06 Junho 2017
“Antigamente, aqui também nasciam crianças”, contam com um véu de melancolia, assim que se passa pela Porta Sant’Anna. Como em uma das cidades invisíveis de Italo Calvino, são diferentes a realidade e o discurso que a descreve. Filmes e obras literárias fizeram do Vaticano um lugar mítico. Além disso, da Sistina à Loggia de Rafael, a beleza de um patrimônio artístico sem igual mostra que séculos de História, com maiúsculo, passaram por aqui. Mas há um mundo pequeno, cotidiano, que poucos conhecem. Um mundo que está mudando e, em parte, desaparecendo.
A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada por Corriere della Sera, 05-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Nos anos 1970, a paróquia tinha dois times de futebol, pululava de meninos e meninas, havia a mesa de pebolim...” O Pe. Bruno Silvestrini, agostiniano, é o “pároco” do Vaticano desde 2006. Batismos, crismas, casamentos, a igreja na fronteira com a Itália é bastante procurada. Chegam de todas as partes do mundo em Sant’Anna.
À tarde, veem-se alguns empregados vaticanos rezando as Vésperas, antes de voltar para casa. Mas há cada vez menos paroquianos, propriamente ditos, cidadãos vaticanos leigos.
Os guardas suíços e as suas famílias, acima de tudo, mas esse é um mundo à parte, entre o quartel e os apartamentos dos oficiais. Quanto ao resto, os cidadãos leigos são cada vez mais raros. Papéis de primeiro plano, como o comandante da Gendarmeria, Domenico Giani, ou o diretor do L’Osservatore Romano, Giovanni Maria Vian. Alguns responsáveis pelos serviços menos visíveis, mas necessários.
Os últimos dados, atualizados em abril, registram 605 cidadãos, dos quais 439 são habitantes no Estado, e 199 residentes. Entre os cidadãos, contam-se apenas 26 leigos (além dos 105 militares) e 36 leigas, 62 no total, incluindo esposas, filhas e filhos dos guardas suíços. Somam-se a eles seis homens e 16 mulheres residentes, mas não cidadãos.
Não que os números tenham sido consistentes alguma vez, mas a redução é evidente e progressiva. Há 80 anos, no censo de 31 de dezembro de 1936, havia 746 cidadãos e, entre eles, 94 sacerdotes, 37 religiosos e 615 leigos, com 324 casados, entre homens e mulheres.
Para se orientar, é preciso considerar que estamos no menos e mais estranho Estado do mundo. A Cidade do Vaticano é uma monarquia absoluta e eletiva. O papa é o seu soberano e reúne em si todos os poderes, ou seja, “tem a plenitude dos poderes legislativo, executivo e judiciário”. Isso se reflete no ordenamento do Estado nascido com o Tratado Lateranense de 1929.
De dimensões pouco mais do que simbólicas, 44 hectares, o Estado, no entanto, tem o objetivo essencial de “assegurar a independência real e visível” do papa e, portanto, “garantir a liberdade da Sé Apostólica”.
É claro que a lei de cidadania não se assemelha a nenhuma outra no planeta. Cidadãos e residentes são provisórios. A cidadania é dada (ou removida) pelo papa ou pelos seus delegados, ponto. Não há “ius soli” nem “ius sanguinis”: a pessoa é cidadã “durante munere”, provisoriamente e enquanto dura o seu papel no Estado a serviço da Santa Sé, e não por ter nascido no território; até mesmo os filhos daqueles que têm a cidadania, como regra, permanecem cidadãos enquanto seus pais são cidadãos e não mais do que aos 18 anos.
Com base na última Lei CXXXI de 22 de fevereiro de 2011, além do papa (mais o papa emérito, a partir de 2013), são cidadãos vaticanos os cardeais residentes, os diplomatas da Santa Sé ou aqueles que residem no Estado “em razão do cargo ou do serviço”.
O êxodo dos leigos dura desde os anos 1970, explica o pároco de Sant’Anna. “Fez-se a escolha de enviá-los para os apartamentos da Santa Sé fora do Vaticano. A maioria das famílias se mudou, e os poucos que ficaram já têm os filhos grandes. Aos poucos, vão indo embora...”.
Quem ficou vive em uma dimensão particular, cada serviço ao alcance das mãos. A casa, a assistência de saúde, o pronto socorro. Os lendários caixas eletrônicos em latim, “inserto scidulam quaeso ut faciundam cognoscas rationem”, ou "insira, por favor, o cartão para acessar as operações permitidas”. E, depois, a farmácia, o supermercado, uma loja de presentes, roupas e tabaco, todos felizmente alheios de tributação, como o cobiçado posto de gasolina.
Para fazer as compras, é preciso ter o “anonário” reservado aos habitantes e empregados, mais seus amigos e parentes: o desencanto dos romanos o apelidou de “o cartão do tio padre”. Em compensação, os portões fecham à 1h15 da noite e reabrem às 5h45. E, se alguém vai ao teatro ou jantar fora por conta própria? “É preciso tocar a campainha, e um guarda suíço abre para a pessoa”, explica-se. “Mas eles anotam o nome.”
É claro, a tendência demográfica é acompanhada por uma tendência à “clericalização” do Estado, até mesmo no governo e nas posições de responsabilidade. De 1929 até a sua morte, em 1952, o governador do Estado foi um leigo, o Marquês Camillo Serafini. No fim do século, outro marquês, Giulio Sacchetti, foi “delegado especial” na cúpula do Governatorado.
Hoje, não há nada mais de semelhante. Giovanni Maria Vian ainda se lembra de “quando éramos crianças, nos anos 1950, e eu brincava com os meus irmãos nos Jardins”. Outros tempos. “O Estado foi constituído com método e pessoal leigo, mas progressivamente, a partir de João Paulo II, ele se clericalizou. Pode ser que alguns leigos não estivessem à altura, mas é verdade que, para muitas tarefas, não haveria a necessidade de padres. Há também uma tendência à ‘episcopalização’, como se, para certos papéis, fosse necessariamente preciso se tornar bispo.”
Um paradoxo, depois do Concílio. E pensar que o Papa Francisco, no ano passado, evocava o “Santo Povo de Deus” contra os problemas do “clericalismo”, até exclamar: “Recordo a famosa frase: ‘É a hora dos leigos’, mas parece que o relógio parou”.
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Vidas leigas no Vaticano: em declínio desde os anos 1970, restaram apenas 62 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU