23 Dezembro 2016
"Então, como chamar o papa? Disse simplesmente: como Francisco está mostrando, desde o início do seu ministério petrino, em palavras que fazem ecoar do mistério de Cristo, com quem o Papa possui vínculos sacramentais e com quem compartilha os três ministérios (tria munera) de uma forma particularmente íntima , mas também com palavras que são capazes de explicar o mistério da Igreja, com a qual o papa tem ligações de filiação (é seu filho), de fraternidade (é irmão de todos os batizados e dos bispos), de paternidade (é o pai de todos os filhos da Igreja, também dos... irmãos bispos)", escreve Michele Giulio Masciarelli, teólogo, padre italiano, professor da Pontifícia Faculdade Marianum, em Roma, e do Instituto Teológico Abruzzese-Molisano, em Chieti, na Itália, publicado por Settimana News, 17-12-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Francisco, nos quase quatro anos de seu pontificado, colocou-se, com toda certeza, na escola de São Bernardo, que vendo seu ex subalterno, Eugênio III, vestido de seda e coberto de ouro, recriminou-o dizendo que se parecia mais com Constantino do que com São Pedro[1].
Querendo assemelhar-se mais a Pedro do que a Constantino, Papa Bergoglio está desenvolvendo a sinodalidade, em primeiro lugar, com a linguagem dos gestos, que torna a figura do Papa mais acolhível pelos "irmãos separados": o compromisso de edificar uma Igreja sinodal [...] – disse ele – é repleto de implicações ecumênicas"(Discurso ao sínodo: 17/10/2015).
Interessante a pergunta do padre Congar, a este respeito: "Não se teria tudo a ganhar, não estaria na hora de "sacudir a poeira imperial que se estabeleceu, a partir de Constantino, sobre trono de São Pedro?". As palavras são de João XXIII"[2].
Papa Francisco está se esforçando para fazê-lo, e incentiva também a teologia para ajudá-lo neste processo. De fato, a novidade, antes da teologia hodierna, quando se dedica ao tema do papado, consiste no esforço de identificar uma forma de exercício mais correspondente à vontade de Jesus e ao estilo da Igreja antiga.
Procura-se, por isso, uma mais viva memória histórica do serviço petrino no primeiro milênio, que aparece bastante diferente daquele do segundo. Tenta-se, também, ter uma visão ecumênica mais atenta e, finalmente, tenta-se repensar esse serviço levando em conta a feliz redescoberta da sinodalidade dentro da Igreja Católica.
Voltando à comparação, deve-se afirmar que, como não é um imperador, o Papa não é tampouco um príncipe ou um monarca ... "felizmente reinante" (do Papa, não seria melhor dizer: "humildemente serviente”?). No entanto, "o papa não é um monarca absoluto, porque ele não é o único órgão que dá à Igreja a sua forma e sua unidade católica, como seria se sua tarefa não fosse compartilhada com os bispos. Não é um monarca constitucional, porque o episcopado não é uma espécie de parlamento, que decide por conta própria e, em seguida, obriga o papa a apor sua assinatura às deliberações”[3].
Então, como chamar o papa? Disse simplesmente: como Francisco está mostrando, desde o início do seu ministério petrino, em palavras que fazem ecoar do mistério de Cristo, com quem o Papa possui vínculos sacramentais e com quem compartilha os três ministérios (tria munera) de uma forma particularmente íntima , mas também com palavras que são capazes de explicar o mistério da Igreja, com a qual o papa tem ligações de filiação (é seu filho), de fraternidade (é irmão de todos os batizados e dos bispos), de paternidade (é o pai de todos os filhos da Igreja, também dos... irmãos bispos).
A nenhum bispo, a nenhum teólogo, a nenhum irmão, nem irmã, a nenhum laico ou laica desperta a prudente e sábia ideia de que o martelante chamamento do Papa Bergoglio não nasça nem de uma teimosia pessoal, nem do eco forte presente nele da situação social da América Latina, nem das opções pastorais privilegiadas operadas pelas igrejas daquelas plagas geográficas do planeta rica de pobres?
Acho que não.
A ninguém mais corrói a recordação evangélica que Jesus tenha posto a caridade, tão severamente orientada, como critério de julgamento?
Creio ainda que não.
Ninguém nunca se tormenta com a suspeita de que o que escreveu São João da Cruz – "No entardecer da nossa vida seremos julgados sobre o amor"[4] –, seja algo relacionado ao coração do Evangelho e da missão?
Acredito, mesmo, que não, mas sobre isso é necessário meditar com mais coração e mais paixão cristã.
O ensinamento pastoral e missionário de Francisco nos pede para não cairmos na tentação de colocar o tema dos últimos na lista dos deveres morais e éticos que temos, como cristãos individuais e como comunidades paroquiais: pensando bem, talvez seja preciso ter em alta consideração a ideia de que o Papa Francisco esteja nos chamando para um dos gânglios teológicos que formam o coração do Evangelho, que ajudam a identificar a essência do cristianismo, que individuam um elemento essencial do ser cristão e do ser Igreja.
Este ensinamento – difuso como sementes em tantos pronunciamentos humildes do papa argentino – constitui sua maior "Carta Encíclica", nunca escrita, mas que, por aquele "intuito" de fé que ele nos reconhece[5], podemos nos permitir dar um título que ajude a lembrar seu Jubileu da Misericórdia: Vultus pauperum, vultus Christi.
Saudações, eclesiais e teológicas, Francisco!
A imagem simbólica da chamada "Ponte de Adão"[6] indica a passagem da "caravana da solidariedade". Ela serve para mostrar a importância de uma ponte fácil, ao alcance de todos, que precisa ser atravessada pelos cristãos em sua vida de testemunho e de missão, em companhia de homens de outra fé, outras culturas e outro sentir.
Aquela ponte, formada apenas por uma faixa de terra coberta com uma película de água, é, portanto, o eloquente símbolo do essencial, isto é, do que jamais deve faltar e que o Papa Francisco mostra com duas palavras universais: fraternidade e irmandade. "A terra é nossa casa comum e todos nós somos irmãos"[7]: é o clima de vida e de fé que ele deseja para os discípulos de Jesus. Francisco afirma que Deus suscita esse bom clima estando oculto e presente entre os homens e "promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta presença não deve ser fabricada, mas descoberta, desvelada"[8].
Ao viver com irmãos e irmãs de criação, e com irmãos e irmãs de fé e de batismo, faz-se a experiência de uma mística surpreendente, porque não é conhecida e não é tratada nem pelos teólogos, nem pelos mestres espirituais, nem pelos pastoralistas. "Neste tempo, – lê-se na EG – em que as redes e demais instrumentos de comunicação humana alcançaram progressos inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a "mística" de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos participar desta maré um pouco caótica, que pode transformar-se em uma verdadeira experiência de fraternidade, caravana solidária, peregrinação sagrada[9].
Passar sobre a “ponte de Adão" significa, portanto, cumprir – sem excluir ninguém – caminhos do bem, da partilha, da justiça, da beleza, da paz, da solidariedade, da procura da verdade, do perdão.
Notas:
[1] Cf. CLARAVAL, Bernardo de., Da consideração ao Papa Eugênio. IV, 3, 6.
[2] CONGAR, Y., Per una Chiesa serva e povera. Magnano (BI): Qiqajon, 2014, p. 128.
[3] DIANICH, S., Una Chiesa per vivere, Bologna: Dehoniane, 2010, p. 63.
[4] São João da Cruz, Avisos y Sentencias, 57.
[5] Francisco, Discurso para a comemoração do 50º aniversário da instituição do Sínodo dos Bispos (17/10/2015), in L'Osservatore Romano, 18/10/2015, p. 5. A partir de agora = Discurso do Sínodo.
[6] Talvez um dos mais marcantes indícios de uma civilização que floresceu antes do cataclismo de 13.000 anos atrás (o dilúvio universal) é a chamada "Ponte de Adão", uma estreita faixa de terra com 30 km de comprimento, que liga o sul da Índia com o Sri Lanka. É uma ponte sem estrutura construída pela natureza ou com uma parcial intervenção humana.
[7] Evangelii Gaudium (EG) n. 183.
[8] EG, n. 71.
[9] EG, n. 87.
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80° aniversário de Francisco: Pedro, e não Constantino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU