28 Março 2018
“Já não há necessidade de uma resposta global, de um ator político global, por uma estratégia global?”, pergunta Francine Mestrum, PhD em ciências sociais, pesquisadora e ativista do desenvolvimento social e coordena a rede Justiça Global Social, tendo trabalhado em diferentes instituições europeias e nas universidades de Bruxelas (ULB), Antuérpia e Gent, em artigo publicado por Alai, 25-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Segundo ela, “os fundadores do fórum, que ainda estão muito presentes, estão bloqueando tudo, mesmo em pontos em que há consenso, como condenar o golpe de Estado contra a presidente Dilma Rousseff no Brasil ou o assassinato de Marielle Franco na semana passada no Rio de Janeiro. Compreensivelmente, isso encontra incompreensão e muita frustração”.
“O Fórum Social Mundial antigo, apolítico, não tem futuro – conclui -, a menos que possa contribuir para coordenar ações e organizar movimentos. Este não é o único fórum global, de maneira alguma, mas é o único com potencial de trabalho transversal. Seria uma pena se se perdesse. No ano que vem, o FSM vai fazer 18 anos, a idade da maioridade política. Será que também vai ser a idade de se tornar autônomo e desobediente?”
Esta foi a minha conclusão, mas não durou muito tempo, só os primeiros dias do fórum. Hoje, já não tenho tanta certeza. Talvez nós estejamos presos no antigo fórum apolítico e tenhamos um Conselho Internacional impotente. O que isso significa para o futuro?
Salvador da Bahia, no Brasil, é uma cidade maravilhosa. Uma população muito diversificada e alegre, muitos negros e pessoas ainda mais coloridas, muita música, uma bela cidade antiga, embora decadente, o Pelourinho, bom clima e belas praias.
Foi lá que aconteceu Fórum Social Mundial, de 13 a 17 de março de 2018. Quando começou, eu já tive três dias interessantes de debates no fórum, sobre saúde e proteção social, ou seja, justiça social. Por unanimidade, concluímos a importância da proteção social universal e a necessidade de olhar para políticas sociais tão amplas quanto possível.
O Fórum Social Mundial começou normalmente, com uma grande manifestação: dezenas de milhares de pessoas atravessaram a cidade, rostos felizes, muita esperança, uma mobilização enorme e muito motivadora. Dá energia, o suficiente para mais um ano de ativismo.
Você encontra amigos e fala com palestinos, curdos, franceses, alemães, finlandeses, marroquinos, tunisianos, sarauís, cubanos e tantas outras pessoas boas. Você anda nas nuvens.
O verdadeiro trabalho começou um dia depois. Lutar sobre um programa de mais de cem páginas nunca é fácil, ainda mais na tela. Andar uma grande universidade procurando pela faculdade certa e a sala certa para sua oficina também não é fácil. Mas a atmosfera é ótima, há esperança e confiança.
As dúvidas começam a surgir no segundo dia. Que parte deste fórum é global? Mais de 80% - se não 90% - dos participantes são brasileiros. Há muita gente da América Latina e até mesmo da África, porque as ligações entre Salvador da Bahia e a África são muito fortes. A presença europeia é muito mais fraca e a Ásia é quase completamente ausente.
No terceiro dia, torna-se evidente que poucas oficinas são políticas, além do que está acontecendo no Brasil. A grande maioria das mais de 2000 atividades são puramente de mobilização, apenas uma pequena minoria está interessada no desenvolvimento de alternativas ou estratégia. Os principais temas do passado, as instituições financeiras internacionais, o livre comércio, os conflitos, a mudança climática: é preciso procurá-los com uma lupa.
Uma nota positiva vem dos vários grandes encontros paralelos: assembleia de mulheres, assembleia de democracias na qual Lula palestrou, assembleia de movimentos de resistência social. Infelizmente, foram um pouco decepcionantes.
Este FSM certamente colocou o feminismo no mapa, as mulheres desempenharam um papel importante neste fórum, mas seu programa de ação deixa muito a desejar.
A assembleia com Lula foi um momento de mobilização, obviamente, majoritariamente brasileiro.
A assembleia dos movimentos sociais foi um fracasso, por causa do boicote ativo de alguns.
A decepção internacional não prejudica o enorme sucesso deste fórum para os brasileiros, em circunstâncias políticas muito difíceis. Apesar do boicote ativo de alguns, os organizadores conseguiram criar um fórum com quase 80.000 participantes. Certamente não há razão alguma para críticas.
No entanto, é preciso questionar a participação limitada da Europa e da Ásia. O preço da passagem de avião explica alguma coisa, em tempos de austeridade, mas não tudo. Muitos intelectuais têm abandonado o fórum há algum tempo e isso merece pelo menos uma análise aprofundada.
A reunião do Conselho Internacional foi curta: dois dias em meio período. Se você conhece a necessidade que os brasileiros têm de falar, muitas vezes para dizer coisas que não estão na pauta, imagina o caos da reunião. Três a cinco minutos de uso da palavra para cada um e sem discussão. Repetem-se as posições antigas. E não há solução.
'Um outro mundo é possível' foi o slogan de mobilização quando o primeiro fórum foi realizado, em Porto Alegre, em 2001. Milhares vieram para o Brasil, intelectuais e movimentos populares de todo o mundo. O objetivo era dar uma resposta para o Fórum Econômico Mundial em Davos, desenvolver alternativas e estratégias globais, construir contra-poder global em tempos de globalização neoliberal.
Para viabilizar isso, uma série de regras básicas foi estabelecida em uma 'cartilha', sobretudo para evitar que os grupos de esquerda muito fragmentados travassem batalhas ideológicas entre si, em vez de combater o inimigo comum.
Ao longo do tempo, esta cartilha chegou a trabalhar como um freio na ação política. Ninguém pode falar 'em nome' do fórum, justo, mas isso significa que o fórum não tem voz e nunca deveria ter? Que o Conselho Internacional nunca pode tomar uma posição política? Os fundadores do fórum, que ainda estão muito presentes, estão bloqueando tudo, mesmo em pontos em que há consenso, como condenar o golpe de Estado contra a presidente Dilma Rousseff no Brasil ou o assassinato de Marielle Franco na semana passada no Rio de Janeiro. Compreensivelmente, isso encontra incompreensão e muita frustração.
Um segundo tema difícil é a chamada horizontalidade. Novamente, apesar de todos concordarmos sobre a necessidade de evitar hierarquias verticais e estruturas paralisantes, o apego à horizontalidade acabou por esconder as relações de poder existentes. Não há estrutura, ninguém tem qualquer responsabilidade e, portanto, não há responsabilização. Não há transparência, muito menos democracia.
A mesma horizontalidade continua com as atividades do fórum. Rejeitar toda hierarquia significa que um workshop sobre 'mulheres e futebol' ou 'pessoas LGBT e hip-hop' são tão importantes quanto uma mesa redonda sobre a crise financeira ou sobre guerra e paz. Uma proposta para uma conferência com importantes intelectuais de esquerda é relegada a 'ouvir os gurus'. Alternativas e estratégias quase nunca são discutidas, a resposta tradicional é que 'os próprios movimentos devem cuidar disso'.
Ou, em outras palavras, o cachorro morde a própria cauda.
Esses problemas no âmbito do fórum muitas vezes são atribuídos a uma contradição entre as ONGs e os movimentos sociais. Não é nem um pouco verdade. Há movimentos conservadores e ONGs políticas progressistas. Mas há uma liderança invisível de forasteiros, assistida por movimentos que têm medo de política.
A questão, portanto, diz respeito à utilidade de um fórum tão apolítico? Certamente, para o Brasil e ainda mais para Salvador da Bahia, este fórum foi muito útil. Mas e para todos os outros? Se o fórum não pode existir como um fórum, mas apenas como uma soma de milhares de movimentos, torna-se politicamente irrelevante. Se o Conselho Internacional não existe como um coletivo político, mas novamente apenas como um local de encontro para alguns representantes eleitos dos movimentos sociais, qual o seu papel?
Já não há necessidade de uma resposta global, de um ator político global, por uma estratégia global? Na Europa também, muitos movimentos estão se retirando em nível nacional e até mesmo local, e não devemos duvidar que as ações locais são importantes. Utopias locais podem ser particularmente interessantes, mas são suficientes? Quando vêm à custa de ações nacionais, europeias e globais, há um problema real. Porque não se pode lidar nem com a mudança climática, nem a proteção de dados digitais, nem a justiça social e fiscal em nível nacional de forma adequada, quanto mais em nível local.
'Nós somos um espaço aberto, criamos esperança e temos uma visão diferente da política': essa é a resposta, repetidamente, para todas as perguntas, dúvidas e críticas. Na realidade, não há nenhuma abordagem política, e os objetivos acabam na mobilização. O maior exemplo é o 'sucesso' que é sempre referido, quando, em 2003, milhões de pessoas saíram às ruas contra a guerra no Iraque. Algumas semanas depois, há exatamente quinze anos, a guerra começava. Onde, então, está o sucesso?
A articulação entre os diferentes níveis políticos é essencial para qualquer significado político e global. A direita sabe disso muito bem e age em conformidade. A esquerda muitas vezes continua olhando para o próprio umbigo. Num momento em que a raiva e a resistência ao neoliberalismo e à desapropriação são tão grandes em todo o mundo, é preocupante que não haja em nenhum lugar qualquer tentativa de canalizá-las e ativá-las. Porque enquanto isso a repressão e a criminalização dos movimentos sociais está aumentando.
O Fórum Social Mundial antigo, apolítico, não tem futuro, a menos que possa contribuir para coordenar ações e organizar movimentos. Este não é o único fórum global, de maneira alguma, mas é o único com potencial de trabalho transversal. Seria uma pena se se perdesse. No ano que vem, o FSM vai fazer 18 anos, a idade da maioridade política. Será que também vai ser a idade de se tornar autônomo e desobediente?
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O Fórum Social Mundial morreu! Viva o Fórum Social Mundial? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU