31 Março 2017
Chegamos hoje ao fim da série de três evangelhos que ilustram o batismo: no 3º Domingo da Quaresma, tivemos a Água Viva; no 4º Domingo, a Iluminação e, neste 5º Domingo, temos o Renascimento, o retorno à vida. O batizado é convocado a manifestar a passagem da vida mortal a uma vida de glória.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 5º Domingo da Quaresma, do Ciclo A. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências bíblicas
1ª leitura: “Porei em vós o meu espírito e vivereis” (Ez 37,12-14)
Salmo: Sl.129(130) - R/ No Senhor, toda graça e redenção!
2ª leitura: “O Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos mora em vós” (Rm 8,8-11)
Evangelho: “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11,1-45 ou 3-7.17.20-27.33-45)
Deus e o homem diante da morte
Jesus evitava ir à Judeia, onde estavam os que haviam decidido matá-lo. Sua hora ainda não tinha chegado, mas estava próxima. Ele sabia disso. E, junto com o seu consentimento, experimentava ao mesmo tempo desejo e temor.
O que é surpreendente, pois Jesus é a imagem do Deus invisível. E nós imaginamos um Deus imperturbável, sempre ao abrigo de qualquer emoção! Mas este não é o Deus de Jesus Cristo. Desde os textos da primeira Aliança, vemos Deus reagir às condutas dos homens, cedendo até mesmo aos seus desejos.
Os Evangelhos mostram Jesus ser, inúmeras vezes, tomado pela emoção: no anúncio da morte do Batista (Mateus 14,13), por exemplo, ou diante da incredulidade dos seus compatriotas (Mateus 13,57-58). Extasiou-se diante da fé do centurião. Aqui, «profundamente comovido», pôs-se a chorar.
Devemos compreender que Deus vive a nossa vida conosco. Não se contenta em julgar, mas compartilha tudo conosco: nós O fazemos passar por tudo o que vivemos. Isto é muito importante, porque às vezes pensamos que, se tivéssemos fé, estaríamos ao abrigo da dor e não conheceríamos o medo perante a nossa própria morte.
Ora, não contemos poder nos sair melhor do que Cristo. Choramos sim por todos os Lázaros e passamos todos pelos Getsêmanis. A morte guarda o seu mistério, vindo com ela, já incluído no pacote, a provação da nossa fé. Superá-la, na dor, no temor e nas lágrimas, nos faz alcançar a glória de Deus.
Enquanto não acreditarmos verdadeiramente que Deus nos arranca da morte, deste nada que é o contrário da Vida, não O estamos vendo tal como Ele é. Vamos certamente continuar dizendo que Ele é Amor, mas sem compreender tudo o que isto significa.
O Cristo encarnado
A propósito da Samaritana, no domingo passado, havíamos feito alusão à afetividade de Jesus. Podemos acrescentar outros textos que o mostram cheio de compaixão, como Marcos 10,21, em que é tomado de amor pelo rico que havia observado a Lei desde a sua juventude.
Aqui, ele chora por Lázaro, é claro. Mas também pelas suas irmãs, que estão tristes e aflitas. E, finalmente, por toda a humanidade, que está submetida à lei da morte. O que me parece importante, porque, como dissemos, imaginamos facilmente Cristo e, portanto, o próprio Deus, como imperturbável, sem emoção nem estado d’alma.
Assim, a alegria de Deus pelo pecador que volta (Lucas 15) ou sua decepção, quando a sua palavra não é ouvida, tudo isto nos permanece estranho. No entanto, o homem é imagem de Deus, e, se há afetividade no homem, é porque já havia antes, em sua Fonte.
Temos de compreender que a ressurreição de Lázaro não é uma simples manifestação de poder, mas é obediência ao amor, que é a essência mesma do Filho. O que aqui se traduz pelas lágrimas diante das nossas tristezas.
Esta afetividade de Cristo foi que o culto ao Sagrado Coração procurou evidenciar, quando se manteve centrado na interioridade de Jesus e não resvalou para o pseudo-fisiológico, sob pretexto da Encarnação. Resulta, assim, que a afetividade de Cristo é consequência da Encarnação. Revelação, portanto, do que no próprio Deus corresponde à nossa afetividade.
Ressurreição de Lázaro e ressurreição de Jesus
Por tudo que acaba de ser dito, o relato da ressurreição de Lázaro merece ser lido por inteiro, como envolvido nesta ternura. Para bem compreender, é uma espécie de profecia ativa da ressurreição do próprio Jesus; mas devemos entender que, se Cristo ressuscitou, foi para nós que ressuscitou; por amor.
Senão, o que significaria a vontade de Deus de vir esposar até mesmo a nossa morte, de vir nos esposar até a este ponto, «até o fim» (João 13,1-2)? Tendo dito isto, notemos mais uma vez a diferença radical entre a ressurreição de Lázaro, ou do filho da viúva de Naím, e a ressurreição de Jesus. Cristo não ressuscita em nosso mundo, para retomar a sua vida de onde havia deixado. Sua Ressurreição é como um salto na vida do próprio Deus.
Ao contrário, em João 12,2, encontramos Lázaro em Betânia, sentado à mesa. Em 12,9, muitas visitas vieram vê-lo. Não vamos fazer a mesma coisa, ou seja, buscar nos representar as coisas concretamente. A ressurreição de Lázaro, mais ainda a de Jesus, e também a nossa própria ressurreição, permanecem sendo um mistério, ou seja, uma verdade não representável, mas capaz de iluminar a nossa vida, mesmo se não possamos, tal como os destinatários da primeira carta de Paulo aos Coríntios, responder à questão: «Com que corpo ressuscitaremos?» (15,35). Escutemos o relato de João e ouçamos Jesus dizer que Ele é “a ressurreição e a vida”. O amor não morre nunca, pelo menos este Amor.
Rumo à plenitude da fé e da vida
Assim como o cego de nascença, que estava enfermo «para que se manifestasse a glória de Deus» (João 9,3), assim também Lázaro morre «para a glória de Deus» (11,4). Desta forma, os males que afligem os homens, e que retornam sempre, são utilizados de algum modo para gerar o bem e a alegria.
Para gerar a fé, mencionada nos dois relatos, como resultado da ação de Jesus (9,38 e 11,27.45). Lembremos que a fé em Cristo, a fé em Deus, não é uma crença entre outras: consiste em entregar-Lhe a nossa vida. E, uma vez entregue, nossa vida já participa da Ressurreição.
O relato da ressurreição de Lázaro nos revela igualmente a nossa solidariedade na fé. Com efeito, a fé de Lázaro não é mencionada. E com razão! O texto insiste pelo contrário na fé de cada uma das suas duas irmãs. Fé, aliás, imperfeita no início («Se tivesses estado aqui...»).
Jesus é quem docemente as conduz à plenitude da fé. O cenário é o mesmo em Mateus 9,2, a propósito do paralítico de Cafarnaum. Significa que, frente aos nossos problemas, podemos e devemos contar com a fé dos outros. Assim como também eles devem poder contar com a nossa fé.
Nós a debitamos a crédito da comunidade cristã, de quem somos todos beneficiários. O Corpo de Cristo, que somos todos nós em conjunto - reunidos, portanto, no Amor - está destinado à Ressurreição. A ressurreição de Lázaro é disto figura e antecipação.
Figura e antecipação igualmente, e antes de tudo, da ressurreição de Cristo, em quem se produz toda ressurreição. Contrariamente a Lázaro, que parece retomar a mesma vida de antes, Cristo, agora, escapa aos nossos olhares, da mesma forma que todos os que perdemos. Este é o tempo de provação, que nos dá acesso à fé plena: a fé sem ver (João 20,29).
Demoras e distâncias
Este relato vem enquadrado por duas menções à “glória de Deus” (versículos 4 et 40). A “glória de Deus” é que Ele seja reconhecido pelo que é, e que sua verdade se manifeste fulgurante em plena luz do dia. Esta glória é ao mesmo tempo a glória do Filho, como sugere o versículo 42.
Deus, por Cristo, vai poder ser identificado ao Amor, mesmo se não sabemos, exceto muito imperfeitamente, o que esta palavra quer dizer. Mas uma questão se põe: o que significa esta demora, este retardamento, na manifestação da glória? À notícia da doença de Lázaro, Jesus espera dois dias até se pôr a caminho.
Quando chega ao túmulo, Marta lhe diz que Lázaro já está enterrado há quatro dias. Por que a demora? Será simplesmente para que a morte do amigo seja bem autentificada, tornando-se indiscutível? Ou, então, esta demora representa o tempo de provação da fé, o tempo em que vivemos guardando a lembrança dos nossos mortos?
À questão do tempo acrescente-se a da distância, da ausência. As duas irmãs, por sua vez, dizem a Jesus: «Se tivesses estado aqui...» Estes quatro dias de distância e de ausência correspondem bem a este entretempo em que vivemos. A obscuridade do túmulo evoca a obscuridade da noite da fé, enquanto caminhamos sem nada ver.
Jesus, no entanto, não está ausente verdadeiramente: ele está a caminho, para vir nos encontrar aqui mesmo onde estamos. E, então, receberemos a ordem de «sair» (versículo 43), palavra que faz pensar no Êxodo em que Israel retomou o seu nascimento.
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