03 Fevereiro 2017
Se há uma nova Guerra Fria no caminho mundial, é aquela que o Norte rico do mundo está declarando ao Sul pobre.
A análise é do jornalista italiano Massimo Franco, colunista político do jornal Corriere della Sera, 01-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Donald Trump corre o risco de favorecer uma nova Guerra Fria. Mas não entre os Estados Unidos e a Rússia. A nova Guerra Fria é aquela que o Norte rico do mundo, de modo unilateral, está declarando ao Sul pobre. E a Igreja de Francisco deverá enfrentá-la com paciência e clarividência.”
O interlocutor vaticano que fixa o desafio entre o presidente estadunidense, Trump, e o primeiro papa latino-americano conhece bem os Estados Unidos, muito bom. E sabe como será difícil contrastar um vento cultural no qual o mais fraco, ao menos por enquanto, parece ser a Santa Sé. Também por isso, Jorge Mario Bergoglio não interveio nem vai intervir: ele não quer globalizar uma polêmica que está dilacerando os Estados Unidos e o Ocidente.
Está distante aquele 18 de fevereiro de um ano atrás, quando, de volta do México, o pontífice definiu como “não cristão” quem constrói muros: uma referência ao Trump candidato republicano à Casa Branca, que respondeu com palavras rudes. Esse personagem chegou à Casa Branca, também com o voto católico. Ordenou construir o muro de separação do México. Mas o Vaticano confiou a reação aos bispos estadunidenses e ao cardeal ganês Peter Turkson, que falou de preocupação “com o sinal que é dado ao mundo”.
O alerta, porém, cresce. E a ofensiva contra a imigração da América Central e do Sul, e a hostilidade contra os islâmicos tocam o coração da estratégia de Francisco. “Mas não esperem um confronto aberto com Trump. Não haverá posicionamentos papais, a menos que a situação precipite”, avisa-se.
As palavras de Bergoglio sobre os ditadores que, às vezes, tomam o poder graças a um voto democrático já desencadearam mal-entendidos e críticas: melhor não alimentá-los. Vale a estratégia expressada em novembro passado pelo secretário de Estado vaticano, cardeal Pietro Parolin: respeito pela vontade dos eleitores estadunidenses; bons votos a Trump pela eleição; e expectativa para ver como ele vai se mover, porque se diz que uma coisa é ser candidato, outra é ter responsabilidades de governo.
É uma espécie de agenda auspiciosa, que tende a evitar qualquer abordagem preconceituosa e quer ser uma cautelosa abertura de crédito.
Além disso, no círculo de Francisco a eleição de Hillary Clinton também seria mal vivida: especialmente pelos posicionamentos em favor do aborto e pela abordagem antirrussa. Mas isso não basta para desligar o alarme. Para um papa “que quer derrubar os muros entre o Norte e o Sul do mundo”, como lembrou há muito tempo o diretor do L’Osservatore Romano, Gian Maria Vian, um presidente estadunidense que quer multiplicá-los é quase uma provocação: embora ele certamente não cause revolta intencionalmente à Igreja Católica.
Quem esteve na sexta-feira, 27 de janeiro, no Instituto Luigi Sturzo, em Roma, onde se realizava um congresso internacional sobre o catolicismo na América Latina, não ouviu ataques contra Trump. Mas o seu fantasma loiro-prateado pairava por lá.
Tanto que, quando a presidência do congresso expressou “indignação” com as tarifas sobre mercadorias mexicanas que os Estados Unidos gostariam de impor para fazer com que o México pague os custos do futuro muro, desencadeou uma ovação libertadora. Entre os governos da América austral, porém, a indignação permanece reprimida. O continente vive uma fase de involução econômica e política, do Brasil à Argentina. E poucos se atrevem a atacar o administrador estadunidense, à espera de entender melhor o que vai acontecer. Encarar Trump de peito aberto também não é fácil para o Vaticano, forçado a marcar distâncias e, ao mesmo tempo, a enfatizar os pontos de convergência.
A Casa Branca segue um duplo registro escorregadio, para aqueles que gostariam de palavras mais duras da Roma papal. Há a ofensiva contra os imigrantes, especialmente latino-americanos, que são um pouco “o povo de Bergoglio”, que chegou em Washington, há dois anos, como porta-voz daquela região do mundo e dos excluídos.
E há a proibição de entrada para os cidadãos de sete países islâmicos, dentre os quais, surpreendentemente, falta a Arábia Saudita, de onde vinham alguns terroristas das Torres Gêmeas de 2001.
Mas há também a “marcha pela vida” e contra o aborto, apoiada publicamente pelo vice-presidente Mike Pence: e é a primeira vez que a Casa Branca se expõe assim.
O papa enviou uma mensagem por meio de Parolin. E, no dia 27 de janeiro, aos manifestantes reunidos em Washington, Pence disse que “a vida volta a vencer nos Estados Unidos”: música para os ouvidos de uma parte dos bispos dos Estados Unidos, “guerreiros culturais” contra os governos democratas sobre os chamados valores inegociáveis.
E Trump promete satisfazer o eleitorado evangélico e o catolicismo pro-life, indicando para a Suprema Corte um juiz conservador: escolha que vai mudar os equilíbrios no mais alto tribunal dos Estados Unidos. São sinais que equilibram os negativos em matéria de imigração e de diálogo com o Islã. “E agradam”, admite-se no Vaticano, “a muitos católicos.”
O medo que vaza da Casa Santa Marta, residência papal, é duplo. O primeiro é de ser esmagado por uma agenda que está em desacordo com a pedagogia e a geopolítica de Francisco. Se prevalecerem a “doutrina Trump” e uma leitura “nortista” do cristianismo, a de Francisco se encontraria ainda mais na defensiva, senão em minoria.
A segunda incógnita é sobre os círculos econômicos por trás da ascensão de Trump. “Não se pode excluir que essa rede vai financiar os círculos católicos mais reacionários”, enfatiza-se, “hostis ao pontificado argentino.”
No fundo, resta a dúvida de um influente cardeal italiano. “Não podemos saber”, observou recentemente, “o que restou na alma de Trump das palavras papais” sobre ele em fevereiro de 2016: aquele “não cristão” atraído pelos muros. Logo, talvez, se saberá. E essa expectativa é vivida com um fio de apreensão.
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A dupla face dos Estados Unidos que confunde o Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU