"Segundo o narrador da vida de Niels Lyhne, o jovem tinha possuído a fé reta, simples e ingênua das crianças. Ele acreditava no Deus poderoso do Antigo Testamento e tinha acompanhado a história da peregrinação terrestre de Jesus, no entanto, não via sua divindade'.
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
Em uma carta redigida em abril de 1903, o poeta austríaco Rainer Maria Rilke recomendou vivamente a leitura dos livros do poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen (1847-1885). Entre eles, o romance Niels Lyhne. A narrativa gira em torno da vida de um homem cuja frustração decorrente da primeira relação com Deus o levou a determinada determinação de apartar o todo poderoso de sua vida. O episódio ocorreu quando ele ainda era adolescente e prostrou-se diante de Deus, suplicando pela sobrevivência de uma jovem parente por quem nutria um amor platônico. O narrador descreve essa experiência como segue:
"O fervor de sua prece colocará-o face a face com Deus, fizera-o rojar-se de joelhos aos pés do trono, tremer de esperança e de medo, mas sempre cheio de fé na onipotência da oração, resolvido a arrebatar pelas suas súplicas a bondade de Deus. E tinha sido obrigado a levantar-se do pó, humilhado em suas esperanças. Com a sua fé, não tinha arrancado ao céu nenhum milagre; nenhum Deus tinha respondido ao seu apelo; a morte agarrara sem vacilar a sua presa, como se nenhuma muralha de preces se levantasse até as nuvens. Em sua alma fez-se um grande silêncio."
Segundo o narrador, com este movimento, o jovem Niels Lyhne tinha possuído a fé reta, simples e ingênua das crianças. Ele acreditava no Deus poderoso do Antigo Testamento e tinha acompanhado a história da peregrinação terrestre de Jesus, no entanto, não via sua divindade:
"O fato de vê-lo sempre submisso à vontade do Pai, tudo suportando desarmado e sofrendo tão humanamente, escondera-lhe a divindade de Cristo; tinha visto nele apenas aquele que faz a vontade do Pai, apenas o filho de Deus, não o próprio Deus, e por isso dirigira suas orações a Deus Pai. E fora o Pai que o abandonara em sua aflição. Mas se Deus dava-lhe as costas, ele também podia dar as costas a Deus. Deus era surdo, pois bem, ele seria mudo; se Deus não tinha piedade, ele também não seria piedoso. E ele desafiou Deus e baniu-o de seu coração."
Na vida adulta, Niels Lyhne fixou raízes em Copenhague, mas sentiu-se constantemente cansado porque "tudo lhe parecia vazio e sem valor, artificial e confuso, e além disso tão mesquinho", que optou por mergulhar nos estudos que "nada tinham que ver com o ambiente irrespirável do mundo". Tornou-se insensível à dor, com "sangue demasiado frio para o entusiasmo" e "o pulso demasiado fraco para a ação".
Depois de dois relacionamentos frustrados e dois anos aventurando-se no exterior, "sentia-se tão só... Não tinha nenhum parente, nenhum amigo que estivesse perto do seu coração". No retorno à cidade natal, casou-se com uma jovem cujas crenças fundamentais eram extremamente opostas à suas, para quem ensinou tudo que aprendera ao longo dos anos desde aquela primeira experiência com Deus:
"Ensinou-lhe em seguida como a fé em um Deus pessoal, que tudo conduz segundo os melhores desígnios e na outra vida castiga e recompensa, representava apenas uma fuga áspera da realidade, uma tentativa impotente de tirar o aguilhão ao desesperador arbítrio da existência. Fez-lhe ver que essa fé afrouxa a compaixão dos homens pelos infelizes deste mundo, torna-os menos preparados para colocar todas as forças a serviço dos outros, desde que podem acalmar-se com o pensamento de que tudo que for suportado nesta curta vida terrena abre aos sofredores o caminho para a eternidade de magnificência e de alegria. Sublinhou o quanto lucraria o gênero humano em força e independência quando, pondo a sua fé em si mesmos, os homens procurassem viver a sua vida em harmonia com aquilo que cada um, nos seus melhores momentos, considera mais elevado, em vez de colocá-la fora do próprio alcance e sob o domínio de uma divindade que tudo controla."
Aparentemente e superficialmente, Niels converteu a esposa Gerba à sua filosofia ateia, mas, diante da própria morte, ela foi fiel a si mesma e recorreu ao pastor para receber os sacramentos finais porque desejava, "cheia de medo, fazer as pazes com Deus que antes conhecera". Horas antes de morrer, Gerba viu brotar novamente em si a fé infantil:
"Sentia que tornara a ser a menina que costumava ir à Igreja pela mão de sua mãe e lá sentar-se, sentir frio e admirar-se de que os homens pecassem tanto. Depois cresceu novamente sob a impressão das altas palavras do Sermão da Montanha, tornou-se enfim a pecadora agonizante que ouvia o pastor falar sobre os sagrados mistérios do Batismo e do Sacramento do altar. E enfim venceu em seu coração o melhor impulso, aquele ato profundo de ajoelhar-se perante o Deus onipotente e justo, aquele amargo pranto de arrependimento perante o Deus traído, escarnecido e torturado, e aquele humilde e audacioso desejo da Nova Aliança do vinho e do pão com o Deus cheio de mistério."
Novos tempos difíceis vieram para Niels depois da morte da esposa, com dias marcados pelo deserto e a solidão, até o momento do seu segundo encontro com Deus. É como se a cena da juventude se repetisse, mas agora, diante de um amor diferente: pelo próprio filho.
"O medo que se insinuou no olhar do menino ao perceber de longe que as convulsões voltaram, a súplica crescente por auxílio, enquanto a tortura aproximava-se... e por fim, ainda pior, não poder ajudar, dar o seu sangue, dar tudo o que possuísse! Levantou os punhos cerrados contra o céu, depois estendeu as mãos para o menino com a intenção alucinada de fugir... e então jogou-se de joelhos ao chão e implorou a Deus que está no Céu, que mantém o mundo atemorizado através de provações e disciplinas, que envia a necessidade e a doença, o sofrimento e a morte, que deseja que todos os joelhos se curvem tremulamente, do qual não se pode fugir, nem para o extremo dos mares, nem para os abismos mais profundos - a Ele, ao Deus que, quando lhe apraz, pode esmagar a criatura que mais amamos e reduzi-la a pó sob seus pés, ao mesmo pó de que foi feita. Com esses pensamentos Niels elevou sua prece a Deus e jogou-se em sua impotência aos pés do trono celestial, reconhecendo que a ele pertence todo o Poder, a ele somente."
Pela manhã, Niels estava só e "alguma coisa se partiu dentro dele na noite em que o menino morreu; perdeu a confiança em si mesmo, e a sua crença no poder que o homem tem de viver a vida até o fim". A circunstância da morte do filho e da esposa o conduziu para a guerra, onde viveu os últimos dias da vida observando uma "série de cenas sem interesse". Em março, foi atingido no peito por uma bala e recebeu o diagnóstico de que não tinha muitas probabilidades de viver. Enquanto ele sofria e gemia de dor, o doutor Hjerrild pensava em seu futuro:
"— Falando sério, Lyhne — disse Hjerrild —, não quer falar com um pastor?
— Tenho tanto a ver com o clero quanto você — murmurou Niels amargamente.
— Não se trata de mim, que estou vivo e com saúde, mas de você que está aí estendido e a torturar-se com as suas teorias. Os homens que estão para morrer não têm teorias, e é completamente indiferente que as tenham. As teorias são apenas para ser vividas, só são úteis durante a vida. Que importa ao homem morrer com esta ou aquela teoria? Acredite-me, nós todos temos lembranças luminosas e suaves da nossa infância. Já vi morrerem muitos homens e sei que sempre é um consolo despertar essas lembranças. Sejamos honestos: podemos ser o que bem quisermos, jamais conseguiremos afastar Deus do céu, nosso cérebro o imaginou lá em cima tantas vezes que ele acabou por se introduzir em nossa mente ao som de sinos e de canções, desde que éramos pequeninos...
Niels acenou com a cabeça.
Hjerrild inclinou-se para ouvir o que ele queria dizer.
— A intenção é boa — murmurou Niels —, mas... — e sacudiu energicamente a cabeça."
Enquanto Niels preparava-se para o próximo e definitivo encontro com Deus, suportando a morte completamente sozinho, Hjerrild contemplava a noite e, a seu modo, rezava:
"'Se eu fosse Deus...', murmurou, e continuou mentalmente, '... preferiria salvar aquele que não se converteu à última hora'."