25 Janeiro 2017
"Se a minha opinião estiver correta de modo geral, o grande desafio da política externa do nosso período será gerir a cooperação entre várias regiões concorrentes e tecnologicamente avançadas e, mais urgentemente, enfrentar nossas crises ambientais e de saúde", escreve Jeffrey D. Sachs, professor universitário e diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia e autor de "A Era do Desenvolvimento Sustentável", em artigo publicado por The Boston Globe, 22-01-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Em "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, Adam Smith descreveu os eventos iniciais da globalização, que começou com a descoberta de Cristóvão Colombo do caminho marítimo da Europa para as Américas em 1492 e a viagem de Vasco da Gama da Europa para a Índia em 1498. "A descoberta da América e da passagem para as Índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança são os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade", escreveu Smith. A história confirmou a ideia de Smith. Cabe à nossa geração inaugurar mais um capítulo significativo da globalização, que requer repensar a política externa dos Estados Unidos e de outras potências mundiais.
Smith observou que a globalização deve aumentar o bem-estar global, "unindo, em alguma medida, as partes mais distantes do mundo, permitindo-os aliviar os desejos, aumentar as alegrias e estimular a indústria uns dos outros". Ele também observou que na primeira onda de globalização, logo após as viagens de Colombo e Vasco da Gama, as populações nativas das Américas e da Ásia sofreram porque "a superioridade da força" Europeia permitiu aos europeus "cometer impunemente todo tipo de injustiça", incluindo a escravidão e a dominação política.
No entanto, Smith também previu uma época futura em que as populações nativas "poderiam se fortalecer ou as da Europa se enfraquecer" para chegar a uma "igualdade de coragem e poder" que levaria ao "respeito mútuo por seus direitos". Smith acreditava que o comércio internacional e a "transmissão mútua de conhecimento" (o fluxo internacional de ideias e tecnologia) apressaria a chegada da igualdade.
A era que Smith vislumbrava chegou. Nossa geração está na outra ponta da história, em que séculos de ascendência global Europeia (e mais tarde americana) estão sendo compensados pelo aumento das "populações nativas" na Ásia, na África, no Oriente Médio e nas Américas. A política externa dos Estados Unidos durante os últimos 75 anos, e, possivelmente, durante os últimos 125 anos, tem sido baseada na premissa de uma economia mundial dominada pela região do Atlântico Norte, ou seja, a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Esta globalização do Atlântico Norte está prestes a acabar. As tensões que vemos agora em todo o mundo são sintomáticas do término da velha ordem.
Considere o mundo da época de Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. De acordo com estimativas globais do finado historiador econômico Angus Maddison, a partir de 1500, a população mundial, de cerca de 440 milhões de pessoas, era distribuída em regiões da seguinte forma: Ásia, 65 por cento; África, 11 por cento; Europa (Leste e Oeste), 20 por cento; e Américas, 4 por cento. A distribuição da produção mundial era, segundo Maddison, na Ásia, 65 por cento; na África, 8 por cento; na Europa, 24 por cento; e nas Américas, 3 por cento. O mundo era pobre e rural de modo geral e os grandes impérios agrários ficavam no Leste e no Sul da Ásia.
Por mais que a época da descoberta e do comércio pós-Colombo tenha conferido segurança à Ásia e levado a Europa a conquistar as Américas, foi a Revolução Industrial na Inglaterra - inaugurada pela máquina a vapor, a produção de aço industrial, a agricultura científica e a mecanização de têxteis - que realmente criou o mundo europeu. Em 1900, o mundo estava em grande parte nas mãos da Europa, tanto econômica quanto politicamente. A Ásia ainda era o centro da população mundial, mas não da economia.
A distribuição em termos de população e renda era mais ou menos a seguinte: em 1900, a população mundial tinha agora cerca de 1,6 bilhões de pessoas e era distribuída na Ásia, com 56 por cento; Europa, 27 por cento; África, 7 por cento; e Américas, 9 por cento. A distribuição da produção mundial, de acordo com Maddison, era: Ásia, 28 por cento; Europa, 47 por cento; África, 3 por cento; e Américas 20 por cento, sendo que a maioria vinha da economia dos EUA. O papel econômico da Ásia diminuiu e o da Europa aumentou drasticamente. Se considerarmos Europa Ocidental, Estados Unidos e Canadá (as economias do Atlântico Norte), a sua participação na produção mundial ficou em notáveis 51 por cento em 1900.
Observe especialmente o que aconteceu com a China. De acordo com as estimativas, a participação da China na economia mundial foi de 25 por cento em 1500, mas apenas 11 por cento em 1900. Claramente, o papel de liderança da Ásia no mundo tinha virado de cabeça para baixo pela Revolução Industrial. Em 1900, o mundo estava decididamente nas mãos dos poderes do Atlântico Norte. A Grã-Bretanha, em particular, dominava os mares, tanto que este período é muitas vezes chamado de Pax Britannica, embora a pax (paz) global não fosse tão comum quanto no imaginário europeu, visto que a Europa estava lutando por e conquistando terras em toda a África e a Ásia, e reprimindo insurreições violentas (conhecidas como "terrorismo" aos europeus) pela resistência local às regras europeia.
A Europa praticamente cometeu um suicídio político entre 1914 e 1945: duas guerras mundiais e uma Grande Depressão. Em 1950, a liderança do Atlântico Norte tinha passado de uma Grã-Bretanha quebrada pós-guerra para os Estados Unidos. A liderança científica pré-Hitleriana passos da Europa aos Estados Unidos, refugiado após refugiado. A partir de 1950, os Estados Unidos totalizavam cerca de 27 por cento da economia mundial, em comparação com cerca de 26 por cento da Europa Ocidental, 9 por cento da União Soviética e apenas 5 por cento da China.
Em 1942, Henry Luce, editor da revista Time, anunciou que aquele era o século dos EUA. Os estadunidenses rapidamente compraram a ideia. Ela se encaixava com uma longa narrativa dos EUA: que eram um país excepcional, um país escolhido por Deus para acabar com a perversidade do Velho Mundo, um país expressamente destinado a civilizar o continente norte-americano (através da limpeza étnica e do genocídio de populações nativas) e mais tarde, o mundo, a "última grande esperança da humanidade".
De 1945 a 1991, a política externa dos EUA foi estruturada para dominar na Guerra Fria. Embora os Estados Unidos tenham dominado a economia mundial, o bloco comunista liderado pela União Soviética formou uma ideologia rival e uma ameaça geopolítica. Enquanto a "contenção" da União Soviética tornou-se o dogma predominante, surgiu uma luta entre os adeptos estadunidenses da "primazia" - que viram a contenção como um trampolim para um conceito ainda mais grandioso: a liderança dos EUA de todo o sistema mundial - e os do "realismo" - que viram a contenção em termos mais tradicionais da balança de poder. Curiosamente e notoriamente, o pai conceitual da contenção, George Kennan, lamentava a visão da primazia, considerando-a perigosamente arrogante, uma afirmação ilusória e inatingível da bondade e do poder estadunidenses. Um terceiro grupo, a quem já denominei cooperativista, acreditava que a própria Guerra Fria era um confronto desnecessário, ou pelo menos exagerado entre grandes potências, que poderia ser superado através da cooperação direta entre os Estados Unidos e a União Soviética.
O fim da Segunda Guerra Mundial marcou (em grande parte) o fim dos impérios europeus na África e na Ásia, embora o processo de descolonização tenha se estendido por décadas e tenha sido muitas vezes violento. Os Estados Unidos muitas vezes confundiram a descolonização com a própria Guerra Fria, e, portanto, tornaram-se herdeiros voluntários de várias lutas anticoloniais, de maneira mais contundente e destrutiva, naturalmente, no Vietnã, cuja unidade nacional foi combatida pelos Estados Unidos sem sucesso por duas décadas após a retirada da França em 1955. Da mesma forma, os Estados Unidos tentaram fazer valer sua vontade no Oriente Médio pós-colonial, em partes para manter a União Soviética de lado e em partes para manter ExxonMobil e Chevron próximas.
Passado o império da Europa, as nações recém-independentes da África e da Ásia tiveram uma nova oportunidade para investir em seus próprios futuros, especialmente em educação, saúde pública e infraestrutura. Pelo menos alguns dos países aproveitaram essa oportunidade. A China começou a se movimentar com a República Popular da China, criada em 1949.
Os 200 anos de crescente dominação Europeia começaram a dar lugar a um processo de "recuperação", através do qual pelo menos alguns dos países outrora colonizados, principalmente na Ásia, começaram a adotar tecnologias modernas, expandir a alfabetização e o controle de doenças, e alcançar o desenvolvimento econômico a um ritmo mais rápido do que nos principais países do Atlântico Norte, através de sua inserção em sistemas globais de produção. O abismo entre os líderes do Atlântico Norte e os países em desenvolvimento que os "seguiam" finalmente começou a diminuir.
A maior história de sucesso, é claro, foi a da Ásia. Em primeiro lugar, o Japão se recuperou rapidamente da Segunda Guerra Mundial e começou a construir uma potência industrial. Depois vieram os "tigres asiáticos": Hong Kong, Singapura, Taiwan e Coreia. E depois veio a China, com as reformas de mercado iniciadas em 1978, quando Deng Xiaoping ascendeu ao poder após a morte de Mao Zedong. O exemplo asiático inspirou as reformas de mercado na Europa Oriental e na União Soviética a partir de meados dos anos 80, o que se tornou possível quando Mikhail Gorbachev assumiu o poder. Os resultados iniciais foram mais políticos do que econômicos. A Europa Oriental se separou da União Soviética pacificamente em 1989 e, em seguida, a própria União Soviética se dissolveu em suas 15 repúblicas no final de 1991.
Em 1992, os estadunidenses adeptos da primazia olharam para o mundo e viram a confirmação da sua meta de um mundo liderado (e dominado) pelos Estados Unidos. O grande inimigo tinha ido embora. A estrutura de poder bipolar entre Estados Unidos e União Soviética havia agora se tornado um mundo unipolar, e o "fim da história", como eles imaginavam, estava próximo.
O que eles não imaginavam é que 1992 também marcaria um ponto de inflexão na aceleração do crescimento da China. Em 1992, os Estados Unidos produziram 20 por cento da produção mundial e a China, apenas 5 por cento. Depois de um quarto de século de enorme crescimento chinês, em 2016 a participação dos EUA caiu para 16 por cento e a da China havia ligeiramente ultrapassado-os em 18 por cento (dados recentes de acordo com estimativas do FMI). A China alcançou a história.
Além disso, o aumento da tecnologia da informação, que irá sustentar a próxima geração de crescimento econômico global, está se espalhando rapidamente por todo o mundo; a revolução tecnológica vai criar riqueza em nível global, não somente nos EUA. A China é, de longe, o país que mais acessa a Internet atualmente, e o acesso a Internet em banda larga vem crescendo em todas as regiões do mundo.
As tendências populacionais também vão transferir o peso da economia mundial para a Ásia e para a África. Considere o seguinte: em 1950 os Estados Unidos, o Canadá e a Europa compunham 29 por cento da população mundial. Em 2015, este percentual havia caído para 15 por cento. Em 2050, deve diminuir ainda mais, talvez para cerca de 12 por cento (com base em projeções da ONU). A África, por outro lado, tinha apenas 9 por cento da população do mundo em 1950; 15 por cento em 2015; e cerca de 25 por cento é a projeção para 2050. A porcentagem dos Estados Unidos na população mundial em 2050 será cerca de 4 por cento, não muito longe do valor atual.
Os Estados Unidos precisarão repensar sua política externa em um mundo radicalmente transformado, com a rápida "compensação" em crescimento na Ásia e agora na África; uma revolução mundial em TI cada vez mais veloz e grandes mudanças nos padrões da população mundial.
Este é o ponto-chave. O domínio do Atlântico Norte foi uma fase da história mundial que agora está se encerrando. Começou com Cristóvão Colombo, ganho força com James Watt e sua máquina a vapor, foi legitimado com o Império Britânico até 1945 e, em seguida, com o chamado século americano, mas agora encerra o seu ciclo. Os Estados Unidos continuam fortes e ricos, mas não dominantes.
Não estamos entrando no século da China, ou da Índia, ou qualquer outro país, mas um século do mundo. A rápida difusão da tecnologia e a soberania quase universal dos Estados-nação significam que nenhum país ou região vai dominar o mundo em economia, tecnologia ou população. Além disso, com a desaceleração do crescimento da população mundial e o seu envelhecimento, os países serão habitados por pessoas mais velhas. A idade média da população chinesa (em que metade é mais velha e metade mais jovem) era de 24 anos em 1950 e subiu para 37 em 2015. E deve subir para 50 anos até 2050.
Os americanos também não serão tão jovens, com uma idade média de 42 anos a partir de meados do século. A história tem mostrado que um aumento de jovens na população tem muitas vezes causado conflito; agora teremos um aumento de idosos.
Se a minha opinião estiver correta de modo geral, o grande desafio da política externa do nosso período será gerir a cooperação entre várias regiões concorrentes e tecnologicamente avançadas e, mais urgentemente, enfrentar nossas crises ambientais e de saúde. Devemos deixar para trás a era dos impérios, da descolonização e das guerras frias. O mundo está chegando ao ponto de "igualdade de força e coragem" prevista há muito tempo por Adam Smith. Devemos entrar com prazer na Era do Desenvolvimento Sustentável, em que o principal objetivo de todos os países, e especialmente das grandes potências, é trabalhar em conjunto para proteger o meio ambiente, acabar com os remanescentes da pobreza extrema e se proteger para não voltar, sem motivo algum, a períodos de violência baseada em ideias antiquadas de dominância de um lugar ou povo sobre outro.
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A paisagem global em mudança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU