12 Dezembro 2017
A Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro admite a condenação apenas com base em depoimentos de policiais, mas só caso não existam outras provas ou seja impossível obtê-las e caso os relatos dos agentes sejam coerentes. No entanto, se o crime atribuído ao acusado for de tráfico de drogas e a quantidade de entorpecente encontrada com ele for pequena, não se pode enquadrá-lo nesse delito sem fundamentação.
Com esses argumentos, os professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil e Weigert afirmam, em parecer, que a condenação do catador de materiais recicláveis Rafael Braga por tráfico de drogas foi ilegal e inconsistente. A apelação dele será julgada nesta terça-feira (12/12) pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
A reportagem é de Sérgio Rodas e publicada por Conjur, 11-12-2017.
O homem ficou conhecido por ter sido o único condenado (4 anos e 8 meses de prisão) por atos praticados durante as manifestações de junho de 2013. Na época, ele foi detido no Rio de Janeiro com uma garrafa do produto de limpeza Pinho Sol e outra de água sanitária — que, segundo a acusação, poderiam ser utilizados para agredir policiais em coquetéis molotov.
Solto em 2015, voltou para trás das grades em janeiro de 2016. Na manhã do dia 12, ele foi preso na Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão, zona norte da capital fluminense, acusado de portar 0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína — fracionadas em embalagens com a inscrição “CV” (Comando Vermelho), que estavam dentro de uma sacola plástica — para venda. O catador estava desarmado e sem dinheiro.
Fundamentada pelos entorpecentes apreendidos, pelo local onde Braga estava e pelos depoimentos dos policiais militares que o prenderam, a denúncia por tráfico de drogas e associação ao tráfico (artigos 33 e 35 da Lei 11.343/2006) acabou rendendo pena de 11 anos e 3 meses de prisão.
Para o juiz Ricardo Coronha, da 39ª Vara Criminal do Rio, o fato de Braga estar com drogas fracionadas em embalagens em área dominada pelo Comando Vermelho mostra que ele está vinculado a essa facção. O julgador também validou as versões dos PMs.
“Nos depoimentos policiais acima mencionados, nada há que elida a veracidade das declarações feitas pelos agentes públicos que lograram prender o acusado em flagrante delito. Não há nos autos qualquer motivo para se olvidar da palavra dos policiais, eis que agentes devidamente investidos pelo Estado, cuja credibilidade de seus depoimentos é reconhecida pela doutrina e jurisprudência. Os testemunhos dos policiais acima referidos foram apresentados de forma coerente, neles inexistindo qualquer contradição de valor, já estando superada a alegação de que uma sentença condenatória não pode se basear neste tipo de prova.”
Após o TJ-RJ negar Habeas Corpus de Rafael Braga, o ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, determinou que ele fosse para prisão domiciliar. Segundo o magistrado, diante do “quadro grotesco de violações” a direitos e da falta de condições adequadas para cuidar de detentos doentes, é obrigatório permitir que um preso com tuberculose, como o catador, saia da unidade prisional para tratamento.
Integrantes do Grupo de Estudos em Ciências Criminais da Faculdade Nacional de Direito, da UFRJ, Salo de Carvalho e Mariana Weigert analisaram a condenação por tráfico de drogas de Rafael Braga a pedido dos advogados dele — Lucas da Silveira Sada, Carlos Eduardo Cunha Martins Silva, Ednardo Mota de Oliveira Santos e João Henrique de Castro Tristão, todos atuando pelo Instituto de Defensores de Direitos Humanos.
No parecer, afirmam que a Súmula 70 do TJ-RJ pressupõe, no plano político, que a polícia respeite rigidamente seus limites de atuação e, no campo jurídico, a absoluta ausência ou impossibilidade de obtenção de outras provas e a coerência dos relatos dos agentes públicos. Porém, na condenação de Braga, nenhum desses pressupostos foi respeitado, avaliam os professores.
No campo político, ressaltam Carvalho e Mariana, as polícias do Rio não atuam de acordo com os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade. Basta ver que, em 2016, uma a cada seis pessoas assassinadas no estado foi morta por um policial, conforme aponta o Instituto de Segurança Pública. Os dois também citam relatório da Human Rights Watch e reportagem do jornal Extra que mostram que policiais tentam acobertar seus homicídios prendendo usuários de drogas como traficantes para cumprir metas.
“A atribuição de responsabilidade criminal por tráfico de drogas a usuários e, inclusive, a membros das comunidades que não possuem qualquer relação com o consumo ou comércio de drogas ilegalizadas —, para ‘atingir a meta de prisões e apreensões’ do batalhão ou para realizar retaliações ou para proteger determinadas pessoas, infelizmente não é uma prática esporádica e que deva simplesmente ser desconsiderada em casos como o de Rafael Braga. Pelo contrário, esta realidade deve servir como elemento de sensibilização ou filtro para a interpretação dos elementos de prova que compõem os autos”, destacam.
Quanto aos pressupostos jurídicos, os docentes da UFRJ apontam que havia outras provas no caso que não foram consideradas e que os depoimentos dos policiais têm diversas incoerências. Alguns pontos controversos dos testemunhos dos agentes são o local para onde Braga foi levado após a detenção (delegacia ou contêiner da Vila Cruzeiro, no Alemão?), quem os informou da venda de drogas no local e por que não foram atrás das supostas outras pessoas que estavam exercendo a mesma atividade com o catador e teriam fugido.
Além disso, Carvalho e Mariana questionam o não aproveitamento do depoimento da moradora do Alemão Evelyn Silva. Segundo ela, Rafael Braga estava sozinho e sem nenhum objeto nas mãos quando foi abordado pelos policiais. Um deles, de acordo com a mulher, “bateu muito nele” e o arrastou para a parte baixa da rua. A partir daí, Evelyn, de sua casa, não conseguiu mais ver o que se passava.
O juiz desqualificou o testemunho da mulher por entender que suas declarações “visavam tão somente eximir as responsabilidades criminais de Braga”, já que ela é vizinha da mãe do catador. No entanto, os professores ressaltam que o relato dela não pode ser desconsiderado por essa razão — até porque ela não foi contraditada pelo Ministério Público. Outra prova de que seu testemunho é idôneo é o fato de ele só narrar uma parte do ocorrido.
“E mesmo se a versão pudesse estar comprometida pelos laços de vizinhança e amizade da testemunha com a mãe de Rafael Braga, a situação probatória seria a da existência de versões conflitivas de sujeitos que possuem interesse em manter suas versões: a testemunha, pelos laços de vizinhança e amizade com a mãe do réu; os policiais, em face da acusação de violência empregada e de terem forjado o flagrante”, opinam Salo de Carvalho e Mariana Weigert.
Esse conflito gera uma dúvida razoável sobre o que realmente ocorreu quando Braga foi preso. Como o princípio da presunção de veracidade do depoimento dos policiais, instrumentalizado pela Súmula 70, não pode afastar o princípio do in dubio pro reu, pilar do Estado Democrático de Direito, o catador deve ser absolvido, afirmam os especialistas em Direito Penal. Para fortalecer esse argumento, citam precedentes do TJ-RJ traçando os limites de aplicação da norma.
Reportagem da ConJur mostrou que mais de 70% das prisões em flagrante por tráfico de drogas têm apenas um tipo de testemunha: os policiais que participaram da operação. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. O problema, para quem estuda a área, é que prender e condenar com base, principalmente, em depoimentos de agentes viola o contraditório e a ampla defesa, tornando quase impossível a absolvição de um acusado.
Os dois docentes também concluem que não ficou provado que Rafael Braga praticou tráfico de drogas. Especialmente porque ele foi preso com poucos gramas de maconha e cocaína. Ainda que o Brasil não estabeleça quantidades de entorpecentes que são consideradas como para uso próprio, o Supremo Tribunal Federal já fixou alguns parâmetros nesse sentido, dizem os professores, citando a decisão da 2ª Turma da corte no HC 138.565. Na ocasião, os ministros consideraram que os 8 gramas de crack e 0,3 gramas de cocaína que uma pessoa guardava em sua casa eram uma quantidade ínfima, “que se assemelha ao tipo penal de consumo pessoal e não do tráfico de drogas”.
Esse precedente é importante porque as suas circunstâncias do são muito similares às de Rafael Braga, apontam Salo de Carvalho e Mariana Weigert. Em comum aos dois casos está a quantidade de droga, a apreensão em “local conhecido de tráfico” e a alegação da defesa de que o entorpecente foi plantado como retaliação. O mais importante, na visão dos pareceristas, é que o Supremo desclassificou o tráfico de drogas para o porte para consumo próprio (artigo 28 da Lei 11.343/2006) com base na porção de entorpecente.
Por isso e pelo fato de Braga ter sido preso de manhã (horário incompatível com o comércio de drogas), desarmado (atitude incompatível com o pertencimento a facção de traficantes) e sem dinheiro (circunstância incompatível com a atividade comercial), os professores da UFRJ dizem que não é possível atribuir-lhe o delito de tráfico.
E mais: como as cinco condutas que configuram o uso de entorpecentes (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo) no artigo 28 da Lei 11.343/2006 são repetidas no artigo 33, de tráfico, é preciso que o juiz fundamente por que o caso concreto se enquadra no delito mais grave, analisam os docentes.
Só que isso, segundo Carvalho e Mariana, não foi feito de forma convincente pelo juiz. Ricardo Coronha concluiu que o catador agiu com dolo de tráfico porque “trazia consigo, para fins de mercancia, sem autorização legal ou regulamentar, as drogas descritas na denúncia”.
Entretanto, o julgador “não aponta qualquer dado concreto para afirmar a intenção de venda ou promoção da circulabilidade”, alegam os autores do parecer. Dessa maneira, a conclusão do juiz advém dos dados que justificaram os elementos objetivos do tipo: a quantidade de droga e sua forma de armazenamento e o local onde Rafael Braga estava.
“Reduzida a prova objetiva e subjetiva à quantidade, e por se tratar de pequena quantidade de droga, segundo os critérios da Suprema Corte, não há outra conclusão possível que a desclassificação da conduta para o artigo 28 ou a absolvição. Pequena quantidade é, inegavelmente, forte indício de porte para uso próprio e, por ser a única estável, não permite inferir finalidade mercantil”, analisam.
Salo de Carvalho e Mariana Weigert ainda avaliam que o fato de Rafael Braga estar desarmado, sem dinheiro, com pouca droga e sem proteção para exercer o comércio de entorpecentes, mais a dúvida de se ele estava sozinho ou em grupo, e sua ficha limpa quanto aos delitos da Lei 11.343/2006, impedem que ele seja condenado por associação ao tráfico (artigo 35).
O juiz da 39ª Vara Criminal do Rio concluiu que o catador de materiais recicláveis possuía vínculo com o Comando Vermelho por dois motivos. O primeiro é porque as drogas estavam embaladas em cápsulas com as inscrições CV e foi apreendido com ele um rojão. Nisso, Ricardo Coronha também aceitou a versão dos policiais de que havia outras pessoas no local que fugiram — mas não questionou a razão de os agentes não as terem perseguido.
O segundo motivo se deve à máxima de experiência de que, em comunidades “controladas” por facções criminosas, ninguém pode vender drogas sem autorização delas.
“É certo que a facção criminosa Comando Vermelho é quem domina a prática de tráfico na localidade conhecida como ‘sem-terra’, em que o réu foi preso, situada no interior da Vila Cruzeiro. Por outro lado, a regra de experiência permite concluir que a ninguém é oportunizado traficar em comunidade sem integrar a facção criminosa que ali pratica o nefasto comércio de drogas, sob pena de pagar com a própria vida. Portanto, não poderia o réu atuar como traficante no interior da Comunidade Vila Cruzeiro sem que estivesse vinculado à facção criminosa Comando Vermelho daquela localidade”, interpretou o juiz na sentença.
Quanto ao primeiro ponto, os professores da UFRJ lembram que os usuários, depois de comprarem a droga, “obviamente as seguem portando nas embalagens que lhes foram entregues”. Logo, a mera inscrição “CV” não conduz a qualquer conclusão quanto ao uso, comércio ou associação ao tráfico.
Já com relação à segunda razão, o juiz, ao usar máxima de experiência para concluir que não há comércio de drogas sem autorização de facções, incorreu no “primado das hipóteses sobre os fatos”, afirmam os docentes.
“Ou seja, o julgador, com base em uma hipótese (‘Rafael Braga é traficante associado ao Comando Vermelho’) constrói argumentativamente uma justificativa a partir de quaisquer elementos disponíveis, por mais frágeis ou pouco factíveis que possam ser (por exemplo, inscrição ‘CV’ nas cápsulas presumidamente encontradas com Rafael Braga e máximas de experiência aplicáveis genericamente).”
O problema, ressaltam Carvalho e Mariana, é que estabilidade e permanência à associação criminosa — requisitos para a configuração do crime do artigo 35 da Lei 11.343/2006 — não podem ser medidas genericamente, sem o vínculo à situação concreta. Caso contrário, as regras de experiência acabam por legitimar o uso de “estereótipos do senso comum” para fundamentar decisões, alertam.
Eles se referem ao artigo 489, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil de 2015. O dispositivo considera nula a sentença que “invoca motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”. E a hipótese genérica de que a venda de drogas só seria possível com autorização da organização criminosa, logo, há associação delitiva, “poderia justificar qualquer outro ilícito como vinculado ao tráfico, porque as regras de experiência indicariam que, em comunidades dominadas, qualquer delito deve ser autorizado pela facção”, opinam.
Estendendo essa linha de raciocínio e presumindo que os atos lícitos também dependem do aval de quadrilhas, os professores mostram que seria possível concluir que todos os moradores de favelas cariocas estão em situação de associação em potencial com o tráfico.
Pior: invertendo a lógica do juiz, a mesma regra de experiência pode ser usada para justificar uma decisão em sentido contrário, destacam. Como Braga foi preso sozinho, desarmado, sem qualquer proteção e sem dinheiro, isso pode indicar que ele não pertence a nenhuma facção criminosa. Isso porque, pela máxima de experiência, os integrantes dessas organizações circulam pelos pontos de comércio, fortemente armados, e são monitorados pelos seus companheiros, que entrariam em confronto com policiais se estes tentassem prender um alguém.
“Ao abdicar de apresentar elementos concretos do vínculo de estabilidade e permanência, substituindo a prova por argumentos vazios amparados genericamente em máximas de experiência, a sentença perdeu qualquer fonte de legitimidade, pois violou as diretrizes legal e constitucional que regulam a fundamentação dos atos judiciais”, argumentam Salo de Carvalho e Mariana Weigert, concluindo que não é possível condenar Rafael Braga por associação ao tráfico.
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Caso Rafael Braga: Condenação de catador não pode se basear só na versão da PM, diz parecer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU