23 Novembro 2016
Um grupo de oito garotos, de entre 11 e 15 anos, perambulava nesta segunda-feira pela principal avenida de acesso à Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro. Após os tiroteios e a queda de um helicóptero da Polícia Militar no final de semana, os moradores recuperaram parte das suas rotinas, mas as escolas amanheceram fechadas. Sentados numa praça, os jovens, sem nada a fazer, relatavam com naturalidade uma das suas brincadeiras favoritas antes de eles trocarem os jogos pelas namoradas.
A reportagem é de María Martín, publicada por El País, 22-11-2016.
A brincadeira consistia em pegar pedaços de pau de madeira e forrá-los com fita isolante preta, até parecer um fuzil, guardar leite em pó e orégano em sacolinhas para que parecessem cocaína e maconha, e fabricar notas falsas com folhetos de supermercado. Os papéis então eram distribuídos e cada um deles interpretava sua função numa facção criminosa. Seria uma versão adulta do tradicional Polícia e Ladrão, mas ninguém ali queria ser policial. Mesmo assim, havia mortos, operações, roubos, e complôs. Exatamente como na vida real.
Esses mesmos garotos entraram na mata no domingo de manhã, à procura dos desaparecidos durante os tiroteios – entre traficantes e milicianos que disputam território e policiais – que mantiveram a comunidade em pânico na sexta e no sábado. Junto a dezenas de moradores, acabaram encontrando sete corpos de traficantes, alguns decapitados ou com membros decepados. “Por que eles fizeram isso? Por que não levou preso?”, pergunta o mais esperto deles. “Não acho legal ser bandido não, mas não precisa matar”. Questionados se ficaram impressionados pelo estado dos corpos, negaram. “A gente vê isso todo dia, né? Nós é cria da Cidade de Deus, não criado”.
A naturalização da violência parece regra nas comunidades cariocas. Há vídeos desse final de semana na Cidade de Deus nos quais se veem moradores acompanhando de perto a troca de tiros dos policiais com os narcotraficantes, com a gritaria típica de torcida de futebol e raro é o morador que não recebeu as terríveis imagens de algum dos sete cadáveres nos seus celulares. Nada os impressiona mais. Se o helicóptero da polícia não tivesse caído – aparentemente por acidente, segundo uma perícia inicial da Aeronáutica – e matado seus quatro ocupantes, teria sido outro final de semana violento nesta favela – de mais de 42.000 habitantes – sem que o resto do Rio soubesse. Mais um.
São as mães as que negam-se a aceitar que seu bairro vire um bastião em guerra. Claudia (nome fictício) está sem dormir desde sexta-feira, quando mandou um dos seus filhos de 18 anos para a casa do pai por medo dele ser morto. “Ele é negro, jovem, eu falo para ele sair com documento sempre, mas tenho medo. E se a polícia der um tiro no meu filho?”, indaga. Moradora da comunidade há três anos, ela gostaria de sair de lá se tivesse condições econômicas, mas está desempregada e no barraco de madeira onde mora no Karatê, uma das regiões mais conflituosas e miseráveis da favela, não paga aluguel. Em meia hora de conversa, Claudia tinha devorado suas compridas unhas postiças pintadas de azul. “Estou muito apreensiva, muito nervosa”, justificou.
Luiza (nome também fictício), um dona de casa de 39 anos, saía de casa nesta segunda-feira pela primeira vez em dois dias, mas seus filhos, de 13, 14 e 21 anos, não. “Estão trancados em casa de portão fechado. Nenhum deles foi para a escola e eu não deixei sair. Moro aqui há cinco anos, mas nunca tinha visto nada parecido. Está muito tenso, espero que seja só uma fase, mas ninguém sabe por que a polícia ocupou. Meu maior medo é uma bala perdida, tiro não tem direção. Eu não me acostumo”.
O clima nos acessos à comunidade parecia o de um dia normal, apenas um blindado parado na frente de uma das Unidades de Polícia Pacificadora e viaturas passando com frequência com fuzis aparecendo pelas janelas poderiam sugerir que aquele lugar havia sido um cenário de guerra 24 horas antes. Moradores desempregados e em seu dia de folga jogavam baralho na praça principal, via-se mães com seus filhos nos comércios e gente indo trabalhar. A recomendação dos moradores, no entanto, foi a de que a reportagem não entrasse na favela. Suas ruas continuam ocupadas por um contingente incerto de policiais que, em palavras do porta-voz da corporação, o major Ivan Blaz, pretende evitar a “expansão territorial” do Comando Vermelho, a maior facção criminosa do Rio. Além disso, a juíza estadual Angélica dos Santos Costa, do Tribunal de Justiça do Rio, autorizou que os agentes entrem nas casas de moradores para fazer revistas e apreensões coletivas "a fim de se buscarem as armas de fogo utilizadas", segundo adiantou o jornal O Globo nesta manhã. As operações policiais vão muito além da Cidade de Deus e também acontecem em favelas como o complexo da Maré, onde nesta segunda foram mortas, pelo menos, quatro pessoas, e mais de 7.000 crianças ficaram sem aula.
“Nas comunidades, é a violência que determina se a escola abre ou não”, lamenta Sérgio Leal, conhecido como DJ TR, uma das poucas vozes que denuncia sem medo e com nome os problemas da Cidade de Deus. “Vivemos uma militarização das comunidades em um Estado democrático, onde você é suspeito desde que põe o pé na rua. Normal é eu ser abordado pela polícia sozinho, anormal é apontar um fuzil para mim enquanto levava minha filha de dez anos pela mão. O que está faltando nas comunidades é uma discussão séria das autoridades, que ouça o morador e as pessoas que, como eu, trabalhamos sem estrutura para recuperar jovens através da cultura ou esporte. Falta uma discussão além de impor a ordem”, defende.
A poucos metros dali, descansava a outra cara da moeda: um grupo de policiais militares fazendo turnos de 24 horas. Um deles havia participado dos protestos na semana passada contra as medidas de ajuste que vão cortar os salários dos servidores públicos. Outro comia de pé um lanchinho de queijo e presunto feito em casa e reclamava de não saber se vai receber o décimo terceiro salário. “Se chegar, vai ser para pagar dívida. Fico feliz de que este ano não haja árvore de Natal na Lagoa, se não tem dinheiro para pagar a gente, não tem dinheiro para festa”, disse o dono do lanche, em referência à clássica árvore que virou cartão postal da cidade nesta época. “E no ano novo, como vão fazer, se a gente não recebeu?”, questionou. O vidro dianteiro da sua viatura, de assentos rasgados, tem ainda uma perfuração de bala de quatro meses atrás. “Estava dirigindo, entrou pela lateral e passou rente pelo meu ombro”. É a marca de mais uma guerra com mais vencidos que vencedores.
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A vida e a morte seguem na Cidade de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU