinita paciência: “Vós não sabei o que pedis”. Resposta também irônica, porque Jesus sabe que, na sua verdadeira glória, a da cruz, à sua direita e à sua esquerda estarão dois malfeitores, crucificados e torturados como ele (cf. Mc 15, 27). Há aqui o confronto entre duas visões da glória: os dois discípulos a entendem como sucesso, poder, esplendor, enquanto Jesus acaba de indicá-la no serviço, no dom da vida, em ser rejeitado por ser obediente à vontade de Deus.
Por isso, ele tenta mais uma vez levar os discípulos a olhar não para a glória como termo final, mas para o caminho que conduz à verdadeira glória, aquela que eles sequer conseguem imaginar. E ele faz isso fazendo-lhes uma pergunta: “Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?”.
Jesus pergunta, acima de tudo, se estão dispostos a beber “o cálice do sofrimento”, expressão bíblica para indicar o sofrimento a ser sofrido (cf. Sl 75, 9; Is 51, 17.22 etc.). Lembre-se que Jesus mesmo, na agonia do Getsêmani, será tentado a afastar de si esse cálice: “Abba! Pai! Tudo é possível para ti! Afasta de mim este cálice!” (Mc 14, 36)...
No seguimento de Jesus, ao compartilhar a sua estrada e o seu destino, há para os discípulos um sofrimento a ser acolhido, sem revoltas e sem a tentação de estar isento dele. Não só isso, há também uma imersão, um “ir abaixo”, um afogamento momentâneo nas “ondas da morte” (Sl 18, 5), que será um evento, primeiro, para Jesus, mas, depois, deverá ser compartilhado por aqueles que se sentem envolvidos na sua vida e querem estar com ele aonde quer que ele vá (cf. Ap 14, 4).
Aqui é empregado o termo grego báptisma (e o verbo correspondente baptízein), do qual não compreendemos mais o significado: batismo é imersão, é ir para baixo d’água, é afogar-se como criatura velha para sair da água como criatura nova.
Note-se a insistência do texto original, como aparece em uma tradução literal: “Podeis, com a imersão com que fui imerso, serdes imersos?”. Eis o batismo, que dá início sacramentalmente à vida cristã, mas que deve se tornar experiência, vida concreta, até o momento final da morte, quando as ondas nos varrerão, e depois da morte, quando Deus nos chamar para a vida eterna através da ressurreição.
Tiago e João, sempre “boanèrghes, isto é, ‘filhos do trovão’” (Mc 3, 17), respondem afirmativamente à pergunta de Jesus e entenderão só mais tarde o preço dessa disponibilidade: quando Marcos escreve o Evangelho, por volta do ano 70, ele sabe que, em 44, Tiago tinha sido martirizado por Herodes em Jerusalém (cf. At 12, 2), e João, segundo a tradição, viverá na ilha de Patmos uma longa paixão de prisioneiro exilado...
Em todo o caso, Jesus acolhe essa sua profissão espontânea de disponibilidade para a cruz, mas também lembra que não cabe a ele conceder que ele se sente à sua direita ou à sua esquerda, mas “é para aqueles a quem foi reservado” pelo Pai (passivo divino).
O fato é que esse pedido dos dois irmãos – que Mateus, em relação a Tiago e a João, põe na boca da sua mãe (cf. Mt 20, 20) – provoca imediatamente uma reação indignada nos outros discípulos, que os contestam por ciúmes e por estarem incomodados com a sua pretensão.
E aqui se deve dizer com franqueza e sem ingenuidade que a comunidade de Jesus é imagem das nossas comunidades: homens e mulheres chamados por Jesus e escolhidos por ele; homens e mulheres que muitas vezes mostram ter pouca fé ou até mesmo apistía, incredulidade (cf. Mc 9, 24; 16, 14); homens e mulheres frágeis e fracos que, às vezes, não conseguem compreender as palavras de Jesus, as exigências do seguimento e, portanto, contradizem a sua vocação e a sua identidade.
A comunidade, embora escolhida, instruída e formada pelo Senhor presente e operante no meio dela, parece ser uma pobre comunidade. Marcos tem a audácia de colocar diante dos nossos olhos a trágica parábola dessa comunidade: aqueles que
“tendo abandonado a barca, as redes e o pai, seguiram a Jesus” (cf. Mc 1, 18-20),
na hora da paixão, “abandonaram Jesus e fugiram todos” (Mc 14, 50).
Pois bem, não nos esqueçamos da fraqueza e da fragilidade da comunidade do Senhor, porque, se essa era a comunidade cujos membros haviam sido escolhidos e instruídos pessoalmente por Jesus, como as nossas comunidades poderiam ser melhores?
Então, Jesus chama todos os Doze ao seu redor e lhes dá uma lição muito instrutiva, porque é um apocalipse do poder mundano, político. Ele diz: “Vós sabeis”, porque basta olhar, observar, “que os chefes das nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Mas, entre vós, não é assim (Non ita est autem in vobis)”.
Atenção, Jesus não diz: “Entre vós não deve ser assim", fazendo um desejo ou dando um mandamento, mas: “Entre vós não é assim”, ou seja, “se for assim, vós não sois a minha comunidade!”.
Não é possível que a comunidade cristã tenha como modelo o poder mundano, que se deixe moldar por aquilo que os governos fazem, quase sempre injustos e muitas vezes totalitários: o governo, na comunidade cristã, é “outro”, ou não é governo, mas domínio. Por outro lado, Jesus não nega a necessidade de um governo na sociedade humana, mas o lê na sua realidade, como se manifesta concretamente. Sim, às vezes há alguém que merece o governo porque sabe exercê-lo na justiça, mas é um evento raro, porque as forças mundanas, os poderes obscuros logo o removem...
Eis, portanto, a verdadeira “constituição” dada à Igreja: uma comunidade de irmãos e irmãs, que servem uns aos outros e entre os quais quem tem autoridade é servo de todos os servos. Na Igreja, não há possibilidade de adquirir méritos de antiguidade, de fazer carreira, de gozar de privilégios, de receber honras: é preciso ser servos dos irmãos e das irmãs, e ponto final! O fundamento dessa comunidade é precisamente o evento no qual o Filho do homem, Jesus, se fez servo e deu a sua vida em resgate pelas multidões, isto é, por todos. Jesus não dominou, mas sempre serviu até se tornar escravo, até lavar os pés, até aceitar uma morte ignominiosa, assimilado aos malfeitores.
Sim, Jesus é o servo sofredor retratado pelo profeta Isaías no trecho que, neste domingo, escutamos como primeira leitura: “Depois do seu íntimo tormento”, isto é, depois de conhecer o sofrimento, “meu servo, o Justo” – diz o Senhor – “justificará as multidões (rabbim), carregará as suas iniquidades” (Is 53, 11).
Essa é a glória do Messias, de Jesus, e, portanto, a glória do cristão: não reconhecimentos mundanos, não posições ou postos de sucesso e de triunfo, mas a glória de quem serve aos irmãos e às irmãs, e dá a vida na liberdade e por amor ao séquito dele, Jesus.
Esse evangelho não diz respeito apenas à comunidade histórica de Jesus, os Doze, mas, acima de tudo, concerne a nós, a Igreja hoje. Em particular, diz respeito àqueles que, na comunidade cristã, exercem um serviço, sempre tentados a fazer com que ele se torne domínio, poder, sempre tentados a trabalhar para si e não pelo bem da comunidade.
E que fique claro: na Igreja, o serviço não visa a assegurar uma dinâmica de grupo positiva e eficaz de acordo com esquemas psicológicos. Não, o serviço é uma lei para a comunidade cristã, porque realiza concretamente o nosso amor fraterno, porque essa é a posição do Kýrios, do Senhor.
No coração da comunidade, está o Kýrios, que se faz nosso servo e nos diz: “Eu, que sou o Mestre e o Senhor, lavei os seus pés; por isso vocês devem lavar os pés uns dos outros” (Jo 13, 14).
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