23 Mai 2018
É o recurso natural mais requisitado, depois da água. O rápido crescimento urbano do planeta transformou esse humilde material em um bem escasso. Sua exploração excessiva tem efeitos ambientais devastadores
A reportagem é de Carmen Gómez-Cotta, publicada por El País, 19-05-2018.
Mergulhar por um dos maiores recifes de coral nas primitivas águas das Ilhas Gili. Percorrer as infinitas praias de areia branca de Lombok. Sucumbir à cativante espiritualidade de Bali. Ficar maravilhado com os templos e vulcões de Java. Descobrir os orangotangos da selva de Bornéu. Ficar surpreso com os dragões de Komodo. São algumas das maravilhas da Indonésia, país de sonho composto por 17.500 ilhas. Um paraíso que corremos o risco de perder, porque está afundando lentamente.
O motivo? A atividade clandestina dos ladrões de areia, que de noite se aproximam da costa para roubá-la e vendê-la no mercado negro. No começo da década de 2000, o comércio ilegal de areia na Indonésia chegou a uma situação tão extrema que o país começou a perder território. Atualmente 25 ilhas já desapareceram e, com elas, suas praias.
A areia é hoje o recurso natural mais requisitado do mundo, depois da água e à frente dos combustíveis fósseis. Ela se transformou em um bem muito valioso, imprescindível às civilizações modernas. “Nossa sociedade está literalmente construída sob areia”, diz Pascal Peduzzi, chefe da unidade de Mudança Global e Vulnerabilidade do Programa das Nações Unidades para o Meio Ambiente e autor do relatório Areia, mais escassa do que pensamos (2014).
Tudo o que nos cerca contém areia: o cimento, o vidro, o asfalto, os aparelhos eletrônicos. Até os plásticos, os cosméticos e a pasta de dentes contêm esse elemento. Mas seu principal uso é a construção, que consome um quarto da areia do planeta. Pelos grãos angulares e desiguais da areia de praia, esta adere melhor ao se fabricar cimento; de modo que o boom imobiliário devora quantidades enormes desse recurso. A regulamentação escassa em muitos países encoraja a presença de redes mafiosas.
De acordo com um relatório das Nações Unidas, 54% da população mundial vive em áreas urbanas e se prevê que o número aumente até 66% em 2050, sendo a Índia e a China os dois países em que o aumento será maior. Esse desenvolvimento urbano exige enormes quantidades de areia para o cimento. Uma casa de tamanho médio precisa de 200 toneladas; um hospital, 3.000; um quilômetro de estrada, 30.000. Por ano são extraídos 59 bilhões de toneladas de materiais ao redor do mundo; até 85% é areia para construção, diz Pascal Peduzzi.
O problema é que a formação de areia é um processo natural lento, que precisa de anos, e a demanda é superior à capacidade de regeneração e fornecimento da própria natureza. “A nível mundial, consumimos o dobro de areia que os rios podem transportar, de modo que precisamos escavar em outras parte”, explica Nick Meynen, do Escritório Europeu do Meio Ambiente. “Agora ela é obtida dragando rios e, em escala bem menor, fundos marinhos. A estimativa é que entre 75% e 90% das praias do mundo estão diminuindo”.
As consequências ao meio ambiente são irreversíveis: destruição dos habitats, degradação dos leitos marinhos, aumento de materiais em suspensão, aumento da erosão... Se o ritmo vertiginoso da extração de areia continuar, as gerações futuras verão entornos de paisagens lunares, praias de rocha e ondas agitadas, rios e pântanos secos, territórios áridos e extinção da flora e da fauna. “Todas essas mudanças ambientais colocam em risco os ecossistemas nos rios, deltas e áreas costeiras, de modo que existem inúmeras espécies ameaçadas, de pequenos crustáceos a golfinhos de rio e crocodilos”, diz Aurora Torres, pesquisadora do Centro Alemão à Pesquisa Integral da Biodiversidade. E isso não é tudo. “Não somos conscientes do efeito cascata que essa degradação causa em nosso bem-estar”, alerta, já que a exploração excessiva de areia é ligada a um aumento de secas, inundações, vulnerabilidade contra tempestades e tsunamis e a proliferação de doenças infeciosas, como a malária. Também pode expulsar a população dos locais mais afetados e transformar as pessoas em refugiados climáticos.
Não é preciso viajar à Indonésia para comprovar os efeitos do tráfico de areia. O negócio está em alta no Marrocos. Armados com simples pás, os trabalhadores ilegais carregam a areia em lombos de burro a caminhões de transporte. Entre Safim e Essaouira, no oeste do país, o contrabando transformou a costa dourada em uma paisagem rochosa. A areia é obtida até do Saara. Apesar de não ter a qualidade da areia das praias, as cidades de hoje precisam tão desesperadamente desse recurso finito e limitado que o obtêm de qualquer lugar.
As Ilhas Canárias são um dos principais destinos espanhóis da areia desse deserto, de acordo com denúncia da ONG Western Sahara Resource Watch (WSRW), que há anos investiga o material que sai do porto de El Aiune (Saara) em direção à Espanha para a regeneração de praias e construção de edifícios. “As Canárias importam areia do Saara; a praia de Las Teresitas é um exemplo conhecido”, diz Cristina Martínez, porta-voz da WSRW.
O Ministério da Agricultura e Pesca, Alimentação e Meio Ambiente da Espanha admite que a areia das praias do país é um recurso muito escasso. “A Lei de Costas de 1988 estabeleceu uma série de medidas para limitar a extração de materiais rochosos naturais nos trechos finais dos leitos dos rios e proibiu taxativamente a extração de areia para construção”, diz um porta-voz. O ponto 2 do artigo 63 dessa lei proíbe as extrações de areia para a construção, com exceção à criação e regeneração de praias. O Ministério de Fomento acrescenta que a tendência atual espanhola é “usar areia de trituração, que é a gerada pelos seres humanos através da trituração de material de construção”.
O negócio da areia é tão lucrativo que se tornou um fenômeno mundial, expandindo-se na mesma velocidade que a urbanização. O que há um quarto de século era uma matéria-prima comum, abundante e barata, é hoje um recurso escasso. Sua exploração é difícil de se controlar, porque está ao alcance de todos. Apesar de existirem cada vez mais leis que regulamentam sua extração, ainda não é o suficiente. “Em muitos casos o problema não é a ausência de leis e sim sua falta de aplicação”, diz a pesquisador Aurora Torres.
Essa aplicação frouxa das leis cria o cenário perfeito para que apareçam grupos organizados que controlam o negócio. Na Índia essas máfias são particularmente poderosas, porque têm ligações com a Administração e podem ter acesso aos processo de contratação. A extração e venda de areia nesse país são regulamentadas a nível provincial, mas o Governo central não é firme no cumprimento da lei. A corrupção é palpável. “Normalmente, os políticos estão envolvidos e controlam diretamente o negócio ilícito de areia” afirma Sumaira Abdulali, ecologista, fundadora da Fundação Awaaz e uma das principais vozes de denúncia em seu país. “Os dirigentes consideram que colocar restrições a esse negócio deteria os ambiciosos planos de crescimento da Índia”. O país extrai por ano 500 milhões de toneladas de areia, alimentando uma indústria que movimenta 42 bilhões de euros (185 bilhões de reais). As redes de extração de areia utilizam frequentemente pessoas em condições deploráveis, sem equipamento e ferramentas, mergulhando no fundo dos rios com um balde metálico.
Como a Índia, nenhum dos países que vivem um período de expansão e prosperidade urbana sem precedentes estão dispostos a deter esse lucrativo negócio. Uma vez que a areia está cada vez mais em alta, esses cenários são caldo de cultura para seu contrabando, que está crescendo em outras partes do mundo. E quanto mais esse recurso é explorado em excesso, mais rápido aumentam os impactos no meio ambientes e na economia a nível global.
A China usa 57% do cimento do mundo e é também o principal produtor mundial. Com tudo o que usa, poderia construir por ano um muro de 27 metros de largura por 27 de altura ao redor da Terra, de acordo com Pascal Peduzzi. A maioria da areia usada sai do lago Poyang, uma das maiores reservas de água doce e hoje a maior mina de areia do mundo, segundo pesquisadores de Harvard. Por ano são extraídos desse lago 236 milhões de metros cúbicos de areia, e os efeitos ao meio ambientes são devastadores.
E não se trata somente de cobrir as necessidades imobiliárias de sua população: desde 2014, a China construiu sete ilhas artificiais no arquipélago de Spratly, no Pacífico Sul, que disputa com Taiwan e o Vietnã. O dano ao ecossistema marinho é irreparável. Uma das principais consequências que mais preocupam os ecologistas é que está destroçando as barreiras de coral que existem nessa área, que usam como base para construir o novo território. Seu vizinhos Vietnã, Malásia, Filipinas e Taiwan também expandiram seu território nesse arquipélago, mas nenhum o fez com a magnitude e velocidade da China.
Mas liderando os países que estão aumentando seu território de maneira artificial encontra-se Singapura, que além disso é o maior importador per capita de areia do mundo. Nos últimos 40 anos cresceu 130 quilômetros quadrados em terra (20%) utilizando 637 milhões de toneladas de areia. E ainda pretende aumentar mais 100 quilômetros quadrados antes de 2030. Os principais fornecedores são países vizinhos: Indonésia, Filipinas, Vietnã, Myanmar (antiga Birmânia) e Camboja. Mas todos eles começam a ver como suas reservas escasseiam e estão parando as exportações, o que disparou o preço da matéria-prima em 200%.
O primeiro a fazê-lo foi a Indonésia, após ver como muitas de suas ilhas afundavam e desapareciam. Em 2007 decidiu acabar com todos os negócios de areia, especialmente com Singapura, seu principal exportador. Uma decisão que lhe custou uma disputa política com seu vizinho sobre os limites exatos de suas fronteiras e o direito de uso desse recurso.
Em 2017, o Governo do Vietnã anunciou que se o ritmo da demanda continuasse como estava, em 2020 ficaria sem areia. Ao mesmo tempo, o Ministério de Minas e Energia do Camboja anunciou que impediria todas as exportações de areia a Singapura, que na última década comprou desse país, de acordo com dados das Nações Unidas, mais de 72 milhões de toneladas, equivalente a 624 milhões de euros (2,75 bilhões de reais). Mas muitos especialistas duvidam que a situação tenha mudado. “No Camboja governa uma cleptocracia que saqueia os recursos naturais em detrimento do meio ambiente”, afirma George Boden, diretor da ONG Global Witness.
Os Emirados Árabes Unidos são outros dos maiores importadores de areia, apesar de estarem cercados de deserto. Como consequência da erosão do vento, essa areia não é a mais adequada ao cimento porque é de baixa qualidade. Nas últimas décadas, Dubai importou da Austrália enormes quantidades de areia para a construção de diversos complexos e edifícios. Só para a torre Burj Khalifa, a mais alta do mundo, com 828 metros, foram necessários 110.000 toneladas de cimento. E as ilhas Palm, um projeto ainda não terminado formado por três conjuntos de ilhas que aumentará em aproximadamente 520 quilômetros a superfície das praias de Dubai, devoraram 385 milhões de toneladas de areia, com um custo de 10 bilhões de euros (44 bilhões de reais).
O mercado manda. E a demanda de areia está em alta. Nada irá deter a exploração excessiva e o comércio ilegal desse recurso se a sociedade internacional não unir forças. “Os Governos e líderes políticos devem aumentar sua consciência sobre o tema e procurar alternativas ao uso de areia”, diz Peduzzi. E é necessário fazê-lo rápido, porque o tempo joga contra.
Em um país como a Espanha, que vive do turismo, a erosão das praias pode causar estragos na economia. Não é preciso somente uma regulamentação legal nacional – que já existe – e sim padrões internacionais que regulem a extração e obriguem países como a Índia, Marrocos e Camboja a cumprir as regras do jogo para preservar o meio ambiente e a economia tanto de seus países como de terceiros.
“Nossa dependência da areia é enorme e em um futuro próximo não vamos deixar de usá-la”, diz Peduzzi. Mas sua utilização pode ser racionalizada com medidas como evitar a construção de infraestrutura desnecessária, planejá-la para que dure mais e modernizar as existentes. Várias equipes de pesquisa em todo o mundo estudam materiais alternativos na construção, a partir da reutilização de entulho e vidro, mas hoje não existe nada que possa responder à enorme demanda desse recurso. “Em áreas que não têm um ritmo de desenvolvimento elevado, a reciclagem de materiais de construção pode cobrir parte da demanda, mas os países que estão experimentando um rápido desenvolvimento urbano não podem satisfazer a necessidade de areia com a reciclagem”, afirma Torres. Além disso, o preço do material alternativo costuma ser mais alto e causa mais emissões de gases de efeito estufa em sua produção.
“É absolutamente necessário criar uma regulamentação internacional para evitar o descumprimento que certos países cometem”, diz Sumaira Abdulali. E isso significa saber a quantidade de areia usada a nível local e global, assim como a quantidade que pode ser reposta através de processos naturais. “É preciso conhecer quais são as reservas e supervisioná-las para que a lei seja cumprida”.
Caso contrário, nesse ritmo, o dragão de Komodo, os recifes de coral e amplas áreas do deserto do Saara estão a caminho de se transformarem em recordações que as futuras gerações só poderão ver em fotografias e documentários.
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O devastador negócio do tráfico de areia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU